sexta-feira, setembro 15, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Cidadãos entre duas cidades

 Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)



Troia e Ítaca… Os dois polos de uma tensão terrena. Uma tensão sempre resolvida, ao longo da história, com a derrota de uns e a vitória de outros. Assim foi… Assim parece que será, sempre.

Mas assim tem de ser para sempre?

A viagem de Ulisses prolonga-se, ficcionadamente, na mente dos nossos leitores, até um momento da história humana em que a interrogação foi enfrentada, com detenção: 24 de agosto de 410 d.C..

Roma, a cidade eterna, é saqueada. (66 anos depois, será, mesmo, tomada…)

Alarico, o chefe dos visigodos, toma de assalto Roma e provoca um abalo, que volvidos mais de 1600 anos, poderemos equiparar (para que a comparação crie o modelo de constaste, diante do qual teremos de acrescentar densidade…) ao abalo provocado pelo 11 de setembro de 2001.

Como é possível que Roma tenha sido saqueada? Abandonaram-na os deuses?

(Remeto para a leitura do inteligente livro de Miguel Morgado, ‘Guerra, império e democracia’ [Pub. D. Quixote, 2023] a recolha dos detalhes e do alcance deste evento…)

Perante este evento demolidor, prontamente é recuperada a tese de que aos cristãos se deve esta derrota, pois o seu descomprometimento com a ‘política’ romana e a sua indisponibilidade para a divinizar pareceram suavizar o império e favorecer o abandono de Roma por parte dos deuses.

Esta acusação não é de hoje (o hoje de 410 d.C.), mas foi revitalizada com este susto.

A circunstância foi o pretexto para a escrita de uma das mais relevantes obras de toda a história da literatura ocidental (disponibilizada, em pdf, aos leitores portugueses em edição rigorosa repetidamente publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian: https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-de-deus-i/), por um genial cristão que bem conhecia os meandros do paganismo em que ele mesmo se movera antes de conhecer o cristianismo. ‘A cidade de Deus’, da pena de Santo Agostinho, uma extensa obra emerge como resposta a um duplo desafio, recordado por Miguel Morgado, na obra acima referida: «[…] agora, que Roma mostrava as suas terríveis vulnerabilidades perante bandos de bárbaros, a perplexidade era grande. Roma não tinha qualquer missão divina. Caso contrário, Deus não a teria deixado cair. Ou então, blasfémia das blasfémias, o Deus que substituíra os deuses afinal não o era. Agostinho teve de desarmar ambos os lados, tantos os dependentes da tese de que Roma era o agente político imprescindível da redenção do mundo como os que viam na queda de Roma cristianizada a demonstração de que o Deus dos cristãos era um ídolo de barro incapaz de proteger a sua capital.» (pp. 211-212)

Uma leitura atenta desta síntese perceberá as questões revisitadas, vez após vez, na história destes dois mil anos de cristianismo: a tentação da absolutização de um modelo político e a sedução da fuga do mundo.

Agostinho encontrou uma via genial, sistematizando a leitura fina que o cristianismo trouxera e de que a célebre ‘carta a Diogneto’ era um exemplo a recordar: «Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» (https://www.snpcultura.org/pedras_angulares_a_diogneto.html)

Na síntese de Agostinho, recorda-se que «[…] estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas.» (A cidade de Deus, volume I, livro I, capítulo XXXV). No capítulo IV do livro XIV, Santo Agostinho define a natureza das duas cidades: «existem duas cidades diferentes e contrárias- porque uns vivem em conformidade com a carne e outros em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se pode dizer que uns vivem em conformidade com o homem, e outros em conformidade com Deus.» E, mais adiante, no capítulo XXVIII do livro XIV (II volume da edição da FCG), precisa: «Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus - a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si - a celeste.»

Recuperando o paralelismo que temos vindo a construir, ao longo desta rubrica ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’, poderemos constatar que, se Ulisses sossegará quando chegar a Ítaca, uma cidade geograficamente localizável, no caso do cristão, essa ‘tensão’ nunca será definitivamente resolvida, neste tempo e nesta ‘geografia’. E essa é a genialidade de Santo Agostinho: assegurar-nos a certeza de que as duas cidades convivem, coexistem, na história, faz-nos sempre cidadãos comprometidos, mas como peregrinos (para utilizar a terminologia da carta a Diogneto). É, por isso, infundada a acusação dos pagãos de que o (suposto) descomprometimento político dos cristãos tenha sido o responsável pela queda de Roma, mas sim a coincidência de Roma com a cidade terrestre, a cidade do ‘amor a si próprio’. A causa da queda de Roma está na sua própria condição decadente e não no amor ao outro, proposto pelo cristianismo. A não divinização da cidade terrena ‘Roma’ não é, por isso, expressão de uma falta de compromisso político, pois, como defende Santo Agostinho, ‘o bom cristão é pura e simplesmente o melhor dos cidadãos’ (Miguel Morgado, p. 212). É, antes, a assunção de que a cidade terrena não é, ainda, a cidade definitiva. Na cidade terrena transparece (mesmo que sob muita opacidade) a cidade de Deus se nela se praticar a justiça e o amor ao outro.

A queda de Roma (e as suas perplexidades) continua a latejar no coração do mundo e dos cristãos. A sedução e a tentação de cair para a divinização das novas ‘Romas’ ou para a fuga do mundo por nada nele haver da cidade de Deus continuam vivas como no tempo do bispo de Hipona. E então, como hoje, a consciência de que ser cristão é viver essa tensão de se ser cidadão de duas cidades emergia luminosa e esclarecida perante todos os saques e acusações dos pagãos…

quarta-feira, setembro 06, 2023

In Memoriam | Doutor Pinho Ferreira, um gigante com coração simples

 

Fui aluno do Doutor Pinho Ferreira em dois momentos distintos do meu percurso académico: em Coimbra, no ISET, instituto que funcionava no Seminário da Sagrada Família, entre 1992 e 1996, e no Porto, na Faculdade de Teologia, em 1997-98. Desde a primeira hora, suscitou-me espanto e assombro o contraste entre o distinto professor, que suscitava respeito e um quase temor (era um gigante diante de todos nós…), e o verdadeiro espírito poético de um contemplativo que constatávamos em cada uma das suas aulas. Recordo-me de que, em Coimbra, as aulas começavam sempre com uma improvisada ode à tranquilidade do Seminário, à pureza do ambiente, à melodia natural que se ouvia, em contraste com o bulício da cidade. As suas palavras leves e de grande lirismo (quando não mesmo de humor muito fino – ‘canónico!’ dizíamos) contrastavam com o aspeto aparentemente pesado que o primeiro olhar captava. Fazia-nos sentirmo-nos como que regressados ao Éden…

Quem o via e se fixava no que via errava na avaliação do homem que aquele corpulento andar parecia acompanhar. A lentidão do seu andar não era a do peso de quem não quer ir longe ou de quem não consegue andar, mas a da ponderação de quem sabe que é perdido o andar que não se rege pela verdade. Os seus passos, comedidos e compassados, expressavam o carácter de um professor que nunca deixava nenhum aluno sem resposta, sempre num profundo respeito pela pessoa aprendente. Muito guardei para mim, para o professor que hoje sou, do que observei no Doutor Pinho. Nunca o vi dizer a um aluno que a resposta estava errada: media, com pedagogia, as palavras, de modo a levar o aluno a concluir que errara. Tratava-nos sempre na terceira pessoa. Interpreto-o (porque assim o senti, então!) como franco sinal de respeito por nós. Respeito que é particularmente ilustrado no que sempre ocorria numa determinada aula de direito sacramental em que se discutiriam os impedimentos dirimentes e não dirimentes e em que se definiriam os conceitos de matrimónio ‘rato e consumado’, ‘rato e não consumado’. Em aula determinada desse tema, o Doutor Pinho falaria do ato próprio (a relação sexual) pelo qual se ‘consumaria’ o sacramento (Ouvi, um dia, num casamento, que íamos assistir à consumação do matrimónio. Felizmente, era apenas erro em matérias de direito sacramental por parte do presidente da celebração e não se confirmou o que as palavras faziam prever…). Porque essa aula poderia ferir suscetibilidades, autorizava a ausência a quem pudesse sentir-se perturbado pela descrição (não tenho memória de ninguém faltar, sendo que estou certo de que correspondia a uma estratégia pedagógica feita de um humor inteligente que podemos confirmar todos os que com ele privámos).

Poderá pensar quem não pôde ter a honra de contar com o doutor Pinho por professor que, por tratar de matérias do direito, as abordagens eram fechadas e os assuntos encerrados. Recordo-me de que nos ‘levava pela mão’, através de interrogações, a abrir linhas de reflexão que sempre baseava em argumentos lógicos e coerentes. Assim aconteceu, por exemplo, ao abordar, na mesma cadeira de direito sacramental, a problemática do trabalho pastoral com quem se encontra unido sem ser pelo vínculo do sacramento celebrado em contexto eclesial. Não dava uma resposta. Suscitava uma interrogação: «deverá ser a mesma a abordagem perante quem está apenas ‘junto’ (as ‘uniões de facto’ são posteriores) de quem decidiu casar-se pelo civil?»

A interrogação ficava, antecipando, percebemos hoje, em algumas décadas, as mesmas interrogações da ‘Amoris Laetitia’, sempre sublinhando que o direito é dinâmico e existe para que, respeitando a verdade, se possa criar as condições para que o caminho (que envolve a pessoa toda e toda a pessoa) da salvação seja percorrido.

O Doutor Pinho era, a um primeiro olhar, tímido… possuía a timidez própria dos grandes sábios, sempre preocupados em que a sua participação no mundo seja serviço e respeito pelo outro. O outro era lugar de liberdade, a liberdade que, como homem do Direito, tão bem sabia ser a condição para a realização do humano, mas também marcada pela possibilidade da sua deterioração. Esse foi, provavelmente, um dos seus maiores legados: dizer-nos que a dimensão jurídica da Igreja não é apêndice ou acessória, mas a garantia de que, por ela, o caminho pode ser percorrido por todos, porque todos podem e a todos deve ser garantida condição para a procura da verdade. De outro modo, ficaria entregue à discricionariedade dos poderosos ou dos mais demagogos a reserva dessa procura da Verdade, do próprio Jesus Cristo.

Obrigado, Doutor Pinho. Deus, o único Justo, o guarde junto de Si.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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