terça-feira, julho 05, 2011

A verdade não se copia… desvenda-se na memória!

Muito se tem dito e repetido sobre o recente escândalo dos cem candidatos a juízes que foram apanhados a copiar.
Bem gostaria de poder pensar que este é um assunto circunscrito, que se resolverá com uma punição exemplar. Confesso, porém, ter poucas ilusões, quanto a isto, quer porque o assunto não é circunscrito, quer porque tudo leva a crer que a força da necessidade de ter mais juízes esteja a ser má conselheira.
Não é circunscrito, com efeito, porque mais de dez anos de docência, particularmente sensível a matérias de ética e moral, vêm-me demonstrando um progressivo crescimento da insensibilidade em relação à gravidade do falseamento de resultados de provas e exames. A busca do sucesso, a pressão da competição que parece legitimar todos os meios e a consolidação de um paradigma da irresponsabilidade têm promovido a ideia de que nada mais somos do que vítimas de uma sociedade cruel, na qual nada mais nos resta do que jogar com as regras do tabuleiro em que nos colocam.
Pois eu recuso-me à rendição e tenho-o afirmado, em múltiplos areópagos.
A começar pela intenção de não ceder a uma certa leitura marxista do indivíduo que o reduz a vítima de forças e estruturas sociais em que ele não seja mais do que um fantoche, na mão de forças invisíveis, omnipotentes, capazes de o manipular e instrumentalizar. Concebo, pelo contrário, uma sociedade que se constrói com as pessoas concretas e as suas decisões. E se nos rendermos a regras que supomos serem fatais, estaremos a negar a nossa condição de pessoas, contribuindo para a perpetuação de um certo modelo de sociedade que dizemos criticar, mas que subscrevemos, nas nossas escolhas e decisões. Seja na decisão de declarar os nossos verdadeiros rendimentos, seja no momento de afirmar a nossa condição de conjugalidade, seja no momento de um teste ou em qualquer outra ocasião em que nos seja pedido que nos submetamos à verdade, mesmo que ela seja dura.
O contrário da verdade é o esquecimento, a amnésia, a falta de memória. Assim entendiam os gregos, que a referiam como «alêtheia», a «ausência do esquecimento», a «não amnésia».
Curiosamente, uma sociedade que se sustenta na falta da verdade esquece-se de si, gira em torno de amnésias, sobre mentiras que conduzem a crises que deveriam desafiar a uma nova demanda, já não do Santo Graal, mas da verdade de cada um e de cada situação. Vivemos ilusões, convencidos de sermos mais do que, realmente, somos e podemos. Vivemos da fama que, curiosamente, se escreve com as consoantes de fumo. Ambos se esvanecem com um sopro…
Estamos, assim, perante um grave desafio que aqui denuncio: o de começarmos a perguntar-nos sobre o que podemos nós mesmos fazer – cada um de nós e não «alguém», «os outros», «o Estado» - para mudar esta forma de organizar a sociedade. O que cada um deveria fazer não será feito desse modo por nenhum outro.
A Igreja, nas suas reflexões sobre matérias sociais, recorda, a este propósito, a importância do princípio da subsidiariedade, quase tão difícil de pronunciar com correcção como de praticar. Este princípio sustenta que, quando determinada acção pode ser realizada por alguém ou por uma estrutura mais próxima das pessoas, não deve ser assumida por uma superior, sob pena de redundar numa situação injusta. Se eu posso, se eu devo fazer, não posso deixar de o fazer. Estaria a contribuir para a injustiça. A escolha é para inteligentes. Os outros sofrem de amnésia!

Luís Silva – professor
(Artigo publicado no jornal «Terras do Vouga»)

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