sábado, dezembro 16, 2023

A autodeterminação que só pode ser de género…

Há uma estratégia de lógica que nos permite identificar a qualidade dos nossos pressupostos: o exercício de os levar até ao absurdo. Se resistirem a esse exercício, podemos dá-los como úteis, eficazes e legítimos. Se não resistirem, convém arrepiarmos caminho.

Ora, um qualquer básico exercício de lógica permitirá verificar se podemos contar com essa fiabilidade quando se trata de adotar para a vida em sociedade o que está definido como sendo ‘autodeterminação de género’.

O pressuposto desta ‘teoria’ ou ‘ideologia’, que por ser ‘totalizante’ (ousaria chamar-lhe ‘totalitária’) deixa sem resposta quem é confrontado com o soundbite de quem a quer defender e pergunta ‘mas és a favor do sofrimento de uma criança que diz que é de outro género que não o seu?’, é o de que o género que nos identifica só nós podemos saber qual é, pois não é observável, de forma objetiva e a partir de indicadores biologicamente constatáveis.

Só o sujeito, de dentro para fora, sabe qual o género que o identifica.

Se tomarmos este pressuposto e o submetermos ao crivo do exercício ‘ad absurdum’, chegaremos à conclusão de que, se a autodeterminação de género afirma que é o indivíduo que determina qual o seu género e não a biologia ou a natureza, teremos de concluir que assim ocorrerá, também, em termos de idade e de todas as outras matérias que concernem à vida do referido indivíduo a quem se conferiu a qualidade de critério primeiro e único de toda a identidade que lhe concerne.

Sendo assim, e aplicando à vida da escola, âmbito sobre o qual determinou (!) o parlamento que deveriam aplicar-se, no imediato, decisões que concernem à autodeterminação de género (curioso que não se tenha definido isso em relação, por exemplo, aos centros comerciais, às instituições públicas várias – hospitais, centros de saúde , serviços de toda a natureza, etc…), então, as conclusões a retirar sobre o impacto da aceitação de tal conceito de autodeterminação podem configurar-se em interrogações como estas: porque não pode, então, um aluno de primeiro ano que sofre por estar nesse ano quando se sente mais identificado com os colegas de quarto ano ou de quinto ano, exigir que o coloquem num ano posterior? Porque não pode um aluno que se sente pobre (afinal, não tem telemóvel como tantos outros colegas, ou computador ou roupa desta ou daquela qualidade…) exigir que lhe sejam atribuídos os benefícios próprios do sentimento profundo que tem? Porque não pode um aluno que tem dez anos, mas se sente com a responsabilidade de um de dezoito anos, votar ou receber um salário (pois, afinal, não é a sua profissão a de estudante?)? Porque não pode um aluno que sofre e foge da escola por causa desse sofrimento, exigir que lhe permitam abandonar de vez a escola, mas o forçam a frequentar uma imposição chamada ‘escolaridade obrigatória’? Porque não pode um aluno, que sofre por ter essa malfadada matemática, exigir deixar de a ter, assim como todas as disciplinas que detesta e lhe causam sofrimento?

E poderíamos continuar…

Para todas estas questões, sabemos que a resposta não é a legitimação do ‘sentir’ individual, mas o acompanhamento e o discernimento entre indivíduo e sociedade, numa articulação em que a prevalência nunca é absoluta de um só dos lados.

Na autodeterminação de género esse equilíbrio perdeu-se, prevalecendo, de forma absoluta, o indivíduo, fechado sobre si, sem história nem natureza, sem herança mas todo autogerado, tornado o centro exclusivo e cabendo a todo o mundo mudar-se para se conformar a ele.

Uma visão deste género mata a sociedade, mata as relações, obriga a esperar que o indivíduo diga quem é, havendo um absoluto silêncio prévio. Torna impossível saber quem é o outro, enquanto herança e acolhimento. Não há reciprocidade: há um movimento de único sentido: do indivíduo para os outros. Não pode, por isso, senão ser fonte de litígios, pois toda a ousadia de dizer que o outro é quem conhecemos, porque é portador de uma história, é tomada como um insulto e uma agressão.

Imagine-se o que seria a sociedade se a todas as relações se aplicasse este princípio: nada poderia pressupor-se, antes de que todos os dados fossem facultados por cada indivíduo.

É por tudo isto que a lei sobre a autodeterminação de género, nas escolas, é grave e trai a confiança em que assentam as relações: a confiança de que quem eu tenho diante de mim é alguém que eu conheço. Uma sociedade em que a autodeterminação que, agora, é de género, fosse de todas as condições, seria uma sociedade ‘alzheimer’, uma sociedade de amnésia total. Nada do que fomos estaria em cada presente, pelo que nada do que somos seria futuro.

É isto que queremos?


terça-feira, dezembro 05, 2023

O Tempo É advento...

 (Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia) 

Só um olhar crente pode reconhecer, no tempo, a sua condição de ‘advento’, entendido como ‘aproximação’, ‘chegada’, ‘vinda’[1], termo que traduz, para latim, o que se dizia, em grego (no Novo Testamento) com ‘parousía’, evocando a ideia de ‘presença’, ‘chegada’, ‘ocasião favorável’[2].

Qualquer que seja a opção de tradução que tomemos, permanece a ideia da novidade que emerge, na história, assomando ao espírito humano como expectativa e realidade maior (divina) que se antecipa.

O termo não é, originariamente, cristão, antes, é cristianizado, sendo utilizado [na] ‘linguagem cultual primitiva [para designar] a vinda anual da divindade ao seu templo para visitar os seus fiéis. Segundo a crença pagã, cada deus permanecia no meio dos seus devotos durante o tempo em que a sua estátua estava exposta ao culto por ocasião da festa anual em sua honra. Na linguagem cortesã o advento designava também a primeira visita oficial de uma personagem importante com atributos divinos.’ [3]

Com ‘advento’ evoca-se esta tensão entre o tempo e o eterno, o efémero e o definitivo, sendo que a história da cristianização deste termo nos evidencia que é a original surpresa pela realidade maior que gera, nos sujeitos humanos, a atitude de expectativa. A anterioridade é a da realidade esperada, não a da espera, em si.

Com efeito, a história da emergência, na liturgia cristã, confirma-o.

A história da consolidação, na liturgia cristã, da celebração do advento, cujas primeiras referências nos aparecem em S. Hilário de Poitiers, por volta de 360, que fala de ‘um período de três semanas de preparação do natal, a começar no dia 17 de dezembro até ao dia 6 de janeiro’[4] e, depois reforçadas, no concílio de Saragoça, em 380, que ‘determina que ninguém falte à igreja nas três semanas que precedem a Epifania’[5], fixando-se, definitivamente, com a reforma gregoriana (séc. VII), com as características que tem hoje, depois de ter chegado a ser de quarenta dias – que lhe valera o nome de ‘quaresma de inverno’ (indo desde a festa de S. Martinho até à Epifania)[6]-, evidencia que, primeiramente, o olhar se concentra na festa do Natal, só assente nas vivências cristãs muito após a centralidade consolidada da Páscoa, criando-se, só depois, o estado de expectativa e esperança.

Ora, retomemos, por isso, a ideia inicialmente exposta de que “só um olhar crente pode reconhecer, no tempo, a sua condição de ‘advento’”.

Caminhamos… Como diz Gabriel Marcel, somos ‘homo viator’. Mas que natureza tem este nosso caminhar?

Não o sabemos, previamente.

O caminhar humano pode não ser mais do que um ‘errare’, termo que significa, simultaneamente, ‘vaguear’, ‘deambular’, ‘andar ao acaso’, e, também, ‘afastar-se da verdade’, ‘estar em erro’, ‘errar’, ‘cometer um erro’.

A densidade semântica do termo, que se mantém na nossa língua, é particularmente significativa. Definir-se-á o caminhar humano como o de um ser que ‘erra’?

A visão crente antepõe a esta metáfora do errante uma outra, na qual se repercute a densidade da ideia do advento: a do peregrino…

O peregrino vive em advento. O seu tempo, o seu caminhar não é o do errante, mas o de quem se encaminha, expectante, para um horizonte. Não um horizonte que ele cria, mas que se abre, diante dos seus olhos, como realidade que o ‘invade’ e o projeta para a frente (precisamente o que afirma a ideia de ‘projeto’ – ‘lançar-se para diante’). Sendo o tempo um advento, tudo adquire um outro significado, tornando-se a própria realidade já não um ‘objeto’, uma realidade exposta, sem densidade, mas o lugar de uma tensão; a realidade torna-se toda ela, no dizer de W. Pannenberg, proléptica, antecipatória[7].

Caminha-se… mas não se caminha sem rumo. Caminha-se para algures… E, em cada expressão, mesmo que diminuta, de significado e de sentido, densifica-se a realidade como experiência simbólica, experiência que une o ‘já’ e o ‘ainda não’. Como dizia o então Professor Joseph Ratzinger, numa luminosa homilia na Catedral de Münster (em 1964), ‘estamos no Advento. Todas as nossas respostas continuam a ser peças soltas, fragmentos parciais. A primeira coisa que temos de aceitar é, sempre, esta realidade do Advento permanente.’[8]

Desta constatação aparentemente tão simples resultam duas consequências muito significativas: sendo tudo um advento, sendo o tempo lugar da espera e da esperança, resulta daqui que, por um lado, o absoluto não é, ainda, o agora (quantas consequências para a leitura sobre o fundamentalismo e a presunção da total posse da verdade! Na senda do que entende o mesmo professor Ratzinger, o advento é, aqui, um ‘ainda não’[9]), pois o absoluto encontra-se para além da História, como eterno para o qual se encaminha o tempo; e, em segundo lugar, o tempo também se densifica, pois, nele, prepara-se o eterno ou, como diz Leonardo Boff, no tempo ‘transparece’[10] o eterno (Ah, quantas consequências para os relativismos e todas as indevidas errâncias pós-modernas e hipermodernas! De acordo com esta segunda conclusão, a condição de ‘advento’ diz do tempo que ele é, também, um ‘já’.).

O tempo é advento… É um longo advento. Algo se aproxima, Alguém se revelará quando, definitivamente, o tempo der lugar ao eterno.

Mas, até lá, somos peregrinos. Não erramos!

 



[1] Cfr. Dicionário de Latim-Português, Porto, Porto Editora, 2001, 2.ª edição.

[2] Isidro Pereira, Dicionário grego-português e português-grego, Braga, Livraria A.I, s/d, 8.ª edição.

[3] Pedro Ferreira, OCD, ‘O tempo do advento’, in A celebração do mistério do Natal, Coimbra, Gráfica de Coimbra, p. 47.

[4] Art. Cit,, p. 48.

[5] Ibidem, p. 48.

[6] Cfr. Ibidem, pp. 48-49.

[7] Cfr. Luís Silva, Teologia, ciência e verdade: fundamentos para uma definição do estatuto científico da teologia segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004, p. 102.

[8] Joseph Ratzinger, Do sentido do ser cristão, Cascais, Principia, 2009, pp. 35-36.

[9] A citação mais completa da homilia do prof. Ratzinger (Papa Bento XVI) evoca esta ideia de que, por estarmos em Advento, estamos num tempo de incompletude, ‘antes de Cristo’: ‘A primeira coisa que temos de aceitar é, sempre, esta realidade do Advento permanente. Se o fizermos, vamos começar a reconhecer que a fronteira entre «antes de Cristo» e «depois de Cristo» não é exteriormente transversal ao tempo histórico e não pode ser registada no mapa, mas que atravessa o nosso próprio coração. Enquanto vivermos do egoísmo, da concentração em nós próprios, estaremos, ainda hoje, «antes de Cristo».’ - Joseph Ratzinger, op. Cit., p.36.

[10] Cfr. Leonardo Boff, Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos, Petrópolis, Vozes, 1993.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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