quinta-feira, junho 01, 2023

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Do ‘meio-homem, meio-peixe ou meio-pássaro’ ao ‘verdadeiramente Homem, verdadeiramente Deus’! (Ou de como o nosso ‘regresso’ nos leva do Furadouro a Calcedónia…)

   Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

O medo e o perigo acompanham as mais longínquas e enraizadas histórias míticas de seres que eram ‘meio-homem, meio-animal’ (seja pássaro, seja peixe…). As trevas e o abismo devorador estão enlaçados com a descrição de seres que, por serem metade humanos, metade animais, se caracterizavam, paradoxalmente, por possuírem um poder sedutor. E o que terão tais narrativas míticas a ver com este ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’? Onde se encontram ou divergem, aqui, a cultura clássica e o cristianismo?

Antes de nos lançarmos a estabelecer essa ‘ponte’, partilho uma confidência. A matéria que dará corpo a este texto nasceu de forma muito improvável: uma visita à casa-museu Júlio Dinis, em Ovar, ocasião em que soube da existência de um conto do autor de ‘as pupilas do senhor reitor’, para mim, até então desconhecido. Aliás, desconhecido, ainda hoje, de significativa parte do grande público, e só descoberto por estudo feito pelo médico Egas Moniz, em 1924. O título: ‘o canto da sereia’. Segundo nos é dito na apresentação deste conto, Egas Moniz encontrou numa lenda de Pardilhó (Estarreja) a base que terá servido de mote para o conto criado por Júlio Dinis, no período em que esteve enfermiço em casa de uma tia, na então vila piscatória de Ovar (de maio a setembro de 1863).

Ao ler este conto[1], enquadrável no género dos contos fantásticos, dei-me conta de quão enraizadas estão as histórias de sereias, esses seres dotados de um poder sedutor a que dificilmente os sujeitos humanos se conseguem opor.

Recordei, ao ler a história contada pelo Ti’ Cabaça, passada em terras do Furadouro, e que tem em Pedro do Ramires o protagonista, a difícil viagem de Ulisses no seu regresso a Ítaca, ao passar pela ilha das sereias. Na epopeia de Homero, estas são mulheres-pássaro que, pelo seu canto, atraem para a morte, tendo a Circe recomendado a Ulisses que selasse com cera os ouvidos dos seus companheiros e que se prendesse ao mastro da nau.

Dois traços retêm a atenção de quem lê estas histórias: por um lado, estes seres, metade humanos, metade animais, são sedutores, mas atraem para o abismo; por outro, estão associados ao mar, que na cultura antiga, era sinal abissal e associado ao mal. Dali, nada de bom poderá vir, exceto perigos e perdição. (Não será difícil reconhecermos nestes traços as ‘tintas’ com que se pintavam os mitos que tomavam conta da cabeça dos nossos primeiros navegadores e tão poeticamente descritos por Camões, n’Os Lusíadas.)

Em síntese, recolhamos, para o nosso ‘regresso’, estas duas notas: a sedução para a perdição por parte de seres que são quimeras (meio-humano, meio-animal) e o perigo do mar.

E que ponte poderá estabelecer-se com o cristianismo? Que ‘redenção’ poderá esperar-se deste para estes tão radicais medos?

O mar parece ser abissal, no texto bíblico, e, com ele, as próprias águas. Mas essa seria uma conclusão precipitada se excluirmos a dimensão redentora com que as diversas narrativas bíblicas se acercam do elemento ‘mar’.

Bem certo que as águas destroem, pelo dilúvio, separam da salvação, antes de se abrirem fazendo barreira à direita e à esquerda, distanciam e afastam da salvação que se espera, em Nínive, etc. Mas essa é apenas parte de cada narrativa bíblica, pois só há salvação do que precisa de ser salvo. E a salvação é a resposta bíblica.

Essa mensagem é particularmente visível na narrativa de Mateus 14, 22-33.

É noite! (Mais um símbolo do abismo…) Jesus, após ter despedido as multidões, pede que o levem para a outra margem do mar da Galileia, para rezar. Sem grandes elementos intermédios, percebemos que o barco regressa ao mar, ficando Jesus no monte. O mar está encapelado, enchendo-se os discípulos de medo. O medo! Sempre o medo e o que ele significa de perigo e sedução do abismo.

Sem que percebam que é Jesus, este acerca-se deles, caminhando sobre as águas (que já não têm poder sobre Jesus… Ele é superior ao abismo que o mar representava.) Neste passo, Mateus revela-nos que – ao contrário do que acontece nas narrativas gregas – a palavra dita, proferida, não seduz para levar para o abismo (como acontecia com as sereias), mas antes é libertadora. Jesus não diz palavras para seduzir para o abismo. Antes, assegura que o abismo já não vence: ‘Tranquilizai-vos! Sou eu! Não temais!’ Termina a perícope afirmando que, perante o amainar do mar, ‘os que se encontravam no barco prostraram-se diante de Jesus, dizendo: «Tu és, realmente, o Filho de Deus!»’ O abismo já não tem poder de seduzir para destruir. Antes, está definitivamente vencido, na linha do que se afirma no credo dos apóstolos que profere que Jesus ‘desceu ao reino dos mortos’, não porque este tivesse o poder de o levar, mas sim para que atue o poder redentor daquele que diz ‘Eu Sou!’.

Fixemo-nos, agora, no outro elemento da nossa síntese inicial: os seres ‘quimera’ (meio-humano, meio-animal)…

Ao afirmar ‘Eu Sou’, expressão recordada por este evangelista que terá escrito para judeus, Jesus está a afirmar a sua divindade. Com efeito, ‘Eu Sou’ é expressão muitas vezes associadas a um ‘cair por terra’ da parte dos que a ouvem, pois ela evoca a própria teofania de Deus, no Sinai, quando Se apresenta como ‘Eu Sou Aquele que sou’ (Yahweh).

Curiosamente, porém, Jesus não é ‘metade Homem, metade Deus’. Ele não é uma quimera. Às quimeras associamos, como anteriormente descrito, o perigo e a ambiguidade que seduz para o abismo. Vejamos o que consagrou o concílio de Calcedónia, em pleno século V, contexto de acesas polémicas sobre a identidade e a presença das duas naturezas na pessoa única de Jesus Cristo.

Diz o Concílio de Calcedónia (451), quarto concílio ecuménico, na quinta sessão (22 de outubro de 451), onde formula o ‘credo de Calcedónia’, acerca das duas naturezas em Cristo: “Seguindo, pois, os Santos Padres, ensinamos unanimemente que há que confessar um só e mesmo Filho e Senhor nosso Jesus Cristo: perfeito na divindade, e perfeito na humanidade; verdadeiramente Deus, e verdadeiramente homem <composto> de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade, em tudo semelhante a nós, exceto no pecado; gerado do Pai antes dos séculos segundo a divindade, e nos últimos dias, por nós e pela nossa salvação, gerado de Maria Virgem, a mãe de Deus, segundo a humanidade.” (Tradução nossa, a partir da edição de Heinrich Denzinger e Peter Hünermann, El magistério de la Iglesia: Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Barcelona, Herder, 1999, n. 301

Jesus Cristo não tem as características de uma quimera, em que cada uma das naturezas tem de ceder espaço à outra para poder existir. As duas naturezas estão presentes, plenamente, numa afirmação clara de que Deus não anula o homem nem a plenificação deste significa a anulação de Deus. Ele é ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente Homem’. Uma tal verificação contraria, aliás, as presunções da história, em particular do século XIX, onde algumas correntes ateias pretenderam denunciar que a fé religiosa significaria a anulação do ser humano. A afirmação de Calcedónia rejeita tal conclusão. Jesus não é, à maneira das sedutoras sereias, voz que atrai para o abismo, supondo que uma natureza limite a outra: pelo contrário, na Pessoa de Jesus Cristo, explicita-se que a realização máxima do Homem não significa o recuo de Deus, assim como a plena expressão de Deus, na História, não comporta o esvaziamento da humanidade.

A voz que atraiu Pedro do Ramires para o abismo era a de uma quimera, assim como a que obrigara Ulisses a prender-se ao mastro. A Palavra, que é o Verbo encarnado, atrai, mas já não para o abismo; antes eleva e redime os limites que se simbolizavam no mar, enquanto metáfora do abismo. E só é possível porque, n’Ele, as duas naturezas estão completas, sem se limitarem uma à outra.



[1] Li a edição de 2021, da Oro, apoiada pela Câmara Municipal de Ovar e pelo Museu Júlio Dinis, e coordenada por José Licínio Pimenta e António França.

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