terça-feira, dezembro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 19 | Mistério na noite de Natal

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*


- As noites de outrora eram escuras; as noites de agora são longas… - M. meditava na vida. Parecia distante, mas dificilmente poderia supor-se mais presente à vida.
E continuou, como se J., o seu irmão, não estivesse ali, mesmo ao pé de si.
- Quando a noite é assim, escura como o breu, dou-me conta do sentido profundo das palavras bíblicas ‘o povo que andava nas trevas viu uma grande luz’. Como se anseia a luz quando o mais pequeno cascalho nos serve de escândalo, como gigante pedra de tropeço! Sabes, J.? Se Mateus decidiu voltar a pôr o profeta Isaías a repetir, séculos volvidos, as palavras que a esperança fervilhante do seu coração inspirava, para as ver confirmadas no nascimento de um pobre Menino, é, provavelmente, porque nelas se diz muito que ainda não conseguimos ver.
Franziu o sobrolho e rematou:
- Bem. É o que vou tentar descobrir.
- Vem aí fantasia! – Rematou o irmão, correndo atrás de M., que saltara do pequeno muro da ponte chamada ‘da Senhora da Saúde’, repousada sobre o pequeno ribeiro molengão que atravessava as terras do Vouga. Correra para um lugar simbolicamente denominado ‘chão de além’. Correra como quem confia, porque a noite era densa. Uma leve neblina elevava-se, com frescura.
Percorridas algumas centenas de metros, M. estacara. Sentara-se e olhava, ao longe, a luz da lua enamorada dos montes da margem esquerda do rio.
Olhava, de novo perdida nas suas meditações.
J. reconhecia aquele olhar. Sabia-o denunciador de uma viagem longínqua.
- Vês aqueles caminhos? Por eles andou, há muito tempo, o nosso bisavô. Lembro-me de o contar o nosso pai. Numa das vezes em que fora visitar a mulher para quem falava (assim chamavam ao namoro…), a noite escura fez renascer todos os fantasmas que habitam as noites do pensamento. Só a lua o acompanhava. Mas, sob as ramadas, nem a lua servia de candeeiro. À medida que andava, parecia acompanhá-lo o caminhar de alguém. Parava e dizia, balbuciando: ‘Quem estiver aí que se mostre!’ Mas o ‘fantasma’ não só não se revelava como se silenciava.
E o bisavô acelerava o passo, compassado com o medo que se abatia no coração. Após várias tentativas de convencer o tenebroso companheiro da noite, decidiu-se. Voltou-se. No momento em que o fez, deu conta de que o tacão da sua bota estava solto, provocando o ‘caminhar’ que o acompanhava. Não mais se deitou com o medo. Passaram a dormir em camas diversas.
- Grande Bisa’! – Gritou J., efusivo.
- Mas as noites de muitos continuam a ser o berço de inúmeros fantasmas. E os dias de alguns, noites constantes.
Interrompeu-se para voltar a deliciar-se com a paisagem escura, apenas iluminada pela lua e como que edulcorada pela neblina.
- Sabes o que me lembra esta colina?
E fez um curto silêncio, como que a reavivar a memória para dizer, com certeza, o que o irmão esperava ouvir.
- Aquela que criou o cenário em que São Francisco emoldurou o primeiro presépio da história depois do original; a bela colina de Greccio. De então para cá, a imaginação não mais se limitou e encheu de figuras o modesto presépio do início.
- Mas, se da condição humana se adornou o próprio Deus?!
- Que belo o que dizes, J.! Penso exatamente assim. S. Francisco bem o sabia. Toda a condição do humano pode fazer sua morada naquele modesto lugar de Belém. E eu, habitada pela imaginação franciscana, sinto-me enlevada e com perguntas que abrem novas portas à fantasia. Sempre me intrigou aquele momento.
- Adivinho história…
- Nunca te inquietou que só Mateus e Lucas tenham dedicado letras dos evangelhos a este momento da História do Jesus de quem Marcos e João só nos falam adulto?
- O curioso é que tão tardiamente a própria história cristã tenha voltado a sua atenção para este quadro.
- J., os tempos de perseguição exigiam, bem certo, um ir ao essencial, deixando, para depois da paz, a apreciação dos arcos mais distantes da espiral da fé. Celebrar o ressuscitado era o centro. O ressuscitado de quem um jovem que os primeiros discípulos não ouviram chegar falou como tendo resistido à força e ao poder da morte.
- Não ouviram chegar! Que intrigante…
- Sabes o que te digo? A minha imaginação diz-me que esse seu silêncio pode ter muito a dizer-nos sobre o primeiro momento. Os seus passos são como os de um Primeiro Jardineiro que, no tempo da inocência, também não ouvíamos, mas passámos a ouvir depois de termos desejado ser como deuses. O chão da eternidade não faz barulho.
- Estou curioso, M. Explica-te. Não estou a perceber nada.
- Porque escaparam os Magos do Oriente ao poderoso Herodes?
- Não seguiram por outro caminho, M.? Não é assim que diz o evangelho?
- Mas, com os seus esbirros, o grande Herodes teria sabido bem como segui-los. E não foram os sábios do Oriente guiados por uma estrela que poisou sobre a gruta onde estaria o Menino? Que melhor forma de localização?
- Densificas a história com as tuas perguntas, M. Explica-te lá.
- Tenho uma hipótese. O evangelho não o diz. Não tinha de nos dizer tudo. Mas deixa-nos sinais. ‘O povo que andava nas trevas viu uma grande luz.’ A estrela que poisou sobre o lugar da manjedoura era, ainda, sóbria. Sinal simples para os que dela precisavam. Localizada, porém, a morada onde decidira habitar connosco o Eterno, essa luz elevou-se e toda aquela noite se tornou um só dia. A Judeia ficou iluminada como se o sol tivesse madrugado. Os Herodes de então ficaram sem bússola. Toda a terra de Judá era, neste momento, uma noite luminosa. Entretanto, entravam naquela modesta morada os sábios que a tradição posterior identificou como sendo três – pois se três eram os presentes! –, e a quem Beda, o venerável, associou, para sempre, nomes que haveriam de dar rosto e aspeto a cada um deles. Certamente, diante daquele Menino, haveriam de descalçar o que lhes cobria os pés. Bem sabiam estar perante Deus humanado! Curvaram-se e depositaram, talvez aos pés da mãe ou, até, nas mãos do emudecido pai adotivo, aquele que unia, por gerações contínuas, ao grande rei David, as prendas com que simbolizavam a condição de rei, de sacerdote e de Homem com que se revestia aquele Menino.
- Descalçaram-se? Está boa. Nunca tinha pensado em tal coisa.
- Pois se Deus estava, ali, presente naquele Menino, aquele que haveria de ir ao Egito, como outrora o fora o povo submetido ao Faraó, conquistando a liberdade pela mão de Moisés, após este viver, descalço, a presença do Eterno, no Monte Sinai!? O Menino vai ao Egito… O primogénito que sobreviverá à praga que matara, séculos antes, os primogénitos súbditos do Faraó. Uma praga, já não realizada pela natureza, mas pela mão humana. A praga de um fragelante Herodes… E do Egito regressará para libertar, de vez, o povo. Já não um povo único, mas o povo que é a humanidade.
- Lindo o que dizes! Jesus é o novo Moisés. Mas, M., mesmo que a estrela tenha iluminado toda a noite, os passos de um sábio do oriente são inconfundíveis. Herodes e os seus capatazes haveriam de descobrir, no chão do pó da Judeia os seus traços. O calçado de um sábio do Oriente identifica-se com facilidade.
- Não há natal sem presentes. O Menino não haveria de deixar de mãos vazias os que o receberam antes de todos.
- Bem. Tinha a salvação para lhes oferecer.
- Certamente! Mas, ali, a salvação tinha um nome mais próximo: sobreviver ao desejo de Herodes. Os sábios já não saíram dali com o mesmo caminhar. Nos seus pés, levavam as sandálias do jardineiro inicial, as que transfiguram o chão de pó em chão do além, o chão que não guarda marca e é percorrido como passo silencioso.
- Que fantasia habita a tua mente, M.
- E estou certa, J…. Aos pés da cruz, trinta e três volvidos, três pares de sandálias foram depositados e entregues aos discípulos no regresso de Emaús. As mesmas sandálias que terá calçado o jovem jardineiro que lhes anunciaria que a morte tinha sido vencida. Talvez por isso depositamos na lareira do natal as sandálias que cobrem os nossos pés. Mas essas ainda se fazem do pó do chão de aquém. Calçá-las-emos, um dia… Quando o nosso for o definitivo chão do Além.


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

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