sábado, novembro 27, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) VI | Creio… num só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus

 

‘Quem dizem os homens que eu sou?’

A pergunta, repercutida em Mc 8,27 (e paralelos) continua, aguda, a ressoar aos nossos ouvidos, sendo tão relevante, no evangelho de Marcos que, segundo os exegetas, determina um antes e um depois em toda a dinâmica deste livro bíblico. Neste contexto, Jesus, ao ouvir da boca de Pedro, que ‘Tu és o Cristo’ (uma afirmação que é muito mais do que a enunciação de um nome, mas a afirmação da condição de ‘escolhido’, ungido, Aquele por quem se estava à espera enquanto ungido para ser rei), ordena que guardem silêncio, um silêncio a manter até que, definitivamente, se opere a ‘unção’ com a morte e ressurreição.

Hoje, volvidos cerca de dois mil anos sobre este acontecimento, a pergunta continua a ser ‘a pergunta’, pois nela se repercute a interrogação definitiva sobre o sentido de toda a criação. Ou Cristo é o Cristo, Aquele em quem se manifesta o que, definitivamente, espera o mundo, ou resta a solidão fria de uma criação sem rumo… Ele revela! N’Ele se revela tudo! E isto muda, de facto, tudo!

Charles Péguy, um escritor francês de finais do século XIX e inícios de XX, um convertido tardio ao cristianismo, repercute este reconhecimento de que o mundo anda todo em busca desta definitividade que traz Jesus Cristo:

‘Os passos das legiões tinham marchado por ELE.

As velas dos barcos por ele se tinham inchado.

Por Ele os sóis de Outono tinham luzido.

As velas dos barcos por Ele se tinham dobrado.

[…]

Os passos de Dario tinham marchado por Ele.

Era Ele que se esperava no fim do fundo da Pérsia.

Era Ele que se esperava numa alma dispersa.

Ele era o Senhor de ontem e de hoje.

[…]

As regras de Aristóteles tinham andado por ele.

Do cavalo de Alexandre às regras escolásticas.

E por Ele os ascetismo e a regra tinham luzido,

Das regras de Epicuro às regras monásticas.’

(Reproduzo, aqui, com pequena alteração, tradução recolhida de J. C. Neves, Deixem-me falar-vos do impossível. Cascais, Lucerna.)

Toda a história do cristianismo é um esforço de resposta consequente a esta decisiva interrogação. Não apenas como uma resposta devida, mas como resposta de vida…

Na definição perante este aparente jogo de palavras se determinou, ao longo da história, o teor da resposta.

Muitas foram as tentativas que redundaram no que veio a considerar-se como heresia. Importa, hoje, compreender o que se decidia quando o cristianismo considerou determinadas linhas como sendo heréticas. (Sublinhe-se, porém, a ilegitimidade de toda a violência em nome do cristianismo… A salvaguarda da verdade não pode ser pretexto para o fim da caridade, assim como a salvaguarda da caridade não pode fazer-se ao arrepio da verdade. Assim com S. Paulo (dizei a verdade na caridade… Ef 4,15), assim com Bento XVI (é preciso realizar a caridade na verdade!).)

Os primeiros séculos cristãos foram, com efeito, marcados pela busca incessante da verdade sobre a natureza daquele Jesus a quem Pedro chamou ‘O Cristo’, redundando dessa busca uma outra compreensão sobre o próprio Deus que n’Ele se revelava.

Para se compreender o critério com que se foi estabelecendo o que não correspondia à ortodoxia, não estava qualquer tipo de opacidade ou verdade oculta, contrariamente ao que pretendem afirmar, ainda hoje, os que, decididos a não tentar perceber o cristianismo, se sossegam sob a capa de um preconceito tranquilizador.

Os primeiros cristãos entenderam, desde a primeira hora, que Aquele com quem eles conviveram, de quem eles conheciam a família, cuja origem era bem sabida de todos, Aquele era um como eles, mas um em quem não havia incoerência e em quem se constatava uma unidade com Deus, que foram percebendo ser Seu Pai, que não se encontrava em qualquer outro.

Ora, uma tal constatação que ganha particular pertinência e evidência na sua morte e na sua ressurreição, confere aos cristãos o critério fundamental: Ele é um de nós, um como nós, mas é muito mais do que um de nós e um como nós; Ele é, no meio de nós, a realização definitiva da ponte com o eterno. Ele é a presença singular, irrepetível, do eterno, na máxima manifestação, à luz da qual todas as demais devem ser interpretadas. Ele é, no dizer da carta aos Hebreus, o único sacerdote, a verdadeira ponte.

Este é o critério! Ele é a ponte!

Ora, uma ponte sem ligação de uma margem a outra pode ser uma bela obra de arte, mas não realiza o que deve realizar uma ponte: unir as duas margens.

Eis o critério definitivo à luz da qual se estabelece o que é resposta adequada à pergunta e o que não o é.

A esta luz, compreende-se porque é que falham o docetismo (que afirmava que a dor e o sofrimento de Jesus Cristo fora aparente), o arianismo (que dizia que Jesus Cristo era, efetivamente, humano, mas não era da mesma natureza de Deus, sendo apenas adotado por este, na morte), o pelagianismo (que reduzira Cristo a um belo exemplo moral, mas em que não se operara, efetivamente, uma salvação universal) ou, já mais recentemente, todas as abordagens que olham, fascinadas, para o Jesus histórico, vendo nele um herói singular, mas não o reconhecem como presença definitiva de Deus na História… Em todas estas abordagens falha a dimensão ‘pontifical’ de Jesus Cristo. Uma das margens fica suspensa!

Continuaríamos, assim, sem resposta à pergunta e continuariam a ser vãos ‘os passos da legiões’, ‘os passos de Dario’ ou o insuflar das velas dos barcos.

E não é apenas porque o queremos ou porque o quer a Igreja que tal deve ser assim. A ressurreição de Cristo operou, naqueles que eram tímidos, acobardados e temerosos, uma transformação tal que fez deles desabridas testemunhas que foram até ao ponto de dar a vida muito tempo depois dos eventos que tinham testemunhado. Nenhuma ilusão se sustentaria tanto tempo e para mais separados uns dos outros e sem os meios de reforço de ‘motivação’ de que hoje dispomos!

A realidade de Jesus Cristo, ponte definitiva entre o efémero e o eterno, entre a criatura e o Criador, estava desde o primeiro momento, presente na condição frágil do menino nascido pequeno e com condição humana. Mas a iluminação, no coração dos que o seguiam foi-se fazendo paulatinamente. Assim também na história do cristianismo. Tudo está desde o primeiro momento. Mas é necessário fazer o caminho de desvelar o que ali transparece, mas que é, tantas vezes, opaco ao olhar desatento. A consequência mais notória desta condição de ponte é que a nossa resposta à pergunta inicial terá de redundar na transformação dupla da nossa própria compreensão (a nossa vida faz sentido, tem sentido, o mundo é ser criado e não produto de acaso), mas também da compreensão de quem é o próprio Deus.

Como bem recorda Albert Nolan, no seu livro ‘Jesus antes do Cristianismo’ (2010, Paulinas), ‘é este o significado da afirmação tradicional de que Jesus é a Palavra de Deus. Jesus revela-nos Deus, mas Deus não nos revela Jesus. Deus não é a palavra de Jesus, ou seja, as nossas ideias acerca de Deus não podem fazer incidir qualquer luz sobre a vida de Jesus. Argumentar, partindo de Deus, para chegar a Jesus – em vez de argumentar partindo de Jesus, para chegar a Deus – é pôr o carro à frente dos bois. Foi isto, como é óbvio, o que muitos cristãos tentaram fazer, conduzindo-os geralmente a uma série de especulações sem sentido, que só servem para obscurecer a questão e que impedem Jesus de nos revelar Deus.’ (p. 226)

Tu és Jesus, o Cristo!...

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