sábado, dezembro 16, 2023

A autodeterminação que só pode ser de género…

Há uma estratégia de lógica que nos permite identificar a qualidade dos nossos pressupostos: o exercício de os levar até ao absurdo. Se resistirem a esse exercício, podemos dá-los como úteis, eficazes e legítimos. Se não resistirem, convém arrepiarmos caminho.

Ora, um qualquer básico exercício de lógica permitirá verificar se podemos contar com essa fiabilidade quando se trata de adotar para a vida em sociedade o que está definido como sendo ‘autodeterminação de género’.

O pressuposto desta ‘teoria’ ou ‘ideologia’, que por ser ‘totalizante’ (ousaria chamar-lhe ‘totalitária’) deixa sem resposta quem é confrontado com o soundbite de quem a quer defender e pergunta ‘mas és a favor do sofrimento de uma criança que diz que é de outro género que não o seu?’, é o de que o género que nos identifica só nós podemos saber qual é, pois não é observável, de forma objetiva e a partir de indicadores biologicamente constatáveis.

Só o sujeito, de dentro para fora, sabe qual o género que o identifica.

Se tomarmos este pressuposto e o submetermos ao crivo do exercício ‘ad absurdum’, chegaremos à conclusão de que, se a autodeterminação de género afirma que é o indivíduo que determina qual o seu género e não a biologia ou a natureza, teremos de concluir que assim ocorrerá, também, em termos de idade e de todas as outras matérias que concernem à vida do referido indivíduo a quem se conferiu a qualidade de critério primeiro e único de toda a identidade que lhe concerne.

Sendo assim, e aplicando à vida da escola, âmbito sobre o qual determinou (!) o parlamento que deveriam aplicar-se, no imediato, decisões que concernem à autodeterminação de género (curioso que não se tenha definido isso em relação, por exemplo, aos centros comerciais, às instituições públicas várias – hospitais, centros de saúde , serviços de toda a natureza, etc…), então, as conclusões a retirar sobre o impacto da aceitação de tal conceito de autodeterminação podem configurar-se em interrogações como estas: porque não pode, então, um aluno de primeiro ano que sofre por estar nesse ano quando se sente mais identificado com os colegas de quarto ano ou de quinto ano, exigir que o coloquem num ano posterior? Porque não pode um aluno que se sente pobre (afinal, não tem telemóvel como tantos outros colegas, ou computador ou roupa desta ou daquela qualidade…) exigir que lhe sejam atribuídos os benefícios próprios do sentimento profundo que tem? Porque não pode um aluno que tem dez anos, mas se sente com a responsabilidade de um de dezoito anos, votar ou receber um salário (pois, afinal, não é a sua profissão a de estudante?)? Porque não pode um aluno que sofre e foge da escola por causa desse sofrimento, exigir que lhe permitam abandonar de vez a escola, mas o forçam a frequentar uma imposição chamada ‘escolaridade obrigatória’? Porque não pode um aluno, que sofre por ter essa malfadada matemática, exigir deixar de a ter, assim como todas as disciplinas que detesta e lhe causam sofrimento?

E poderíamos continuar…

Para todas estas questões, sabemos que a resposta não é a legitimação do ‘sentir’ individual, mas o acompanhamento e o discernimento entre indivíduo e sociedade, numa articulação em que a prevalência nunca é absoluta de um só dos lados.

Na autodeterminação de género esse equilíbrio perdeu-se, prevalecendo, de forma absoluta, o indivíduo, fechado sobre si, sem história nem natureza, sem herança mas todo autogerado, tornado o centro exclusivo e cabendo a todo o mundo mudar-se para se conformar a ele.

Uma visão deste género mata a sociedade, mata as relações, obriga a esperar que o indivíduo diga quem é, havendo um absoluto silêncio prévio. Torna impossível saber quem é o outro, enquanto herança e acolhimento. Não há reciprocidade: há um movimento de único sentido: do indivíduo para os outros. Não pode, por isso, senão ser fonte de litígios, pois toda a ousadia de dizer que o outro é quem conhecemos, porque é portador de uma história, é tomada como um insulto e uma agressão.

Imagine-se o que seria a sociedade se a todas as relações se aplicasse este princípio: nada poderia pressupor-se, antes de que todos os dados fossem facultados por cada indivíduo.

É por tudo isto que a lei sobre a autodeterminação de género, nas escolas, é grave e trai a confiança em que assentam as relações: a confiança de que quem eu tenho diante de mim é alguém que eu conheço. Uma sociedade em que a autodeterminação que, agora, é de género, fosse de todas as condições, seria uma sociedade ‘alzheimer’, uma sociedade de amnésia total. Nada do que fomos estaria em cada presente, pelo que nada do que somos seria futuro.

É isto que queremos?


terça-feira, dezembro 05, 2023

O Tempo É advento...

 (Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia) 

Só um olhar crente pode reconhecer, no tempo, a sua condição de ‘advento’, entendido como ‘aproximação’, ‘chegada’, ‘vinda’[1], termo que traduz, para latim, o que se dizia, em grego (no Novo Testamento) com ‘parousía’, evocando a ideia de ‘presença’, ‘chegada’, ‘ocasião favorável’[2].

Qualquer que seja a opção de tradução que tomemos, permanece a ideia da novidade que emerge, na história, assomando ao espírito humano como expectativa e realidade maior (divina) que se antecipa.

O termo não é, originariamente, cristão, antes, é cristianizado, sendo utilizado [na] ‘linguagem cultual primitiva [para designar] a vinda anual da divindade ao seu templo para visitar os seus fiéis. Segundo a crença pagã, cada deus permanecia no meio dos seus devotos durante o tempo em que a sua estátua estava exposta ao culto por ocasião da festa anual em sua honra. Na linguagem cortesã o advento designava também a primeira visita oficial de uma personagem importante com atributos divinos.’ [3]

Com ‘advento’ evoca-se esta tensão entre o tempo e o eterno, o efémero e o definitivo, sendo que a história da cristianização deste termo nos evidencia que é a original surpresa pela realidade maior que gera, nos sujeitos humanos, a atitude de expectativa. A anterioridade é a da realidade esperada, não a da espera, em si.

Com efeito, a história da emergência, na liturgia cristã, confirma-o.

A história da consolidação, na liturgia cristã, da celebração do advento, cujas primeiras referências nos aparecem em S. Hilário de Poitiers, por volta de 360, que fala de ‘um período de três semanas de preparação do natal, a começar no dia 17 de dezembro até ao dia 6 de janeiro’[4] e, depois reforçadas, no concílio de Saragoça, em 380, que ‘determina que ninguém falte à igreja nas três semanas que precedem a Epifania’[5], fixando-se, definitivamente, com a reforma gregoriana (séc. VII), com as características que tem hoje, depois de ter chegado a ser de quarenta dias – que lhe valera o nome de ‘quaresma de inverno’ (indo desde a festa de S. Martinho até à Epifania)[6]-, evidencia que, primeiramente, o olhar se concentra na festa do Natal, só assente nas vivências cristãs muito após a centralidade consolidada da Páscoa, criando-se, só depois, o estado de expectativa e esperança.

Ora, retomemos, por isso, a ideia inicialmente exposta de que “só um olhar crente pode reconhecer, no tempo, a sua condição de ‘advento’”.

Caminhamos… Como diz Gabriel Marcel, somos ‘homo viator’. Mas que natureza tem este nosso caminhar?

Não o sabemos, previamente.

O caminhar humano pode não ser mais do que um ‘errare’, termo que significa, simultaneamente, ‘vaguear’, ‘deambular’, ‘andar ao acaso’, e, também, ‘afastar-se da verdade’, ‘estar em erro’, ‘errar’, ‘cometer um erro’.

A densidade semântica do termo, que se mantém na nossa língua, é particularmente significativa. Definir-se-á o caminhar humano como o de um ser que ‘erra’?

A visão crente antepõe a esta metáfora do errante uma outra, na qual se repercute a densidade da ideia do advento: a do peregrino…

O peregrino vive em advento. O seu tempo, o seu caminhar não é o do errante, mas o de quem se encaminha, expectante, para um horizonte. Não um horizonte que ele cria, mas que se abre, diante dos seus olhos, como realidade que o ‘invade’ e o projeta para a frente (precisamente o que afirma a ideia de ‘projeto’ – ‘lançar-se para diante’). Sendo o tempo um advento, tudo adquire um outro significado, tornando-se a própria realidade já não um ‘objeto’, uma realidade exposta, sem densidade, mas o lugar de uma tensão; a realidade torna-se toda ela, no dizer de W. Pannenberg, proléptica, antecipatória[7].

Caminha-se… mas não se caminha sem rumo. Caminha-se para algures… E, em cada expressão, mesmo que diminuta, de significado e de sentido, densifica-se a realidade como experiência simbólica, experiência que une o ‘já’ e o ‘ainda não’. Como dizia o então Professor Joseph Ratzinger, numa luminosa homilia na Catedral de Münster (em 1964), ‘estamos no Advento. Todas as nossas respostas continuam a ser peças soltas, fragmentos parciais. A primeira coisa que temos de aceitar é, sempre, esta realidade do Advento permanente.’[8]

Desta constatação aparentemente tão simples resultam duas consequências muito significativas: sendo tudo um advento, sendo o tempo lugar da espera e da esperança, resulta daqui que, por um lado, o absoluto não é, ainda, o agora (quantas consequências para a leitura sobre o fundamentalismo e a presunção da total posse da verdade! Na senda do que entende o mesmo professor Ratzinger, o advento é, aqui, um ‘ainda não’[9]), pois o absoluto encontra-se para além da História, como eterno para o qual se encaminha o tempo; e, em segundo lugar, o tempo também se densifica, pois, nele, prepara-se o eterno ou, como diz Leonardo Boff, no tempo ‘transparece’[10] o eterno (Ah, quantas consequências para os relativismos e todas as indevidas errâncias pós-modernas e hipermodernas! De acordo com esta segunda conclusão, a condição de ‘advento’ diz do tempo que ele é, também, um ‘já’.).

O tempo é advento… É um longo advento. Algo se aproxima, Alguém se revelará quando, definitivamente, o tempo der lugar ao eterno.

Mas, até lá, somos peregrinos. Não erramos!

 



[1] Cfr. Dicionário de Latim-Português, Porto, Porto Editora, 2001, 2.ª edição.

[2] Isidro Pereira, Dicionário grego-português e português-grego, Braga, Livraria A.I, s/d, 8.ª edição.

[3] Pedro Ferreira, OCD, ‘O tempo do advento’, in A celebração do mistério do Natal, Coimbra, Gráfica de Coimbra, p. 47.

[4] Art. Cit,, p. 48.

[5] Ibidem, p. 48.

[6] Cfr. Ibidem, pp. 48-49.

[7] Cfr. Luís Silva, Teologia, ciência e verdade: fundamentos para uma definição do estatuto científico da teologia segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004, p. 102.

[8] Joseph Ratzinger, Do sentido do ser cristão, Cascais, Principia, 2009, pp. 35-36.

[9] A citação mais completa da homilia do prof. Ratzinger (Papa Bento XVI) evoca esta ideia de que, por estarmos em Advento, estamos num tempo de incompletude, ‘antes de Cristo’: ‘A primeira coisa que temos de aceitar é, sempre, esta realidade do Advento permanente. Se o fizermos, vamos começar a reconhecer que a fronteira entre «antes de Cristo» e «depois de Cristo» não é exteriormente transversal ao tempo histórico e não pode ser registada no mapa, mas que atravessa o nosso próprio coração. Enquanto vivermos do egoísmo, da concentração em nós próprios, estaremos, ainda hoje, «antes de Cristo».’ - Joseph Ratzinger, op. Cit., p.36.

[10] Cfr. Leonardo Boff, Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos, Petrópolis, Vozes, 1993.

quinta-feira, novembro 30, 2023

É impreciso falar-se de ‘direitos dos animais’ | Melhor seria falar-se de ‘deveres assumidos pelos humanos para com aqueles’

 

Estamos num tempo em que, imprecisão após imprecisão, se vão consolidando ideologias que percebemos não serem corretas ou ajustadas, mas a que nós próprios nos vamos ajustando, para não divergirmos dos demais. Mas lá chega o momento em que a consciência nos acusa de não termos ousado dizer o que se impunha…

Há muito que a reflexão sobre a matéria que se adianta no título se me vem impondo, mas tenho-lhe resistido. A circunstância de ter lido o enunciado de um teste a que respondeu um dos meus filhos, no contexto escolar, onde estas matérias apareciam todas baralhadas, despertou-me para a necessidade de enfrentar o assunto.

Enfrentemo-lo, então…

Desenvolvo esta reflexão a partir de uma ideia que ouvi, pela primeira vez, ao eminente e sábio professor Walter Osswald.

Vamos, então, ao assunto…

O reconhecimento da condição de se ser portador de direitos é um exclusivo de sujeitos morais, capazes (ou potencialmente capazes…) da sua reivindicação.

Facilmente compreenderemos que a possibilidade da definição e reivindicação de direitos é, pelo que se acaba de dizer, exclusiva do ser humano, sujeito que, por reunir as condições para ser reconhecido como detentor de direitos é, também, igualmente, sujeito portador de deveres. Uns e outros, direitos e deveres, são as duas faces de uma mesma moeda.

O progresso no reconhecimento destes direitos é, dada a potencialidade também incluída na definição acima enunciada, extensível a todos os humanos, estejam eles ou não na efetiva e atual posse das capacidades plenas de reivindicação ou, por circunstâncias mais ou menos efémeras, impossibilitados de as exercer.

Ora, face a esta clara definição das condições necessárias (e não só suficientes) para o reconhecimento de que um sujeito é portador de direitos, facilmente se concluirá que, no caso dos animais (ou, mais extensamente, no caso da natureza), só impropriamente se lhes poderá aplicar a designação de ‘direitos’ para se referir a condições de proteção destes perante os restantes seres.

Primeiro, porque não se poderia imputar a outros sujeitos (que não aos humanos) o dever de respeitar os putativos direitos dos animais em caso de desrespeito (como reivindicar, por exemplo, à natureza que respeitasse os direitos dos animais exigindo-se-lhe determinados deveres?) e, em segundo lugar, porque os animais não são, eles próprios, sujeitos morais, capazes (ou sequer potencialmente capazes) de assunção de responsabilidade ou de reivindicação dos seus hipotéticos direitos.

Como, então, colocar a questão aqui suposta?

Naturalmente, o único modo preciso de abordar a questão é a partir dos sujeitos morais, já anterior e exclusivamente identificados com os sujeitos humanos.

A estes pode exigir-se-lhes responsabilidades, deveres que decorrerão, não do reconhecimento de direitos inerentes àqueles que vimos não serem sujeitos morais, mas de uma assunção de compromisso, da parte dos sujeitos morais (os humanos) de não causar dano ou mal indevido porque esse dano ou mal é gratuito e denunciador de uma atitude intrinsecamente violenta.

Percebamos que a abordagem que vem cavalgando a ideia de que existam ‘direitos dos animais’ ou ‘direitos da natureza’ tem pressupostos que ainda não denunciámos mas de que importa ter consciência.

 

Pode a ciência fundamentar a ética?

Para o fazermos, comecemos por recordar o que afirmava Albert Einstein, num conjunto de textos por si publicados entre 1939 e 1941, dedicados à discussão sobre a relação entre ciência e religião. (Seguimos, aqui, a edição da Relógio D’água, publicada em 2005).

Diz Albert Einstein: ‘[…] a ciência pode apenas indagar aquilo que é, mas não o que devia ser, e fora do seu domínio permanece toda a esfera dos juízos de valor, cuja necessidade ninguém discute.’ (p. 275)

Esta citação é muito relevante para a reflexão, pois vinca com clareza que não compete à ciência fundamentar o domínio ético, o domínio dos valores.

Está, porém, no pensamento dos defensores de que existam ‘direitos dos animais’, um pressuposto diretamente recolhido da ciência, sem qualquer filtro. Na verdade, os defensores desta ‘causa’ sustentam a sua reivindicação na ideia de que a evolução das espécies demonstraria que, entre os humanos e os demais animais, não haveria uma distinção fundamental, essencial, mas uma pura circunstância a superar. Como bem observa Johannes Hartl, no seu luminoso livro ‘A cultura do Éden’ (ediciones Rialp, 2023), todo o reducionismo consiste em definir os humanos como não sendo ‘mais do que…’.

Se é verdade que há muitos aspetos de semelhança entre os animais e os humanos, o que espanta, porém, é aquilo em que se distinguem e que os distancia abissalmente, como genialmente registou o grande Chesterton, na sua obra Ortodoxia (sigo a edição da Alêtheia, 2008, p. 205): ‘Aquilo que tem de ser explicado não é a semelhança, é a monstruosa escala da dissemelhança. Que o homem é parecido com os animais é, em certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão parecidos, eles sejam tão inconcebivelmente diferentes, isso é que é um choque e um enigma’.

É, aliás, nesse fundamento que assenta o reconhecimento da intrínseca dignidade humana, com todas as implicações que daí decorrem.

Com isto, esvaziamos um dos pressupostos ocultos na reivindicação da existência de supostos ‘direitos dos animais’: a sua base científica.

 

Oriente e ocidente: dois modos distintos de ver a realidade

Mas há um outro pressuposto igualmente implícito: o da fusão das identidades numa unidade cósmica indiferenciada.

Para enfrentar este pressuposto, recordo que esta visão nos chega do oriente. Cabe, por isso, consciencializar que, entre o ocidente e o oriente, há duas linhas que caminham em paralelo, mas que não se chegam a cruzar. Muito há em comum entre o oriente e o ocidente e muito há a receber, reciprocamente. Mas há um elemento que os distingue e que dificilmente poderá conciliar-se: o oriente jamais seria capaz de gerar o conceito de pessoa, nascido no ocidente, da convicção de que o mundo se realiza no encontro das diversidades. O oriente supõe que o universo nasce e caminho para o uno, numa fusão absoluta. O ocidente pressupõe que tudo nasce da diversidade (Deus é trino) e caminha para o encontro definitivo nas identidades diversas…

Estes dois pressupostos antagónicos refletem-se nesta questão dos supostos ‘direitos dos animais’. A distinção é ocidental; a fusão é oriental.

Os reivindicadores dos putativos ‘direitos dos animais’ pressupõem que, entre os humanos e os animais, tudo se fundirá, pelo que a indistinção é reivindicada como condição de existência. O ocidente, gerador da ideia de pessoa, da individualidade relacional, pressupõe, sempre, a distinção.

Distinção que se expressa, também, na distinta condição dos humanos perante o resto da criação, pela qual são responsáveis e a qual estão incumbidos de cuidar, mas sabendo que, entre eles e o resto da criação, há uma condição hierarquicamente distinta. Só esta condição hierarquicamente distinta os pode, também, responsabilizar, pois se tudo é indistinto, ninguém é responsável por nada.

Parece ser essa a intenção dos que reivindicam as indistintas condições humana e animal: concluir-se que ao homem nada mais possa e deva pedir-se do que o que se poderia pedir ao ‘inimputável’ animal. Inquieta-me que alguns vão preparando o terreno (ainda só teórico e num horizonte que parece distante, mas, até quando?...) para que, um dia, aos próprios animais se aplique o (outro conceito impreciso) estatuto de ‘pessoas’…

É por isso que é preciso afirmar que a verdadeira responsabilidade (deve e) nasce do reconhecimento do único sujeito moral, o humano, o único capaz de ser autêntico portador de direitos, mas também o exclusivo detentor de deveres, cabendo concluir-se que, ao falar das matérias aqui abordadas, é impreciso e incorreto falar de ‘direitos dos animais’ ou ‘direitos da natureza’, devendo-se, antes, afirmar-se estar perante deveres assumidos pelos humanos em relação à natureza e aos animais.

 

quarta-feira, novembro 15, 2023

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Do amaldiçoado Édipo ao Bendito Filho do Altíssimo

  Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ tem-nos levado a percorrer os caminhos que aproximam e distanciam a cultura clássica, profundamente trágica, e a cultura surgida do cristianismo, redentora da tragicidade com que a vida se afigura. O trágico é omnipresente e o ‘ar que se respira’, na cultura grega; o trágico é o ponto de partida mas não o de chegada, na cultura emergente do acontecimento ‘Cristo’.

Numa e noutra, a consciência da dualidade da vida existe, mas, numa, a visão trágica grega, ela converte-se num dualismo, de que Platão e os seus seguidores são o máximo expoente, que deseja o abandono do corpo e da matéria a que atribui a origem do mal; na outra, essa consciência faz-se de um olhar atento que vê o mal habitar o coração do homem, como expressão de um englobante livre arbítrio, mas que o redime para o superar, nada abandonando, mas tudo assumindo para o transcender.

Um dos âmbitos em que essa tragicidade é particularmente notória é a que concerne às relações familiares.

A tragicidade com que os gregos veem a vida repercute-se nas relações mais radicais da condição humana. Veja-se quão central é, entre os mitos gregos, a história de Édipo e tudo o que a envolve. Difícil será imaginar maior tragédia, toda ela verificada no âmbito das relações familiares

 

O mito de Édipo

Recordemos os traços mais largos deste denso mito, com a consciência da sua importância para a cultura grega… Seguimos o que nos conta Pierre Grimal, no seu ‘Dicionário da mitologia grega e romana’ (edição da Antígona Editores, 2020)

Édipo é filho de Laio, rei de Tebas, descendente de uma família que reinou na cidade ao longo de gerações.

Há discussão sobre o momento em que é anunciada a maldição que impenderá sobre esta criança, mas seguindo a versão adotada por Sófocles, ao nascer, um oráculo anuncia que esta criança matará o pai e casará com a mãe. Para evitar que o oráculo se concretizasse, Laio ‘expôs o filho’ (p. 127), isto é, segundo uma das versões, foram-lhe atados os pés (donde vem o nome dele – Édipo quer dizer ‘pés inchados’) e atirado ao mar, e, segundo outra, foi deixado ao abandono num monte. De qualquer modo, sublinhe-se este ‘desprezo’ pelo filho, neste caso, por causa de um destino. Hoje esta crença no destino (vejam-se os pretextos para o aborto alegando-se que se vai ser pobre ou infeliz ou… ou… A lógica é semelhante. O destino está traçado e nada parece haver a fazer… A visão cristã contrasta, radicalmente, com esta perspetiva…) continua entre muitos, expressando a presença dessa visão trágica de que temos vindo a falar.

Mas retomemos a história de Édipo.

Édipo é, então, exposto. Deixado ao abandono, contraria as expectativas do rei e sobrevive, tendo, segundo algumas versões, vivido na corte de Políbio, soberano de Corinto (ou de outras localidades). O tempo passa e vem a dar-se o trágico encontro fortuito entre Édipo, que pensa, toda a vida, ser filho de Políbio, e o rei de Tebas, Laio (seu pai verdadeiro). Desse encontro (também ele diverso nas várias versões conhecidas do mito) resulta a morte de Laio e a ida de Édipo para Tebas, onde se apaixona por Jocasta, a esposa de Laio (e, está fácil de ver, mãe desconhecida dele) ou, noutras versões, casa com a mesma em virtude de ter conseguido livrar Tebas da esfinge que devorava, diariamente, um tebano, até que conseguissem decifrar o enigma em que ela perguntava ‘qual o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro, e que, contrariamente ao normal, é mais fraco quando usa o maior números de pés’. Descobrindo que era ‘o homem’, Édipo destrói a esfinge e é-lhe dada a possibilidade de casar com a rainha viúva.

A tragédia prossegue e, em período de uma peste, é-lhe dado a conhecer que o responsável por ela é o assassino do rei Laio. Édipo lança uma ‘caça ao homem’, até que descobre ser ele mesmo o dito assassino.

Édipo cega-se e Jocasta suicida-se.

 

Leitura do mito em contraste com a visão cristã da vida

É difícil imaginar maior tragédia, sendo que a visão grega não consegue vislumbrar saída. Nem os deuses gregos parecem escapar à força do destino, o que deixa num beco sem saída uma cultura que adote esta visão.

A densidade deste mito agudiza-se se tivermos em conta que ele exprime algo das próprias vivências gregas. Valerá a pena recordar, repercutindo o que nos conta Miguel Morgado no seu luminoso livro ‘Guerra, império e democracia’ (Publicações Dom Quixote, 2023), como eram tratadas as crianças, no contexto da cidade-estado de Esparta, cidade grega rival da de Atenas. Diz Miguel Morgado: ‘A educação era pública e, a partir dos sete anos, as crianças eram retiradas aos pais, ricos e pobres, para serem sujeitas à mais feroz preparação militar. Eram entregues a um «bando» - agélé – de meninos da mesma idade. Aprendiam a sobreviver sozinhos, com pouca comida – e daí terem de roubar, apesar do risco de castigos corporais terríveis se apanhados em fragrante delito – e completamente expostos ao frio e ao calor. […] Os espartanos praticavam sistematicamente o infanticídio. Não como controlo do crescimento da população, mas como técnica eugénica. Não podiam sobreviver em Esparta os recém-nascidos com deformações ou debilidades físicas.’ (pp.226-227)

Repercutir estas constatações expõe o alcance do ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’. Na verdade, pressentimos, nestas palavras algo do que vamos notando na cultura contemporânea que, a pretexto de ‘progressos’, afinal, retoma práticas que o cristianismo superara.

A visão pessimista sobre a criança, presumindo a ‘indignidade’ da criança débil e frágil, contrasta com a visão cristã que, olhando a densidade da realidade humana, a debilidade e vulnerabilidade dos recém-nascidos, reconhece, até no infante frágil depositado na manjedoura, (o mesmo que, volvida uma semana, será reconhecido como sinal de contradição), a presença do divino entre os homens. Na visão cristã, o trágico redime-se com a transparência do eterno no efémero. Aquela criança, aumentando-se o contraste com a visão trágica, é, não apenas sinal, mas o próprio Deus, na pessoa do Filho, superando a força negativa que a tragédia colocava nos filhos.

O caminho que nos leva de Ítaca (aqui tomado como símbolo da cultura grega) até ao futuro sonhado no Éden mostra-nos, em contraste, as duas matrizes que a nossa cultura continua a fazer conviver, nem sempre consciente do alcance de uma e outra. Regressámos, com Ulisses, enquanto Penélope tecia e desfazia o tecido, fiel e resistente, esperando pelo marido, que ela cria vivo e a caminho de casa. Muito da cultura grega nos chega, positivamente, mas a visão trágica precisa da redenção, para que Penélope não tenha tecido, em vão, a esperança do retorno sempre desejado. O Éden não é um mito do passado: é o futuro nascido das mãos de um Deus que cria bom, mas cuja criação, existente no efémero, sente a sedução da decadência. O sonho do Éden vitaliza o bem e supera o mal, não como dois princípios em conflito, mas como a total concretização diante da insuficiente realização.

Hoje, como sempre, ao longo destes dois mil anos, as duas matrizes convivem, mas as implicações de uma e outra são distantes nos seus resultados. Muitos sentem a sedução da tragédia, mas o beco sem saída deveria acordar do torpor. Acordará Ulisses a tempo? Ou não lhe restará senão cegar-se, como Édipo, e deitar termo à vida, como Jocasta.

No cristianismo, ‘espada que trespassará o coração da mãe’ não é a última palavra, mas o passo anterior à redenção. Que espada escolhemos? A trágica de Jocasta ou a redentora da Mãe com o Filho no regaço?

terça-feira, outubro 17, 2023

Conferência | A busca da construção da identidade perante os desafios de uma ideologia que abandona na solidão. Ideologia de género: uma cultura que pede salvação!

 

A busca da construção da identidade perante os desafios de uma ideologia que abandona na solidão.

Ideologia de género: uma cultura que pede salvação!

 

 (Conferência proferida no Simpósio 'Lugares da afetividade e da sexualidade na configuração da identidade pessoal | 28 e 29 de janeiro de 2023 - Coimbra | Publicada pela UCE)

Saudações (também eu sou, - porque fui, durante 11 anos – escuteiro.)

Saúdo o CNE, uma grandíssima escola de formação. Nele, descobri que, pelo jogo, podemos aprender porque o jogo é metáfora e símbolo que une realidade e imaginação. Muito do que sou, como professor, deve às vivências que fiz e à experiência que guardei.

 

Nota introdutória

Deram-me 5 minutos.

Como é um tempo muito curto, sugiro que, quando eu tiver cumprido os 5 minutos, todos parem os respetivos relógios. Quando eu acabar, voltem a olhar para o relógio. Repararão que só passaram os tais 5 minutos…

Se virdes bem, eu podia acabar a minha intervenção aqui…

O que acabei de vos sugerir utiliza a matriz da ideologia de género que não se confronta com a realidade e não a assume, com os seus limites, mas muda, apenas, a perceção sobre ela, convencendo-se de que essa perceção é a própria realidade.

 

A questão

É impossível analisar, criticamente, a enorme pressão exercida sobre os movimentos e organizações cristãs para que reconfigurem o seu discurso e práticas em matérias de leitura da sexualidade sem atender ao paradigma cultural emergente, habitualmente designado como ‘ideologia de género’. Uma ideologia pressionante, convincente e que exclui quem a ela não adere, retirando atitude crítica e distância racional que sempre se exige, em tempos de vertigem. O próprio Papa Francisco nos recorda as características desta ideologia, alertando para os riscos da promoção de projetos educativos que cedam a esta pressão[1].

A consciência desta pressão e desta ideologia não pode, porém, apagar o dever amar e acolher cada pessoa, desafio com que se depara cada cristão, no seu quotidiano, decorrendo do reconhecimento de se nascer do Amor que é o próprio Deus.

A articulação entre a leitura ético-moral proposta pela ideologia de género e a antropologia e ética cristãs é, por isso, exigente e difícil, sendo que o problema se adensa quando nos perguntamos sobre a atuação pastoral diante de tudo isto.

 

Metodologia que seguirei

Pois bem, consciente desta dificuldade, proponho-me enfrentá-la.

Para isso, seguirei duas linhas:

- Uma primeira incidirá sobre os desafios que coloca a ideologia de género à visão cristã.

- Uma segunda abrirá linhas e critérios para uma atuação pastoral.

Considero que, para abordar estas duas linhas, teremos de nos confrontar com interrogações para as quais procurarei esboçar alguma linha de resposta:

- acreditamos, verdadeiramente, na liberdade humana perante os determinismos? Quanto há de liberdade numa orientação sexual e nos atos realizados no contexto dessa orientação?

- acreditamos, verdadeiramente, no perdão e na capacidade da conversão?

- acreditamos, verdadeiramente, que o cristianismo tem uma proposta de salvação para todos os homens e para o homem todo?

- acreditamos, verdadeiramente, no amor como a força mais radical da realidade e como a sua fonte?

- Mas, em que liberdade e em que amor acreditamos? E o que significa ‘salvar’ os homens todos e todo o homem? E que caminho e papel deve ter cada Homem em direção à salvação? Está fora desta equação sobre a salvação o que fazemos enquanto seres sexuados? A nossa sexualidade não participa da história da salvação? É terreno neutro?

Não irei responder a todas as perguntas, mas a sua enunciação já abre caminhos de discussão…

 (Esta conferência está publicada, integralmente, em Américo PEREIRA (coord.), Lugares de afetividade e de sexualidade na configuração da identidade pessoal, Lisboa, UCP  Editora, 2023. )

sexta-feira, setembro 15, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Cidadãos entre duas cidades

 Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)



Troia e Ítaca… Os dois polos de uma tensão terrena. Uma tensão sempre resolvida, ao longo da história, com a derrota de uns e a vitória de outros. Assim foi… Assim parece que será, sempre.

Mas assim tem de ser para sempre?

A viagem de Ulisses prolonga-se, ficcionadamente, na mente dos nossos leitores, até um momento da história humana em que a interrogação foi enfrentada, com detenção: 24 de agosto de 410 d.C..

Roma, a cidade eterna, é saqueada. (66 anos depois, será, mesmo, tomada…)

Alarico, o chefe dos visigodos, toma de assalto Roma e provoca um abalo, que volvidos mais de 1600 anos, poderemos equiparar (para que a comparação crie o modelo de constaste, diante do qual teremos de acrescentar densidade…) ao abalo provocado pelo 11 de setembro de 2001.

Como é possível que Roma tenha sido saqueada? Abandonaram-na os deuses?

(Remeto para a leitura do inteligente livro de Miguel Morgado, ‘Guerra, império e democracia’ [Pub. D. Quixote, 2023] a recolha dos detalhes e do alcance deste evento…)

Perante este evento demolidor, prontamente é recuperada a tese de que aos cristãos se deve esta derrota, pois o seu descomprometimento com a ‘política’ romana e a sua indisponibilidade para a divinizar pareceram suavizar o império e favorecer o abandono de Roma por parte dos deuses.

Esta acusação não é de hoje (o hoje de 410 d.C.), mas foi revitalizada com este susto.

A circunstância foi o pretexto para a escrita de uma das mais relevantes obras de toda a história da literatura ocidental (disponibilizada, em pdf, aos leitores portugueses em edição rigorosa repetidamente publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian: https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-de-deus-i/), por um genial cristão que bem conhecia os meandros do paganismo em que ele mesmo se movera antes de conhecer o cristianismo. ‘A cidade de Deus’, da pena de Santo Agostinho, uma extensa obra emerge como resposta a um duplo desafio, recordado por Miguel Morgado, na obra acima referida: «[…] agora, que Roma mostrava as suas terríveis vulnerabilidades perante bandos de bárbaros, a perplexidade era grande. Roma não tinha qualquer missão divina. Caso contrário, Deus não a teria deixado cair. Ou então, blasfémia das blasfémias, o Deus que substituíra os deuses afinal não o era. Agostinho teve de desarmar ambos os lados, tantos os dependentes da tese de que Roma era o agente político imprescindível da redenção do mundo como os que viam na queda de Roma cristianizada a demonstração de que o Deus dos cristãos era um ídolo de barro incapaz de proteger a sua capital.» (pp. 211-212)

Uma leitura atenta desta síntese perceberá as questões revisitadas, vez após vez, na história destes dois mil anos de cristianismo: a tentação da absolutização de um modelo político e a sedução da fuga do mundo.

Agostinho encontrou uma via genial, sistematizando a leitura fina que o cristianismo trouxera e de que a célebre ‘carta a Diogneto’ era um exemplo a recordar: «Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» (https://www.snpcultura.org/pedras_angulares_a_diogneto.html)

Na síntese de Agostinho, recorda-se que «[…] estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas.» (A cidade de Deus, volume I, livro I, capítulo XXXV). No capítulo IV do livro XIV, Santo Agostinho define a natureza das duas cidades: «existem duas cidades diferentes e contrárias- porque uns vivem em conformidade com a carne e outros em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se pode dizer que uns vivem em conformidade com o homem, e outros em conformidade com Deus.» E, mais adiante, no capítulo XXVIII do livro XIV (II volume da edição da FCG), precisa: «Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus - a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si - a celeste.»

Recuperando o paralelismo que temos vindo a construir, ao longo desta rubrica ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’, poderemos constatar que, se Ulisses sossegará quando chegar a Ítaca, uma cidade geograficamente localizável, no caso do cristão, essa ‘tensão’ nunca será definitivamente resolvida, neste tempo e nesta ‘geografia’. E essa é a genialidade de Santo Agostinho: assegurar-nos a certeza de que as duas cidades convivem, coexistem, na história, faz-nos sempre cidadãos comprometidos, mas como peregrinos (para utilizar a terminologia da carta a Diogneto). É, por isso, infundada a acusação dos pagãos de que o (suposto) descomprometimento político dos cristãos tenha sido o responsável pela queda de Roma, mas sim a coincidência de Roma com a cidade terrestre, a cidade do ‘amor a si próprio’. A causa da queda de Roma está na sua própria condição decadente e não no amor ao outro, proposto pelo cristianismo. A não divinização da cidade terrena ‘Roma’ não é, por isso, expressão de uma falta de compromisso político, pois, como defende Santo Agostinho, ‘o bom cristão é pura e simplesmente o melhor dos cidadãos’ (Miguel Morgado, p. 212). É, antes, a assunção de que a cidade terrena não é, ainda, a cidade definitiva. Na cidade terrena transparece (mesmo que sob muita opacidade) a cidade de Deus se nela se praticar a justiça e o amor ao outro.

A queda de Roma (e as suas perplexidades) continua a latejar no coração do mundo e dos cristãos. A sedução e a tentação de cair para a divinização das novas ‘Romas’ ou para a fuga do mundo por nada nele haver da cidade de Deus continuam vivas como no tempo do bispo de Hipona. E então, como hoje, a consciência de que ser cristão é viver essa tensão de se ser cidadão de duas cidades emergia luminosa e esclarecida perante todos os saques e acusações dos pagãos…

quarta-feira, setembro 06, 2023

In Memoriam | Doutor Pinho Ferreira, um gigante com coração simples

 

Fui aluno do Doutor Pinho Ferreira em dois momentos distintos do meu percurso académico: em Coimbra, no ISET, instituto que funcionava no Seminário da Sagrada Família, entre 1992 e 1996, e no Porto, na Faculdade de Teologia, em 1997-98. Desde a primeira hora, suscitou-me espanto e assombro o contraste entre o distinto professor, que suscitava respeito e um quase temor (era um gigante diante de todos nós…), e o verdadeiro espírito poético de um contemplativo que constatávamos em cada uma das suas aulas. Recordo-me de que, em Coimbra, as aulas começavam sempre com uma improvisada ode à tranquilidade do Seminário, à pureza do ambiente, à melodia natural que se ouvia, em contraste com o bulício da cidade. As suas palavras leves e de grande lirismo (quando não mesmo de humor muito fino – ‘canónico!’ dizíamos) contrastavam com o aspeto aparentemente pesado que o primeiro olhar captava. Fazia-nos sentirmo-nos como que regressados ao Éden…

Quem o via e se fixava no que via errava na avaliação do homem que aquele corpulento andar parecia acompanhar. A lentidão do seu andar não era a do peso de quem não quer ir longe ou de quem não consegue andar, mas a da ponderação de quem sabe que é perdido o andar que não se rege pela verdade. Os seus passos, comedidos e compassados, expressavam o carácter de um professor que nunca deixava nenhum aluno sem resposta, sempre num profundo respeito pela pessoa aprendente. Muito guardei para mim, para o professor que hoje sou, do que observei no Doutor Pinho. Nunca o vi dizer a um aluno que a resposta estava errada: media, com pedagogia, as palavras, de modo a levar o aluno a concluir que errara. Tratava-nos sempre na terceira pessoa. Interpreto-o (porque assim o senti, então!) como franco sinal de respeito por nós. Respeito que é particularmente ilustrado no que sempre ocorria numa determinada aula de direito sacramental em que se discutiriam os impedimentos dirimentes e não dirimentes e em que se definiriam os conceitos de matrimónio ‘rato e consumado’, ‘rato e não consumado’. Em aula determinada desse tema, o Doutor Pinho falaria do ato próprio (a relação sexual) pelo qual se ‘consumaria’ o sacramento (Ouvi, um dia, num casamento, que íamos assistir à consumação do matrimónio. Felizmente, era apenas erro em matérias de direito sacramental por parte do presidente da celebração e não se confirmou o que as palavras faziam prever…). Porque essa aula poderia ferir suscetibilidades, autorizava a ausência a quem pudesse sentir-se perturbado pela descrição (não tenho memória de ninguém faltar, sendo que estou certo de que correspondia a uma estratégia pedagógica feita de um humor inteligente que podemos confirmar todos os que com ele privámos).

Poderá pensar quem não pôde ter a honra de contar com o doutor Pinho por professor que, por tratar de matérias do direito, as abordagens eram fechadas e os assuntos encerrados. Recordo-me de que nos ‘levava pela mão’, através de interrogações, a abrir linhas de reflexão que sempre baseava em argumentos lógicos e coerentes. Assim aconteceu, por exemplo, ao abordar, na mesma cadeira de direito sacramental, a problemática do trabalho pastoral com quem se encontra unido sem ser pelo vínculo do sacramento celebrado em contexto eclesial. Não dava uma resposta. Suscitava uma interrogação: «deverá ser a mesma a abordagem perante quem está apenas ‘junto’ (as ‘uniões de facto’ são posteriores) de quem decidiu casar-se pelo civil?»

A interrogação ficava, antecipando, percebemos hoje, em algumas décadas, as mesmas interrogações da ‘Amoris Laetitia’, sempre sublinhando que o direito é dinâmico e existe para que, respeitando a verdade, se possa criar as condições para que o caminho (que envolve a pessoa toda e toda a pessoa) da salvação seja percorrido.

O Doutor Pinho era, a um primeiro olhar, tímido… possuía a timidez própria dos grandes sábios, sempre preocupados em que a sua participação no mundo seja serviço e respeito pelo outro. O outro era lugar de liberdade, a liberdade que, como homem do Direito, tão bem sabia ser a condição para a realização do humano, mas também marcada pela possibilidade da sua deterioração. Esse foi, provavelmente, um dos seus maiores legados: dizer-nos que a dimensão jurídica da Igreja não é apêndice ou acessória, mas a garantia de que, por ela, o caminho pode ser percorrido por todos, porque todos podem e a todos deve ser garantida condição para a procura da verdade. De outro modo, ficaria entregue à discricionariedade dos poderosos ou dos mais demagogos a reserva dessa procura da Verdade, do próprio Jesus Cristo.

Obrigado, Doutor Pinho. Deus, o único Justo, o guarde junto de Si.

quarta-feira, agosto 09, 2023

A laicidade: uma leitura sem preconceitos

 

A laicidade é uma conquista. Não de hoje, mas fruto de prolongado caminho em que não deu pouco contributo o cristianismo. ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ está, certamente, entre as mais decisivas afirmações para a consolidação da ideia da separação entre a religião e a política. Gogarten, um teólogo nascido em finais do século XIX e que viveu nos dois primeiros terços do século XX, ainda vai mais longe e vê, na conceção da realidade como sendo fruto da criação, a raiz última da laicidade e da secularização, na medida em que a ‘ideia de criação’ sustenta, fundamentalmente, o reconhecimento de que Deus e realidade criada são distintos, tendo esta uma autonomia que permite compreendê-la, no seu funcionamento, a partir das suas próprias condições.

É precisamente por causa desta distinção que resulta de dar a César o que lhe é próprio e a Deus o que lhe é exclusivo, que muitos, entre os quais destaco Zagrebelsky, que foi presidente do Tribunal Constitucional Italiano, defendem que o que é próprio de Deus, como, por exemplo, tirar a vida, deveria ser-lhe reservado, não sendo legítimo que os Estados se reconheçam esse direito… Consequência lógica de uma distinção que, porém, nestas discussões, tende a olhar, apenas, para as conquistas do lado da autonomia do Estado…

Regressemos à questão original que nos leva a esta reflexão: a ideia de que a laicidade é uma conquista.

É-o, de facto, mas importa reconhecer que o seu significado não é unívoco, sendo que pode, mesmo, chegar a ser equívoco.

Vejamos.

 

 

Laicidade: conceito inequívoco?

Enumeremos alguns exemplos de estados que reconhecemos como laicos: Reino Unido, Alemanha, França, Polónia, Portugal, etc….

Vejamos que entre estes cinco países, que reconhecemos como laicos, há cinco visões distintas dessa mesma laicidade.

A Constituição alemã, aprovada em 23 de maio de 1949, no rescaldo da II Guerra Mundial, e recolhendo as lições desta, começa por afirmar, no preâmbulo: «Consciente da sua responsabilidade perante Deus e os homens, movido pela vontade de servir à paz do mundo, como membro com igualdade de direitos de uma Europa unida, o povo alemão, em virtude do seu poder constituinte, outorgou-se a presente Lei Fundamental.» (Sigo a edição publicada aqui: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf). Sublinhe-se a consciência do povo alemão do dever de responsabilidade perante Deus e os homens…

Também a Constituição da República da Polónia se evidencia interessante para a nossa discussão, dado que é aprovada em 1997, após a dura experiência de submissão a um regime coletivista de matriz ateia: «Tendo em conta a existência e o futuro da nossa Pátria, Que recuperou, em 1989, a possibilidade de uma determinação soberana e e democrática do nosso destino, Nós, a nação polonesa - todos os cidadãos da República, Tanto aqueles que acreditam em Deus como fonte da verdade, da justiça, bondade e beleza, Como aqueles que não compartilham tal fé, mas que respeitam os valores universais de outras fontes, Iguais em direitos e obrigações para com o bem comum – a Polónia.» (Sigo a edição publicada aqui: https://jus.com.br/artigos/98104/constituicao-da-polonia-de-1997-revisada-em-2009).

No caso inglês, há que anotar que a laicidade deve ser pensada tendo em conta que há uma religião oficial, sustentada na ideia de que o rei/rainha é, por inerência, chefe da Igreja de Inglaterra. Uma laicidade sui generis… Mas não se duvida da laicidade, de tal modo que o sistema político inglês é, múltiplas vezes, tomado como exemplo e como origem do parlamentarismo moderno…

Já o caso francês deve fazer-nos pensar, pois é explícito na afirmação da laicidade da república francesa, ao dizer, logo no artigo 1º que «A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.» (Sigo a edição publicada em https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/as/root/bank_mm/portugais/constitution_portugais.pdf)

Na nossa perspetiva, a dificuldade que a república francesa tem em lidar com o fenómeno religioso nasce, precisamente, deste imbróglio que lhe é criado pela existência, na lei fundamental, de uma afirmação que parecendo inequívoca, é, efetivamente, muito equívoca. Estamos convencidos de que a França tem um problema religioso que, felizmente, hoje, não existe em Portugal, precisamente pelos constrangimentos que a afirmação de que a república francesa é laica lhe cria. O amplo espectro que o conceito de laicidade permite ter gera, facilmente, tiques laicistas que tornam o Estado indiferente à realidade religiosa, sumindo sob a capa de ‘inexistente’ um âmbito da vida dos cidadãos que poderia ser catalisador de consolidação dos liames sociais.

 

O caso português

Comparemos com o caso português, em que os constituintes de 1976 tiveram o cuidado de omitir a palavra ‘laico/a’, ‘laicidade’ para definir a relação entre o Estado e a Religião, sendo que é necessário esperar pelo artigo 41º para que se descreva esta relação. E diz-se, aí, após enunciar o dever de respeito pela liberdade de consciência, de religião e de culto por ser inviolável, (o que, nos pontos seguintes do mesmo artigo 41º é descrito com mais detalhe), que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.» (Artigo 41º, número 4), evidenciando-se que o acento está no respeito pela liberdade religiosa e pela independência das Igrejas em relação ao Estado e não, como se presume da constituição francesa, numa visão laicista do Estado, que o afirma como indiferente e neutro em relação à realidade religiosa.

Sublinho.

A constituição da república portuguesa nunca afirma que o Estado é ‘laico’ ou que a sua matriz seja a ‘laicidade’. Tudo isso são aplicações terminológicas legítimas, mas inexistentes, na lei fundamental. O que ali se faz é a descrição. E percebe-se que a descrição tem um ponto de partida: o respeito pela liberdade religiosa e não a indiferença perante a religião.

Com esta constatação, cabe reconhecer que a III República conseguiu, nesta matéria, um equilíbrio que é fácil perceber que se deve à sábia leitura do que ocorrera, nas I e II repúblicas, em que o pêndulo se desequilibrou, seja, na primeira, para o lado do silenciamento da religião, seja, na segunda, para um favorecimento pouco disponível para o acolhimento da diversidade religiosa.

Vale a pena recordar, a este propósito, uma constatação que já fizera Alexis de Tocqueville ao analisar a democracia americana e ao compará-la com a realidade europeia, em que evidenciava que a laicidade era, ali, entendida como a sã e fecunda relação, feita de forma proporcionada (isto é, respeitando a representatividade sociológica das religiões), entre o Estado e a religião, enquanto, na Europa, por influência da França e da sua revolução, se entendia a laicidade como a indiferença e o silenciamento para o âmbito privado da realidade religiosa, com enormes custos para a sociedade.

Somemos a esta constatação uma outra que não nos parece despicienda.

O entendimento da laicidade no registo da revolução francesa (que os analistas entendem como sendo um ‘laicismo’, em vez de uma laicidade positiva) pressupõe um entendimento sobre o que é o Estado e a sua relação com a sociedade que deverá merecer atenção detida. Repare-se que o laicismo presume que, antes de tudo, está o Estado. Ele é fim em si mesmo. Aliás, isso era notório no entendimento que mostraram ter os revolucionários franceses, entre os quais Robespierre se destacou, como líder que afirmava que «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724). O Estado era, neste entendimento, anterior à própria sociedade, cabendo a esta servi-lo e, não, como será fácil concluir, ser o Estado a servir as pessoas, a sociedade e a justiça.

 

Um Estado que serve ou um Estado que se serve?

Não nos parece que seja aquele o entendimento que pode presumir-se da leitura da nossa constituição. O Estado é meio, neste caso, organização da sociedade em prol do fim último que se configura nos pressupostos e fins enunciados logo no artigo 1º: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.» Presumir deste artigo que o Estado seja fim em si mesmo é enviesar a leitura. Ora, como pode o Estado ser indiferente ao que configura a própria sociedade que se propõe servir e construir como «livre, justa e solidária»? Como pode ser indiferente à religião, se mais de 90% se afirmam religiosos, sendo que mais de 80% se dizem católicos? Mas é o que defendem os laicistas… Felizmente, o povo ainda lê a constituição e não segue o que os laicistas pretendem impor…

Caberá, aliás, enfrentar a pergunta sobre se a política, que tem sido sustentada, tão frequentemente, na ‘fake new’ de que a constituição afirme que o ‘estado é laico’, serve o povo ou é entendida como fim em si mesma… Valerá, aliás, ir ainda mais longe e interrogar onde estão os crentes, no mundo da política? Se o povo se diz como sendo religioso em mais de 90% dos casos, como pode ser o parlamento constituído, na sua maioria, por não crentes que, naturalmente, porque não vivem o que a grande maioria vivencia como importante, relativizam a experiência dos outros? Devemos, porém, reconhecer que, apesar desta composição desproporcionada, o parlamento tem sabido evitar os tiques laicistas, mas é uma segurança conjuntural. Quem garante que, por uma espécie de ‘golpe palaciano’, a maioria que não representa a maioria nunca cederá à tentação de afirmar que, para o Estado português, a religião é algo que não existe?

Não passa de interrogações, mas que considero legítimas… A frequência da interrogação sobre se a laicidade não deveria entender-se como a indiferença perante a religião obriga a redobrada atenção, em nome de uma das mais importantes e determinantes conquistas da humanidade: a laicidade, entendida como o respeito pela liberdade religiosa que se faz diálogo entre as diversidades de leitura (em que a religiosa é tão legítima como as que não o são, mas, no caso português, sociologicamente mais expressiva…), e não como indiferença perante uma dessas leituras. Os tempos são de diálogo e cooperação, não já de obscurantismo laicista.

domingo, agosto 06, 2023

As JMJ e a via da beleza (via pulchritudinis)


Os ecos das JMJ ecoam no coração de todos os que participaram, ao longe ou perto! Um dos maiores erros na abordagem de tudo o que foi ali vivido seria reduzir à interrogação sobre ‘para quem eram as mensagens do Papa Francisco’, em busca de um destinatário que aliviasse a dor da transformação que elas exigem de quem as ouve.

Mas, de facto, as palavras de Francisco não são, apenas, para outros (sê-lo-ão, certamente, e por isso, podem conduzir a mudanças profundas), mas, principalmente, para os que ousarem ouvi-las como sendo para si mesmos.

Eu estou nessa disposição e muitas interrogações me têm 'assaltado', ao longo destes dias. Não como uma tomada de bens sem consentimento, mas como um 'assalto' que consinto que conduza ao meu próprio despojamento.

Como presidente da comissão diocesana da cultura, olho para tudo o que foi vivido e vejo o poder da beleza, a via pulchritudinis, em ação.

Estas JMJ foram, para além de tudo, lugares de beleza. ‘Fazei das vossas vidas lugares de beleza’, recordou, já em outros momentos, em visita a Portugal, um dos sucessores de Pedro, repercutindo como, perante o caos, Deus é o que ordena e organiza (faz, do 'caos', 'cosmos'), como, perante o que cinde e divide (em grego, ‘diabolos’), Deus é o que une (é ‘símbolo’), como, perante o decadente e informe, Deus é o Belo e a fonte da beleza. Aliás, assim começam os textos sagrados: por dizer-nos que o poder criador e ‘cósmico’ de Deus se confirma nas palavras do narrador que nos dá consciência de que o Criador vê que tudo era bom… Uma bondade que começa por ser expressa na beleza e harmonia com que o mundo se afigura.

A dança, a pintura e o canto, a música e as formas da arquitetura dos espaços, as próprias palavras, foram cuidados, nestas JMJ, para proporcionar caminho para o sublime, contrariando a ideia de uma juventude satisfeita com o caos e o ruído.

A música, dirigida por quem se percebia viver o que expressava musicalmente, a maestrina Joana Carneiro, evocou o que de melhor a história da música foi proporcionando à humanidade em resultado deste encontro entre a fé e a arte.

Ao ouvi-la, lembrei, bem certo, os ecos da longa e profunda história da música sacra, que terá, provavelmente, em Palestrina, em Bach, em Mozart, em Allegri, em Buxtehude, etc. alguns dos seus expoentes máximos, cuja memória poderá, porém, gerar a impressão de uma nascente que já secou.

Este encontro continua fecundo. Que o digam nomes como Arvo Pärt, Henrik Odegaard, Penderecki, Messiaen, Gubaidulina, Carrapatoso, etc., expressões contemporâneas da ininterrupta relação entre religião e arte e, em particular, entre o cristianismo e a cultura.

Do mesmo modo, poderíamos olhar para outros vetores de fecundidade deste encontro, como, por exemplo, para a literatura, com Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, ou, para a arquitetura, com Gaudí, ou, para a escultura, em Portugal, com Paulo Neves, ou para... ou para...

As JMJ mostraram ao mundo que a busca do sublime não tem de ser iconoclasta e que a fé não tem de temer a cultura, mas a sublimizá-la, levá-la a recuperar a consciência de que nos deve encaminhar em direção ao sublime que nos sara as feridas que a vida, tantas vezes caótica, nos abre na ‘pele’ da alma.

Ouço, enquanto escrevo, ‘Meditações sobre o banquete de Santa Madalena em Nidaros’, de Henrik Odegaard, compositor que tem dedicado parte significativa da sua obra à música sacra.

A escuta desta obra, em que se sente a densidade do encontro entre o gregoriano e o contemporâneo, serve-me, não apenas para deleite estético, mas, por evocar a figura de Santa Maria Madalena, faz reavivar em mim a memória de uma obra escultórica dedicada a esta santa e que é particularmente grata ao Papa Francisco. Refiro-me a um capitel da Igreja de Santa Madalena (século XI), em Vezelay, cuja foto repousa na secretária do sumo Pontífice.

E o que retrata esta foto, este capitel, que serve de ilustração a este artigo?

Retrata, à esquerda, um enforcado, e à direita, alguém que o transporta aos ombros. Neste densa cena, descreve-se, pela arte, aquela que terá sido mensagem fundamental do Papa Francisco, ao longo destes dias de JMJ.

O enforcado é Judas Iscariotes, arrependido. À direita, retrata-se Jesus que o leva aos ombros.

A misericórdia de Deus é, aqui, densamente representada numa cena que nos comove.

O ‘todos, todos, todos’ que o Papa Francisco pediu aos jovens que repetissem e que continua a ecoar aos nossos ouvidos, encontra suporte na mais longa e profunda história da teologia e da arte cristãs: seremos julgados no encontro com o Amor, diante do qual, como em tempos me recordava uma aluna de escatologia, baixaremos os olhos por nos sentirmos impuros diante do Amor de Deus. Não será Deus a julgar-nos, mas sim nós mesmos a ‘julgarmo-nos’ perante o Amor que Deus é.

Recordo, a este propósito, o que me disse, nos idos de 90, o saudoso sr. D. Manuel de Almeida Trindade, Bispo emérito de Aveiro, numa das várias conversas que tive o privilégio de partilhar com ele, no Seminário de Coimbra, que frequentei até 1996: 'repara, Luís, como a Igreja sempre nos disse que havia santos que podíamos imitar e invocar, mas nunca ousou dizer de ninguém que estaria em Inferno, por acreditar no poder da misericórdia de Deus'.

É desta misericórdia sem limite que deverão falar-nos a arte e a cultura fermentadas de cristianismo, misericórdia que não nos acomoda no que já somos, mas que nos desafia a ‘partirmos apressadamente’. A tentação que sinto, múltiplas vezes, porém, é a de me aquietar na certeza da misericórdia, como se ela não me interpelasse à conversão. O lema das JMJ fala, contudo, de um outro estado e condição perante a vida: Maria não se aquietou, não se acomodou – ‘partiu apressadamente’. Importa recordar que essa certeza da ultimidade da misericórdia foi fonte de uma subtil tentação, em alguns tempos da história da Igreja, como ocorreu com Orígenes (séc. II-III), que defendeu uma apocatástase, uma restauração de tudo e todos sem a participação dos mesmos, como se a misericórdia não envolvesse os sujeitos e se operasse ao arrepio da sua própria vontade e conversão. A misericórdia é encontro, é relação, não imposição. Interpela, faz partir de si, convida a caminhar, a ‘partir apressadamente’.

A arte que fala do sublime convida a transcender os ‘caos’ da vida, não a permanecer neles…

Palavras para mim. Não para outros…

 

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...