terça-feira, junho 22, 2021

Creio num só Deus… que é Trindade!

 

Domingo após domingo, os cristãos professam ‘credo in unum Deum’.

Víamos, em anteriores reflexões, que a formulação ‘in unum Deum’ repercute a ideia de uma adesão que é mais do que assentimento intelectual, mas caminho em direção a Deus, orientação do coração para a realidade fundante de toda a existência.

Importa, agora, refletir sobre a natureza própria d’Aquele «unum Deum» a Quem adere o coração que se abre à fé.

Para tal, socorramo-nos do que nos vão dizendo os melhores de entre os melhores teólogos.

Tomemos por referência, para a nossa reflexão, duas ideias estruturantes.

 

Porque o homem é imagem de Deus, o que dizemos de Deus repercute-se no que entenderemos ser o Homem

A primeira recolhemo-la de Romano Guardini (1885-1968), um dos grandes teólogos do século XX, de ascendência e nascimento italianos, mas cujo percurso teológico desenvolveu na Alemanha, tendo sido, inclusive, perseguido e silenciado pelo regime nazi. Este teólogo escolhe, para título de uma das suas luminosas obras, a seguinte afirmação ‘quem sabe de Deus conhece o homem’. Tal decorre de uma noção estruturante (uma espécie de axioma teológico): o homem é ser criado à imagem de Deus, pelo que o que soubermos de Deus repercutir-se-á no entendimento sobre o próprio Homem.

 

Da presença de Deus na história chegamos à própria natureza de Deus

A esta primeira ideia associemos uma segunda, desta feita, recolhida de Karl Rahner (1904-1984), também teólogo do contexto alemão, que nos diz que chegamos ao conhecimento da natureza de Deus a partir do que o próprio Deus revela de si. De modo ‘técnico’, Rahner diz que se chega à ‘Trindade imanente’ (quem é Deus em si mesmo) a partir da ‘Trindade económica’ (quem é Deus para a humanidade, isto é, no seu processo de revelar-se – a palavra ‘economia’, no contexto teológico, tem este significado: ‘desenvolve-se no contexto histórico, nas circunstâncias próprias da história’).

 Dizendo de modo mais simples: sabemos de Deus aquilo que Deus revelou de Si mesmo, através de palavras e acontecimentos em que se manifestou a Sua própria ação e, por ela, podemos chegar ao que é o mesmo Deus.

Ora, conjugando estas duas ideias – a de que a revelação de Deus ocorre a partir do modo como Deus se mostra e a de que o que se disser de Deus se repercute no que se deverá pensar sobre o Homem – é possível constatar, desde já, que a conceção de Deus proposta pelo cristianismo é algo estruturante para toda a restante reflexão cristã e, com ela, para a compreensão sobre o Homem, o mundo, as suas relações e o seu próprio fim.

 

Mas perguntemo-nos, então, como se revela Deus, quem diz Deus que é.

Tenhamos consciência, desde já, de que a reflexão bíblica não é teoria, não é abstração; parte da experiência. Assim foi com a revelação de Deus como sendo Criador. O povo hebreu toma consciência da natureza criadora de Deus a partir da sua experiência de Deus que liberta. Aquele que liberta do mal histórico é, também, Aquele que liberta da inexistência, do nada de não existir.

Do mesmo modo, e num processo contínuo e coerente, o novo testamento é caminho que parte da experiência de Deus que se apresenta, simultaneamente, como fonte inacessível e palavra que se revela, origem e força que queima por dentro, presença verbalizada e ‘ausência’ que seduz e conduz. É na diversidade da revelação que o povo cristão desvenda o revelar-se de Deus que se define, no dizer de S. João (1 Jo 4,8), como amor. Repare-se que a expressão utilizada por S. João não é ‘Deus tem amor’. Em grego, ‘João afirma «o theós agápê estín | o qeos agaph estin » (Deus é amor).

Deus define-se, no entender de S. João (de acordo com a interpretação de Ricardo de S. Victor [ca. 1110-1173] que aqui seguimos), como relação, o que contraria a lógica que toda a história da filosofia teve (e continua a sustentar). Na verdade, na tabela das categorias de Aristóteles, a relação era considerada um acidente, isto é, não definia a essência de algo; era-lhe acrescentada.

 

Quem sabe da natureza trinitária de Deus sabe o que realiza a humanidade

A conceção trinitária de Deus introduz essa novidade que é extremamente fecunda e que, como temos vindo a defender em diversos contextos de reflexão, está na origem de uma das maiores dívidas da humanidade ao cristianismo: a ideia de que a relação define a própria condição humana, a condição de pessoa, conceito fundamental para se compreender quem é Deus e, por isso, também, quem é o Homem.

Na verdade, ao afirmar que «credo in unum Deum» que é «Pai todo-poderoso», que é «Unum dominum Iesum Christum» e «Spiritum Sanctum», rejeitando-se qualquer possibilidade de triteísmo, só restava ao cristianismo sustentar que a relação era definidora da própria natureza das coisas porque essa era a sua marca desde a sua criação, na medida em que a relação faz parte dAquele que é a sua fonte. A ideia de pessoa é isso que, no fundamental, afirma. Muito mais do que a individuação, a ideia de pessoa vinca a relação como condição de possibilidade do próprio existir. Existe-se em relação, na relação e da relação. É por isso que de Deus podemos afirmar que é três pessoas, mas não três ‘indivíduos’.

Como temos vindo a sustentar, com outra terminologia, poderemos afirmar que para haver relação impõem-se duas condições, simultaneamente presentes em Deus: a identidade e a alteridade. Só é possível relação se estas duas condições se verificarem.

Se não houver alteridade, não há relação por excesso de coincidência; se não houver identidade, não haverá relação por excesso de ‘distância’.

A Trindade não será, então, à luz deste conjunto de constatações, um mistério incompreensível e inacessível, mas sim, como defende a teologia contemporânea, uma realidade que ilumina as restantes realidades (assim deve entender-se o que seja ‘mistério’, na perspetiva cristã), torna-se uma realidade que, pela densidade do seu significado, podemos vislumbrar, mas sempre escapando-nos a toda a delimitação definitiva. Mistério diz de algo que é tão profundo na sua significação que tateamos a sua natureza mas muito continua a esquivar-se ao nosso domínio.

Diante destas noções, não poderemos senão concluir da natureza intrinsecamente relacional da condição humana que podemos conhecer ao sabermos quem é Deus.

E se Deus é amor, que outra coisa poderá realizar o que é ser Homem senão amar?

 

(Aos leitores interessados, deixamos a seguinte sugestão de leitura: Alexandre PalmaA Trindade é um mistério. Mas podemos falar disso. Prior Velho: Paulinas Editora, 2014.)

sexta-feira, junho 18, 2021

UMA VIAGEM PELA HISTÓRIA PARA REGRESSAR AO PONTO DE QUE PARTIMOS…

 (Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')

Prosseguimos a nossa viagem de ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’…

Como em fases anteriores da nossa viagem, cruzaremos a cultura clássica com a bíblica, procurando que, com o contributo recíproco, possamos iluminar o nosso caminhar contemporâneo.

A nossa etapa de hoje pretende perceber as características do paradigma que define as decisões e o modo de pensar deste tempo. Para tal, precisamos de olhar, em contraste, para a história. Para a história dos últimos séculos.

Socorro-me, para isso, do contributo de dois livros.

Revisito o livro ‘ideias e crenças do homem atual’, da autoria de Luís Gonzalez Carvajal (regresso a este livro muitas vezes… Foi um marco no meu modo de olhar para o mundo!) e aproprio-me de uma ideia que encontrei numa leitura recente: ‘O infinito num junco’, da autoria de Irene Vallejo Moreu, um livro extraordinário.

Mas encetemos, então, a nossa viagem de hoje.

A ideia de olhar para a história em ciclos, como se esta fosse o desembrulhar de um novelo em espiral, é já longínqua. Há autores que a pensaram em ciclos sucessivos de melhoria, em etapas tripartidas, sendo, de entre eles, o mais célebre, provavelmente, Joaquin de Fiore (1135-1202), que alguns consideram ter inspirado a versão secularizada de Auguste Comte (1798-1857).

Não me proponho fazer essa leitura, mas antes, olhar para a história e ver como, nas etapas seguintes, se exagerou um determinado aspeto da anterior ou, então, se exagerou um aspeto que se considerou estar omitido na precedente, como forma de compensar as insuficiências prévias. De qualquer modo, a leitura que irei propor ajudar-nos-á a olhar para os limites da atualidade, lançando o desafio de recuperarmos o que nas anteriores havia de mais interessante.

Partamos, então…

 

O paradigma da Idade Média: Abraão

Comecemos por assentar ideias no seguinte: para percebermos o nosso tempo, teremos de alongar o nosso olhar para o passado, indo, eventualmente, até à Idade Média.

Ao fazer esse esforço, perceberemos que a poderemos pensar como o tempo em que o centro da ação era a fé. Poderíamos tomar como paradigma dessa fase a figura de Abraão: nele concentra-se a atitude crente, de alguém que não teme decidir se tal se lhe afigura como desejo de Deus.

Sucede-se à Idade Média a Idade Moderna, cuja origem podemos fazer coincidir com o século XVI.

 

Sísifo e Prometeu: uma autonomia revoltada com a teonomia

É a era de um otimismo antropológico, da emergência da autonomia (se necessário, contra o próprio Deus), sustentada na convicção cada vez mais consolidada de um imparável progresso.

O paradigma desta fase é, como bem retrata Carvajal, configurado nas personagens da mitologia clássica Sísifo e Prometeu. Une ambas estas personagens a condição de se terem oposto aos deuses e, como castigo, terem sido amaldiçoados com uma condição de eterna repetição de um mal: no caso de Sísifo, terá de arrastar, sem nunca conseguir o seu objetivo, uma pedra pelo monte acima, sendo que, quando próximo do cimo, ela volta a rolar pelo monte abaixo; por seu turno, Prometeu verá as suas entranhas serem devoradas, repetidamente… Em ambos os casos, há a atitude de revolta contra o divino e a ideia de um castigo. (Como cristão, não reconheço nesta a visão genuína que quer propor-nos a fé em Jesus Cristo – o que salva é a graça e a misericórdia divina – mas este retrato repercute a visão que o Homem Moderno foi vincando em si mesmo de que ‘ou Deus, ou o Homem’, visão que, em Jesus Cristo é ultrapassada pelo ‘Deus com o Homem’…).

O tempo avançou e, com as duas grandes Guerras Mundiais, o Homem deparou-se com a constatação de que, afinal, o progresso humano poderia não ser infinito.

Gerou-se uma desilusão que levou à deceção (como refere Lipovetsky) e, com ela, à recusa das fases anteriores: a modernidade já tinha rejeitado a fé; restava, agora, com a pós-modernidade, rejeitar a própria ‘Razão’.

 

O homem pós-moderno: Narciso descobre o seu umbigo…

O homem pós-moderno, o que emergiu após as duas Guerras e, segundo o mesmo Lipovetsky, depois do Maio de 68, já não se baseia na força dos argumentos, na força da razão, pois está desiludido em relação a isso. O que lhe resta, então?

Os afetos, a emotividade. O homem pós-moderno é um hipersensível…

Narciso é, segundo Gonzalez Carvajal, o seu paradigma. Narciso é, na mitologia grega, uma personagem que se inebria com o seu reflexo nas águas calmas de um lago. Como se nada mais houvesse senão o próprio umbigo!

 

Esse alguém pós-contemporâneo a que deram outrora o nome de ‘Homem’: a síndrome de Heróstrato

Mas a história não parou e, se olharmos com detenção, perceberemos que Narciso foi, entretanto, superado. Hoje, já não nos basta a autocontemplação.

Hoje, precisamos de constatar quão belo acham os outros que é o rosto (o nosso) que vemos nas águas.

O homem (ou esse alguém a quem deram, em tempos, o nome de Homem… alguns pretendem que estejamos na era do pós-humanismo) pós-contemporâneo (utilizamos este paradoxo para retratar esta atitude alienada em que vivemos: somos mas não somos já deste tempo; não nos sentimos de tempo nenhum…) vive a síndrome de Heróstrato, figura que conheci ao ler o livro de Irene Vallejo, ‘O infinito num junco’. Heróstrato é uma personagem histórica que, em 21 de julho de 365 a.C., decide incendiar o templo de Artemisa com o mero objetivo de ficar conhecido. Quantos Heróstratos temos em nosso redor, nestes tempos pós-contemporâneos!

A história mostra-nos que o esquecimento das virtualidades das etapas anteriores gerou uma humanidade progressivamente mais vazia. Não somos só a fé; não somos só a razão; não somos só a emoção; não somos só a aparência. Só seremos se regressarmos à confiança em que caminhamos no sonho do Éden. Ítaca está no nosso horizonte terrestre, mas esse horizonte ainda não é o definitivo.

Sobreviverá Heróstrato a si mesmo? Uma visão cristã da história não poderá bastar-se em formular a pergunta, pois, no Cristo da cruz (em que o transcendente da trave vertical se une ao imanente da trave horizontal) fica estabelecido que a realização humana se faz na tensão que nunca poderá perder-se entre ser e ainda não ser, entre o ‘já’ de uma salvação de que se participa e o ‘ainda não’ de uma realização total. As etapas da história aqui retratadas perderam esta tensão e pretenderam sossegar o Homem e aquietá-lo. Urge recuperar essa tensão para que o Homem sobreviva, pois, como diz S. Ireneu, ‘a glória de Deus é o Homem vivo’.

sábado, junho 05, 2021

À minha avó Maria | 1 de junho de 2021 - anotações do meu diário

 

1 de junho de 2021

(anotações do meu diário)


Hoje, a avó Maria partiu para o Pai. Serena, acompanhada… com a certeza de ser amada, muito amada…

«’bó Maria! ‘bó Maria!» Tantas vezes chamei por si, com este carinho!

«’bó! ‘bó!»

A si contei, ainda com 6 anos, por altura da minha primeira comunhão, que queria ser padre. A si disse, quase vinte anos depois, que iria sair do seminário. De ambas as vezes, as suas palavras foram: ‘Se for a vontade de Deus, segue-A. Se não for, perceberás!’

Quanta confiança isso me deu…

Confiança para esperar, quando pequeno. Confiança para me decidir, já com 23 anos…

E tantos outros não tiveram essa sabedoria!

Quando eu contava que assim reagira a minha avó, abriam os olhos de espanto.

Mas assim sábia era a minha avó.

Nunca lhe ouvi maledicência ou palavras azedas para com alguém…

As suas palavras eram sempre de apaziguamento e de compreensão.

E a mim sempre me pedia que fosse um homem bom, um bom cristão.

Tantas vezes me recordou que mais vale um bom cristão do que um mau padre, quando lhe referi que pensava sair do seminário. (As suas palavras não pretendiam desconsiderar a condição de leigo, mas reforçar a confiança em que eu saberia escolher uma decisão que sabia ser difícil…)

Criou cinco filhos e doze netos, entre os quais dois como filhos adotivos, nos tempos da emigração dos nossos pais - eu e o meu primo Miguel Ângelo.

Quantas vezes enxugou as minhas lágrimas de saudade, como quando, recém-chegado de França, e prestes a entrar na escola ‘primária’, lhe dizia que desejava muito comer ‘poulet’.

E não descansou enquanto não descobriu quantos ‘poulets’ havia no seu aviário.

«’bó», sei que vela por mim, por nós, junto de Deus para Quem foram sempre dirigidas as suas palavras, até quando Alzheimer parecia querer levar-lhe todas as memórias. Até nesse tempo as suas palavras eram os resquícios das orações que a amnésia nunca conseguira sumir.

«’bó», procurarei honrar o seu desejo, o seu legado.

Procurarei ser um homem bom, para que em mim se espelhe a sua melhor herança…

Serei um bom cristão…

Obrigado, «’bó».

A sua vida não foi em vão…

Um beijinho. Gosto tanto de si!

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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