terça-feira, novembro 30, 2021

Da tragédia de Édipo à esperança do presépio

 Eis-nos no caminho de Troia para Ítaca, no sonho do Éden… Temo-lo feito, ora com uma mão em Ulisses, ora com a outra em Adão. A mão de Ulisses sua de tragédia, goteja, mesmo! Nela, só parece haver sangue e desilusão. Nada podemos fazer, no caminho grego, contra a voracidade e vertigem do destino. Preserva-se no adágio ‘fatal como o destino’ um resquício dessa rendição.

Mas Adão não é o homem da tragédia.

Sucumbiu (e continua a sucumbir), bem certo, à tentação e, com ela, veio a dramaticidade da vida. Mas ele já não é rendido ao poder de um destino inexorável. O horizonte do Novo Adão redime-o e reconfigura-o como imagem da esperança.

O percurso tem-nos mostrado, por isso, que à densidade trágica não temos de somar tragédia. Mas disso se convenceram os gregos e, com eles, tantos dos nossos contemporâneos.

A história humana é marcada pela tragédia. Mas não há que render-se-lhe como se nada mais restasse do que aceitar que assim é e não poderá ser de outro modo.

Também os gregos vislumbraram, fugazmente, que pudesse não ser assim quando colocaram, num recôndito e escondido recanto da caixa de Pandora, a esperança. Mas a tragédia grega parece mais forte do que a esperança.

Terá de se esperar pelo Cristianismo para fazer germinar e tornar frondosa a árvore bem robusta da esperança

Mas a mão de Ulisses parece querer prender-nos e agarrar-nos, não nos deixando acolher os dedos de Adão.

Em tantos momentos se expressa esta visão trágica!

Particularmente notória é a sua presença quando a vida se dramatiza.

Dela são densas narrativas o mito de Édipo e a singeleza do presépio.

Édipo (já aqui falámos dele, pois virá a ser o pai de Antígona, Polinices, Etéocles e Isménia) é filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas.

Quem no-lo conta é o eterno Sófocles, nas suas tragédias Rei Édipo e Édipo em Colono, seguindo-o, aqui, pela pena de Luc Ferry, no seu livro ‘a sabedoria dos mitos’ [edição da Temas e debates, 2014].

Um oráculo prenuncia que aquele filho, Édipo, matará o pai e tomar-se-á de amores pela mãe.

Ontem, como hoje, o parricídio e o incesto incluem-se nos mais hediondos comportamentos humanos. Para não sucumbirem ao fatídico vaticínio, decidem entregar o pequeno príncipe à sorte, deixando que um dos seus servos, um pastor, o leve para um bosque onde possa ser devorado pelas feras. No caminho, encontra os servos de um rei vizinho que não conseguia ter filhos. Propõem-lhe tomar a criança para a tornarem príncipe de outro rei. Só já adolescente conhece, numa disputa de crianças, que não será, efetivamente, filho do pai, uma vez mais, no oráculo de Delfos, onde os seus verdadeiros pais já tinham concluído que sobre ele impendia aquela maldição.

Decide fugir da cidade onde vivia, dirigindo-se para (pois está claro!) Tebas. (Tudo é trágico, nesta descrição, e nada há a fazer…) No seu caminho vem o rei de Tebas, dirigindo-se ao mesmo oráculo de Delfos, para saber o que fazer, pois a sua cidade era assolada por uma epidemia. Os destinos de ambos cruzam-se sem que nenhum deles possa fazer nada senão dar os passos certeiros para que ele se cumpra…

Do mito para a realidade…

No início da nossa era, também uma outra criança parece ver recair sobre ela oráculos trágicos (como parecem ecoar os gregos as palavras do velho Simeão!). Mas na história desta criança o fado, o terrível fado não tem a última palavra.

O pai foge da perseguição cruel de um Herodes a quem a história chamou ‘grande’. E sobrevive. Não sucumbe.

E mesmo a predição da morte cruel que atravessará o próprio coração da sua mãe é prenúncio de uma esperança que superará a tragédia.

Dos oráculos de Delfos ‘refulge’ a sombra da tragédia.

Da humildade do presépio dimana a refulgência de uma luz infinita.

E é por isso que, enquanto os gregos expunham os seus filhos ‘malditos’, jamais os cristãos expuseram os seus filhos, como disso é retrato intemporal o dizer do anónimo autor da carta a Diogneto, em finais do século II. Diz ele dos cristãos (segundo edição da Alcalá, de 2001) que «habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» Mas (nota que mostra a novidade que o cristianismo trouxe ao mundo e permanece, hoje, como escândalo, quando tantos continuam a expor os seus recém-nascidos ou ainda não nascido…) «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos.»

Édipo continua a fascinar, mas a sua sombra denuncia uma luz de que ele não é origem: a esperança cristã! Hoje, como nos primeiros séculos, o brilho cristão incomoda porque alguns continuam a habitar num reino de sombras. E as sombras falam de uma luz que ofusca e não se quer olhar.

O brilho que inunda o mundo é humilde e suave, mas inabalável. Adão fez-se Novo Adão. Já não estilhaçado pela tentação, mas ainda exposto pelo mundo que o abandona e não quer ver. Mas Deus já não é alguém rendido ao trágico, ao inexorável: liberta e liberta para sempre. Não há, por isso, que temer a fragilidade. Ela já não é uma maldição: é um caminho de superação, em que o próprio Deus encarna, para dela se compadecer e, assim, a elevar. O sonho do Éden está totalmente presente na singeleza luminosa do estábulo frágil e só aparentemente abandonado.

(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')

sábado, novembro 27, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) VI | Creio… num só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus

 

‘Quem dizem os homens que eu sou?’

A pergunta, repercutida em Mc 8,27 (e paralelos) continua, aguda, a ressoar aos nossos ouvidos, sendo tão relevante, no evangelho de Marcos que, segundo os exegetas, determina um antes e um depois em toda a dinâmica deste livro bíblico. Neste contexto, Jesus, ao ouvir da boca de Pedro, que ‘Tu és o Cristo’ (uma afirmação que é muito mais do que a enunciação de um nome, mas a afirmação da condição de ‘escolhido’, ungido, Aquele por quem se estava à espera enquanto ungido para ser rei), ordena que guardem silêncio, um silêncio a manter até que, definitivamente, se opere a ‘unção’ com a morte e ressurreição.

Hoje, volvidos cerca de dois mil anos sobre este acontecimento, a pergunta continua a ser ‘a pergunta’, pois nela se repercute a interrogação definitiva sobre o sentido de toda a criação. Ou Cristo é o Cristo, Aquele em quem se manifesta o que, definitivamente, espera o mundo, ou resta a solidão fria de uma criação sem rumo… Ele revela! N’Ele se revela tudo! E isto muda, de facto, tudo!

Charles Péguy, um escritor francês de finais do século XIX e inícios de XX, um convertido tardio ao cristianismo, repercute este reconhecimento de que o mundo anda todo em busca desta definitividade que traz Jesus Cristo:

‘Os passos das legiões tinham marchado por ELE.

As velas dos barcos por ele se tinham inchado.

Por Ele os sóis de Outono tinham luzido.

As velas dos barcos por Ele se tinham dobrado.

[…]

Os passos de Dario tinham marchado por Ele.

Era Ele que se esperava no fim do fundo da Pérsia.

Era Ele que se esperava numa alma dispersa.

Ele era o Senhor de ontem e de hoje.

[…]

As regras de Aristóteles tinham andado por ele.

Do cavalo de Alexandre às regras escolásticas.

E por Ele os ascetismo e a regra tinham luzido,

Das regras de Epicuro às regras monásticas.’

(Reproduzo, aqui, com pequena alteração, tradução recolhida de J. C. Neves, Deixem-me falar-vos do impossível. Cascais, Lucerna.)

Toda a história do cristianismo é um esforço de resposta consequente a esta decisiva interrogação. Não apenas como uma resposta devida, mas como resposta de vida…

Na definição perante este aparente jogo de palavras se determinou, ao longo da história, o teor da resposta.

Muitas foram as tentativas que redundaram no que veio a considerar-se como heresia. Importa, hoje, compreender o que se decidia quando o cristianismo considerou determinadas linhas como sendo heréticas. (Sublinhe-se, porém, a ilegitimidade de toda a violência em nome do cristianismo… A salvaguarda da verdade não pode ser pretexto para o fim da caridade, assim como a salvaguarda da caridade não pode fazer-se ao arrepio da verdade. Assim com S. Paulo (dizei a verdade na caridade… Ef 4,15), assim com Bento XVI (é preciso realizar a caridade na verdade!).)

Os primeiros séculos cristãos foram, com efeito, marcados pela busca incessante da verdade sobre a natureza daquele Jesus a quem Pedro chamou ‘O Cristo’, redundando dessa busca uma outra compreensão sobre o próprio Deus que n’Ele se revelava.

Para se compreender o critério com que se foi estabelecendo o que não correspondia à ortodoxia, não estava qualquer tipo de opacidade ou verdade oculta, contrariamente ao que pretendem afirmar, ainda hoje, os que, decididos a não tentar perceber o cristianismo, se sossegam sob a capa de um preconceito tranquilizador.

Os primeiros cristãos entenderam, desde a primeira hora, que Aquele com quem eles conviveram, de quem eles conheciam a família, cuja origem era bem sabida de todos, Aquele era um como eles, mas um em quem não havia incoerência e em quem se constatava uma unidade com Deus, que foram percebendo ser Seu Pai, que não se encontrava em qualquer outro.

Ora, uma tal constatação que ganha particular pertinência e evidência na sua morte e na sua ressurreição, confere aos cristãos o critério fundamental: Ele é um de nós, um como nós, mas é muito mais do que um de nós e um como nós; Ele é, no meio de nós, a realização definitiva da ponte com o eterno. Ele é a presença singular, irrepetível, do eterno, na máxima manifestação, à luz da qual todas as demais devem ser interpretadas. Ele é, no dizer da carta aos Hebreus, o único sacerdote, a verdadeira ponte.

Este é o critério! Ele é a ponte!

Ora, uma ponte sem ligação de uma margem a outra pode ser uma bela obra de arte, mas não realiza o que deve realizar uma ponte: unir as duas margens.

Eis o critério definitivo à luz da qual se estabelece o que é resposta adequada à pergunta e o que não o é.

A esta luz, compreende-se porque é que falham o docetismo (que afirmava que a dor e o sofrimento de Jesus Cristo fora aparente), o arianismo (que dizia que Jesus Cristo era, efetivamente, humano, mas não era da mesma natureza de Deus, sendo apenas adotado por este, na morte), o pelagianismo (que reduzira Cristo a um belo exemplo moral, mas em que não se operara, efetivamente, uma salvação universal) ou, já mais recentemente, todas as abordagens que olham, fascinadas, para o Jesus histórico, vendo nele um herói singular, mas não o reconhecem como presença definitiva de Deus na História… Em todas estas abordagens falha a dimensão ‘pontifical’ de Jesus Cristo. Uma das margens fica suspensa!

Continuaríamos, assim, sem resposta à pergunta e continuariam a ser vãos ‘os passos da legiões’, ‘os passos de Dario’ ou o insuflar das velas dos barcos.

E não é apenas porque o queremos ou porque o quer a Igreja que tal deve ser assim. A ressurreição de Cristo operou, naqueles que eram tímidos, acobardados e temerosos, uma transformação tal que fez deles desabridas testemunhas que foram até ao ponto de dar a vida muito tempo depois dos eventos que tinham testemunhado. Nenhuma ilusão se sustentaria tanto tempo e para mais separados uns dos outros e sem os meios de reforço de ‘motivação’ de que hoje dispomos!

A realidade de Jesus Cristo, ponte definitiva entre o efémero e o eterno, entre a criatura e o Criador, estava desde o primeiro momento, presente na condição frágil do menino nascido pequeno e com condição humana. Mas a iluminação, no coração dos que o seguiam foi-se fazendo paulatinamente. Assim também na história do cristianismo. Tudo está desde o primeiro momento. Mas é necessário fazer o caminho de desvelar o que ali transparece, mas que é, tantas vezes, opaco ao olhar desatento. A consequência mais notória desta condição de ponte é que a nossa resposta à pergunta inicial terá de redundar na transformação dupla da nossa própria compreensão (a nossa vida faz sentido, tem sentido, o mundo é ser criado e não produto de acaso), mas também da compreensão de quem é o próprio Deus.

Como bem recorda Albert Nolan, no seu livro ‘Jesus antes do Cristianismo’ (2010, Paulinas), ‘é este o significado da afirmação tradicional de que Jesus é a Palavra de Deus. Jesus revela-nos Deus, mas Deus não nos revela Jesus. Deus não é a palavra de Jesus, ou seja, as nossas ideias acerca de Deus não podem fazer incidir qualquer luz sobre a vida de Jesus. Argumentar, partindo de Deus, para chegar a Jesus – em vez de argumentar partindo de Jesus, para chegar a Deus – é pôr o carro à frente dos bois. Foi isto, como é óbvio, o que muitos cristãos tentaram fazer, conduzindo-os geralmente a uma série de especulações sem sentido, que só servem para obscurecer a questão e que impedem Jesus de nos revelar Deus.’ (p. 226)

Tu és Jesus, o Cristo!...

domingo, novembro 14, 2021

O escorredor da loiça e a coragem de reverter leis injustas

 

Num destes dias, entre as tarefas domésticas partilhadas entre nós, membros da família, deparei-me com uma situação que me pareceu metafórica.

Lavava, apressadamente, a loiça do jantar, e fui, descuidadamente, colocando pratos e testos no escorredor da loiça. De forma desajeitada, fui dispondo os pratos sem grande preocupação em acertar com os frisos do escorredor. Ao fim de alguma acumulação caótica, o escorredor em que caberia a loiça de várias refeições ficou preenchido, restando-me poisar sobre os pratos desalinhados o que me ia chegando às mãos, sem grande segurança e com evidente desequilíbrio.

Presumindo o desfecho (de cacos) daquele desalinho, rendi-me ao evidente. Havia que identificar onde tinha começado a colocar os pratos fora do respetivo friso, retirar toda a loiça ali disposta a partir desse ponto e, finalmente, ganhar o espaço ordenado para poder colocar toda a loiça e, como pressuposto, ainda dispor do espaço sobrante que o meu caos, motivado pelo descuido e precipitação, tinha roubado.

A força simbólica deste evento doméstico não escapou à minha atenção.

Portugal vive, desde há algumas décadas, uma crise demográfica de desastrosas consequências já denunciadas por tantos. A machadada definitiva na cultura do respeito pela vida humana na sua fase intrauterina foi dada pela legalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em 2007, a qual veio somar a liberalização ao que já previa a legislação desde 1984 (que já despenalizara o aborto por violação, malformação e situação de conflito entre vida da mãe e do filho…). A liberalização resultante do referendo de 11 de fevereiro de 2007 veio favorecer a consolidação de uma mentalidade que vê o filho como um bem que se possui e de que se pode prescindir quando a sua existência aparece como obstáculo. O aborto emergiu, de forma definitiva, como um (quão contraditório!) ‘contracetivo pós-conceção’, o que se reflete nos números da sua prática que, desde 2007, já supera os 215 mil. Os números oficiais indicam, até 2018 (não conseguimos encontrar os relatórios oficiais de 2019 e 2020) que se realizaram, entre 2007 e 2018, 217699 abortos, dos quais mais de 96% são a pedido da mulher, até às 10 semanas, sendo os restantes cerca de 4% por motivo de malformação (não será esta uma forma de discriminação por motivo de deficiência?) ou por violação ou conflito entre a vida da mãe e do filho. Cerca de 30% são já abortos repetidos, isto é, abortos realizados por mulheres que já realizaram outros, anteriormente.

Acrescente-se que é sabido que, todos os anos, são inúmeras as complicações para a saúde da mulher resultantes desta prática legalizada, sendo que, em 2010, morreu uma mulher na sequência de complicações graves por motivo de aborto legal.

E tudo isto é estatística… A estatística regista números, mas não permite constatar toda a mudança de mentalidade operada. É fácil apurar como é escasso o fascínio por se ser pai ou mãe entre as gerações mais jovens que olham para esta condição tão decisiva da natureza humana como se se tratasse de um fardo ou de um elemento menor na realização pessoal e como mero fator de realização individualista, sem visão no todo da comunidade a que pertencemos.

Ora, se é notório o efeito tão demolidor na cultura comum de uma decisão (a de liberalizar a prática do aborto até às dez semanas) que nunca se avaliou devidamente, talvez seja hora de olhar para o caos que está sobre o ‘escorredor da loiça’ e descobrir que este se instaurou quando decidimos que um podia ter todos os direitos enquanto ao outro cabia esperar pela generosidade individual daquele, sem ver salvaguardado sequer o direito de existir…

E quer acrescentar-se, agora, um outro fator de caos ao já anteriormente induzido: com a eutanásia, com que se pretende defender um suposto direito, estará a abrir-se nova via de disposição caótica sobre o escorredor coletivo. Com a mesma dinâmica de partir de exceções estará a introduzir-se uma nova mentalidade que olhará para a vida como descartável e ainda mais disponível. E, como é sabido que nada disto será analisado, a mais este fator caótico outros sobrevirão. Até que a loiça se estatele toda no chão, quebrando-se e deixando marcas no próprio lastro em que se abatera.

A metáfora do escorredor de loiça tem, aqui, o seu limite. Sobre o escorredor repousava, apenas, loiça. Cerâmica vulgar, afinal! No ‘escorredor’ coletivo estamos diante de vidas. Talvez tão frágeis como a loiça, mas bem mais dignas e, por isso, suscetíveis de nos suscitar um pouco mais (?) de compaixão… Até quando continuará a suportar o escorredor tamanho caos?

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...