domingo, novembro 14, 2021

O escorredor da loiça e a coragem de reverter leis injustas

 

Num destes dias, entre as tarefas domésticas partilhadas entre nós, membros da família, deparei-me com uma situação que me pareceu metafórica.

Lavava, apressadamente, a loiça do jantar, e fui, descuidadamente, colocando pratos e testos no escorredor da loiça. De forma desajeitada, fui dispondo os pratos sem grande preocupação em acertar com os frisos do escorredor. Ao fim de alguma acumulação caótica, o escorredor em que caberia a loiça de várias refeições ficou preenchido, restando-me poisar sobre os pratos desalinhados o que me ia chegando às mãos, sem grande segurança e com evidente desequilíbrio.

Presumindo o desfecho (de cacos) daquele desalinho, rendi-me ao evidente. Havia que identificar onde tinha começado a colocar os pratos fora do respetivo friso, retirar toda a loiça ali disposta a partir desse ponto e, finalmente, ganhar o espaço ordenado para poder colocar toda a loiça e, como pressuposto, ainda dispor do espaço sobrante que o meu caos, motivado pelo descuido e precipitação, tinha roubado.

A força simbólica deste evento doméstico não escapou à minha atenção.

Portugal vive, desde há algumas décadas, uma crise demográfica de desastrosas consequências já denunciadas por tantos. A machadada definitiva na cultura do respeito pela vida humana na sua fase intrauterina foi dada pela legalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em 2007, a qual veio somar a liberalização ao que já previa a legislação desde 1984 (que já despenalizara o aborto por violação, malformação e situação de conflito entre vida da mãe e do filho…). A liberalização resultante do referendo de 11 de fevereiro de 2007 veio favorecer a consolidação de uma mentalidade que vê o filho como um bem que se possui e de que se pode prescindir quando a sua existência aparece como obstáculo. O aborto emergiu, de forma definitiva, como um (quão contraditório!) ‘contracetivo pós-conceção’, o que se reflete nos números da sua prática que, desde 2007, já supera os 215 mil. Os números oficiais indicam, até 2018 (não conseguimos encontrar os relatórios oficiais de 2019 e 2020) que se realizaram, entre 2007 e 2018, 217699 abortos, dos quais mais de 96% são a pedido da mulher, até às 10 semanas, sendo os restantes cerca de 4% por motivo de malformação (não será esta uma forma de discriminação por motivo de deficiência?) ou por violação ou conflito entre a vida da mãe e do filho. Cerca de 30% são já abortos repetidos, isto é, abortos realizados por mulheres que já realizaram outros, anteriormente.

Acrescente-se que é sabido que, todos os anos, são inúmeras as complicações para a saúde da mulher resultantes desta prática legalizada, sendo que, em 2010, morreu uma mulher na sequência de complicações graves por motivo de aborto legal.

E tudo isto é estatística… A estatística regista números, mas não permite constatar toda a mudança de mentalidade operada. É fácil apurar como é escasso o fascínio por se ser pai ou mãe entre as gerações mais jovens que olham para esta condição tão decisiva da natureza humana como se se tratasse de um fardo ou de um elemento menor na realização pessoal e como mero fator de realização individualista, sem visão no todo da comunidade a que pertencemos.

Ora, se é notório o efeito tão demolidor na cultura comum de uma decisão (a de liberalizar a prática do aborto até às dez semanas) que nunca se avaliou devidamente, talvez seja hora de olhar para o caos que está sobre o ‘escorredor da loiça’ e descobrir que este se instaurou quando decidimos que um podia ter todos os direitos enquanto ao outro cabia esperar pela generosidade individual daquele, sem ver salvaguardado sequer o direito de existir…

E quer acrescentar-se, agora, um outro fator de caos ao já anteriormente induzido: com a eutanásia, com que se pretende defender um suposto direito, estará a abrir-se nova via de disposição caótica sobre o escorredor coletivo. Com a mesma dinâmica de partir de exceções estará a introduzir-se uma nova mentalidade que olhará para a vida como descartável e ainda mais disponível. E, como é sabido que nada disto será analisado, a mais este fator caótico outros sobrevirão. Até que a loiça se estatele toda no chão, quebrando-se e deixando marcas no próprio lastro em que se abatera.

A metáfora do escorredor de loiça tem, aqui, o seu limite. Sobre o escorredor repousava, apenas, loiça. Cerâmica vulgar, afinal! No ‘escorredor’ coletivo estamos diante de vidas. Talvez tão frágeis como a loiça, mas bem mais dignas e, por isso, suscetíveis de nos suscitar um pouco mais (?) de compaixão… Até quando continuará a suportar o escorredor tamanho caos?

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