sábado, setembro 29, 2018

Dois modos (quase) contraditórios de fundamentar a ecologia


Albert Einstein afirma, num texto escrito no período entre 1939 e 1941, e coligido no seu livro ‘Como vejo a ciência, a religião e o mundo’, editado pela Relógio d’água, que a «ciência pode apenas indagar aquilo que é, mas não o que devia ser, e fora do seu domínio permanece toda a esfera dos juízos de valor, cuja necessidade ninguém discute.» (p. 275)
Hoje, continuam a ser válidas estas palavras, ainda que alguns problematizem, de modo implícito ou, em alguns casos, mesmo explícito, a última parte: «cuja necessidade ninguém discute».
Alain de Botton reconhece esta problematização ao afirmar, (com muita graça, aliás!), no seu livro ‘Religião para ateus’, editado pelas publicações Dom Quixote, que «a diferença entre a educação cristã e a educação secular [aquela que nos é proposta nas escolas, hoje em dia! – acrescento meu] revela-se com especial clareza nos seus respetivos modos característicos de instrução: a educação secular faz palestras, o cristianismo sermões, Em termos de objetivos, poderíamos dizer que uma está preocupada em transmitir informações e a outra em mudar as nossas vidas.» (p. 115)
Vem esta introdução a propósito de uma polémica muito significativa sobre um congresso realizado na universidade do Porto e em que se problematizava a influência humana nas alterações climáticas.
Não me prende, aqui, a discussão técnica, para a qual, aliás, reconheço não dever intrometer-me, mas sim os pressupostos desta discussão.
Inquieta-me, antes de mais, verificar a atitude inquisitorial com que se abordou a questão, como se não fosse legítimo continuar a procurar as motivações que explicam o estado em que nos encontramos, em matéria de clima. (É evidente que não sou indiferente à constatação de que muitos temeram que o congresso pudesse servir interesses políticos menos claros, na linha da postura arbitrária e inconsistente com que a atual administração americana aborda esta matéria. Não me pareceu, porém, que esse fosse o registo do referido congresso, pelo que adotei uma outra via de interpretação que deve merecer atenção.)
A posição com se encarou o referido congresso denuncia uma atitude ético-moral altamente inquietante e que não é consequente com as palavras do eminente físico com que abrimos este artigo.
O pressuposto dos ‘revoltosos’ contra o referido congresso é o de que, se se concluísse que as alterações climáticas não são devidas à ação humana, então daí resultaria que não seriam adotadas atitudes ecológicas adequadas e devidas.
O problema deste raciocínio é duplo.
Por um lado, pressupõe, ao arrepio do que diz Einstein, que a ciência tenha capacidade de fundamentar uma ética.
Por outro, faz derivar o dever moral não de motivações positivas (cuidar, proteger, administrar bem a natureza/criação), mas sim de uma motivação negativa: só protegemos o planeta por medo. Ora, este é o problema de uma certa abordagem ético-ecológica que, infelizmente, em muito é a que se ‘serve’ nas nossas escolas. Não se protege o ambiente por motivos positivos, mas por medo. É o que, tecnicamente, poderemos designar como uma ética heteronómica. Não fazemos por reconhecer o valor em causa, mas sim porque outros (neste caso, através do medo) no-lo impõem. De que resulta, necessariamente, que, se a causa do medo desaparecer, também daí redunda o fim do comportamento ético.
É o que evidencia esta atitude dos que se insurgiram contra o referido congresso.
Reitero que não estou situado no âmbito dos aspetos técnicos que um congresso científico deve manter como sempre revisíveis (esta nota sobre epistemologia continua válida!), mas sim ao nível da abordagem ético-moral que tal atitude denuncia.
Na realidade, as sociedades seculares vivem um dilema tremendo que situações como esta denunciam com clareza. O desejo da neutralidade total, a impossibilidade de invocar motivações que sempre foram comuns às comunidades, sob pretexto de que tal exclui, redunda na perda da força da ética, só restando impô-la, seja pela via da força seja pela via do medo, quando não pelas duas vias em sobreposição.
Haverá que saber invocar as motivações positivas que definem a cultura (os valores estruturantes) das comunidades para encontrar outros modos de legitimação da ação ética.
Neste sentido, é particularmente densa de conteúdo a encíclica papal sobre a ecologia que, no capítulo VI, fala de ‘educação e espiritualidade ecológicas’. Ali, recorda-se que «a educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo.» (n.º210), sendo que, «às vezes, porém, esta educação, chamada a criar uma ‘cidadania ecológica’, limita-se a informar e não consegue fazer maturar hábitos.» (n.º 211).
O combate a esta mera informação coloca o problema ao nível da interrogação sobre o que deva ser a educação e como poderá fazer-se respeitar, em Portugal, o direito constitucional à escolha do modelo de educação, por parte dos pais, em articulação com o dever de gerar uma atitude ética bem consolidada, sem ser assente no medo ou na mera força da lei positiva. Tal só pode conceber-se, com eficácia, se se recuperar uma sã relação com as religiões e o seu insubstituível papel educador. Mas isso não poderá, de modo algum, significar que toda a educação fique entregue a um Estado neutro e indiferente às identidades ou, sequer, que instrumentaliza as religiões ao seu serviço. Ambos, Religiões e Estados estão ao serviço da Pessoa. Há que superar o mito da educação neutra e ter a coragem de integrar, na educação, as identidades. Portugal já tem bons exemplos. O caso da existência da disciplina de Educação Moral e Religiosa é caso de estudo, em relação a esta matéria. Ela salvaguarda, por um lado, o legitimíssimo direito à escolha do modelo de educação para os filhos (a disciplina é de frequência facultativa), mas sabendo que é portadora de uma matriz capaz de fortalecer os motivos positivos para proteger: a vida – toda a vida – é um dom gratuito e generoso do Transcendente.
Onde pode encontrar-se fundamento igualmente sólido e eficaz? Não se pense que este é um reconhecimento que apenas os crentes lhe devotam. Basta ler, com atenção e sentido de responsabilidade, o já recordado livro de Alain de Botton, ‘Religião para ateus’: «as religiões merecem a nossa atenção devido à sua pura ambição conceptual; por mudarem o mundo de uma forma que poucas instituições seculares alguma vez fizeram. Elas conseguiram combinar teorias sobre ética e metafísica com um envolvimento prático em educação, moda, política, viagens, hospedarias, cerimónias de iniciação, edição, arte e arquitetura – uma gama de interesses que envergonha o âmbito de realizações até dos maiores e mais influentes movimentos seculares e individuais da história. Para aqueles que se interessam pela disseminação e pelo impacto de ideias, é difícil não ficarem mesmerizados com exemplos dos movimentos educativos e intelectuais mais bem-sucedidos que o planeta jamais testemunhou.» (p. 20).
O medo não pode ser o fundamento da ética. Esse fundamento tem de estar n’Outro lugar!

segunda-feira, setembro 03, 2018

A Hora… da Igreja!


O evangelista João une, sob a categoria da Hora, a morte e a ressurreição de Jesus: o fim assume um dinamismo de início que só os olhos da fé podem vislumbrar. Nenhum outro evangelista confere, tão explicitamente, este caráter libertador à crise da morte. ‘A Hora’ é sinónimo, em João, não tanto do fim, mas de um início.
É este olhar que importa renovar, neste momento, em que a Igreja Católica vive uma Hora de crise. Ler o longo caminho do seu peregrinar sobre a Terra deve permitir revitalizar-se e regressar às nascentes frescas das quais provém. Ler esse longo caminho renovará a consciência de que outras Horas emergiram nesse peregrinar, talvez mais tenebrosas, ainda, mas a que a força do Espírito concedeu novas vozes e profetas que permitiram refazer os passos.
Não poderá, porém, fazer-se essa leitura sem enfrentar, com lucidez, o que motiva a crise agora vivida, começando por fazer a devida justiça às vítimas da ação desconcertante de quantos, em atitude infiel à fé professada, desprotegeram os que tinham sob a sua guarda. Poderá haver maior dor do que a nascida da inocência perdida às mãos dos que a deviam proteger?
É esta lucidez que encontro na carta recentemente escrita (em 20 de agosto de 2018) pelo Papa Francisco ao Povo de Deus sobre os abusos sexuais perpetrados por membros da Igreja.
Leio-a e encontro um passo que me faz recuar à fase preparatória do Sínodo sobre os Jovens que a Diocese de Aveiro realizou em 2004. Numa das reuniões da equipa do secretariado diocesano da pastoral juvenil, em 2003, no centro pastoral, situado então na rua de José Estêvão, Dom António Marcelino afirmou que, se lhe perguntassem como resumiria a sua ação como bispo, a sintetizaria na ideia de que pretendia «acabar com o clericalismo na Igreja». Estas palavras suscitaram, nos que as ouviram, alguma surpresa, pois parecia contrastar com a ação que lhe era reconhecida de um pastor em quem se sentia a atitude de proteção amorosa da Igreja contra todas as investidas de algumas organizações que se designavam como ‘anticlericais’. Mas esta surpresa nascia de um equívoco: ser defensor do fim do clericalismo na Igreja não era sinónimo de se ser contra a Igreja. Pelo contrário!
Bastava, já então, ter lido, com atenção, a Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja Lumen Gentium para perceber que os padres conciliares tinham estruturado este documento de um modo que, só por si, já transmitia uma mensagem inequívoca. Na verdade, logo após um primeiro capítulo dedicado ao Mistério da Igreja, que a define como sacramento de Cristo, o documento fala sobre a Igreja como Povo de Deus. Só depois se fala da constituição hierárquica da Igreja. Na gíria teológica, recorda-se que, em primeiro lugar, é referido o que une (sermos povo de Deus) e só depois os elementos de distinção.
É a isto que se refere o Papa Francisco quando, na carta corajosa recentemente publicada, recorda que “é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. Isto se manifesta claramente num modo anómalo de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o clericalismo, aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo». O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma rutura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso é dizer energicamente «não» a qualquer forma de clericalismo.” (n. 2)
Tornar esta crise (todas as crises podem ser tempos de purificação, à maneira do que acontece com o ouro no crisol: liberta-se das impurezas para voltar à sua natureza autêntica!) a Hora da Igreja, fazendo-a sobreviver à morte que parece lançar sobre si a sua sombra, terá de passar por aceitar o desafio que nela se esconde: enfrentar o receio da verdade (quantas vocações mal amadurecidas e pouco vividas em comunidade!), não temendo dar o nome com que ela se apresenta; preparar os ministros das comunidades para a vida em comunidade (repensar com coragem, como a que houve, no século XVI, com o Concílio de Trento, o modelo de Seminário e de preparação dos ministros ordenados); preparar os cristãos, em caminhada catequética, não para uma religião de eventos, mas para uma religião vital, feita das perguntas e inquietações profundas da existência para as quais ela é resposta; reconfigurar as comunidades para o acolhimento das múltiplas dinâmicas que acontecem nas pequenas comunidades que fazem a grande comunidade; ler, em atitude humilde, os inúmeros sinais dos tempos, distinguindo o que é efémero do que é permanente e, acima de tudo, anunciar a salvação, porque a humanidade continua a ser humana, a viver inquieta, ainda que, nestes tempos, tantas vezes alienada em inúmeras distrações. A Igreja desta Hora terá de ser a Igreja que acolhe, que é porto de abrigo, que é comunidade, que acolhe e que se regozija com a presença alegre das crianças e dos seus pais, em cada celebração, sem os repudiar nem julgar. A Igreja desta Hora terá de ser a Igreja da Samaritana, do Nicodemos, mas também do jovem rico, terá de ser a Igreja que, à maneira do retrato feito por Rembrandt, no quadro sobre o Filho Pródigo, é, simultaneamente, mãe e pai: capaz de acolher sem ser infiel à verdade, mas sem que, por excesso de fidelidade à verdade, se torne sisuda e desprovida de afeto. A Igreja desta Hora é uma Igreja humilde porque Um só é o Mestre, a cujos pés nos sentamos, humildes e atentos, a ouvir o anúncio da certeza de que Deus não é, apenas, Aquele que tem amor: Ele é Amor! E isso basta!

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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