sexta-feira, março 15, 2024

'Regresso a Ítaca no sonho do Éden' | De Ícaro a Pelágio: asas de cera que elevam o orgulho humano

                   Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ tem-nos levado, pela mão de Ulisses que regressa a casa, em Ítaca, depois de dez anos da guerra de Troia, a estabelecer pontes ou identificar abismos entre aqueles que são dois dos mais robustos pilares da cultura ocidental: a antiguidade grega e romana e a cultura de matriz cristã.

Gregos e cristãos unem-se no reconhecimento dos riscos e perigos do orgulho humano, ainda que a apreciação desse vício não coincida totalmente entre as duas matrizes.

Voemos com Ícaro, para a leitura da apreciação grega, e comparemo-la com o que nos chega da história de Pelágio e do seu polémico confronto com Agostinho de Hipona (o grande S. Agostinho).

Conta-nos Pierre Grimal, no seu ‘dicionário da mitologia grega e romana’[1], que Ícaro é filho de Dédalo (aliás, o mito é sempre contado como sendo de ‘Dédalo e Ícaro’) e de Náucrate. Pai e filho foram encarcerados, por Minos, por vingança, no mesmo labirinto do qual tinham ensinado Ariadne a sair (‘seguir o fio de Ariadne’ é expressão que vem deste mito) e permitido que Teseu entrasse e saísse, matando o Minotauro. Ali presos, mas dados os muitos engenhos de Dédalo, criaram umas asas de cera com que se tornou possível escaparem. Antes, porém, de se elevarem nos céus, Dédalo recomendou ao filho, Ícaro, que se mantivesse num justo equilíbrio: nem demasiado afastado nem demasiado próximo do sol. O orgulho e a arrogância de Ícaro fizeram-no, porém, entusiasmar-se, aproximando-se demasiado do sol. Derreteram as asas e Ícaro despenhou-se, desamparado, no mar que circunda a ilha de Samos. (O mito será, provavelmente, uma etiologia para o nome desse mar, Icário, género também frequente nos próprios textos bíblicos que, pela via de uma história, nos ‘explicam’ a origem de um facto, de um nome, de um modo de ser…)

Demos um salto no tempo em relação à época que entregou à humanidade esta história. Avancemos para finais do século IV e inícios do século V depois de Cristo, ao tempo de Santo Agostinho. Por essa altura, um monge nascido, em 354, na Grã-Bretanha, Pelágio, via difundirem-se, com grande projeção, as suas ideias. (O nome ‘Pelágio’ cria uma simbólica coincidência com o mito de Dédalo e Ícaro, pois ‘pélagos’, em grego, significa ‘mar alto’, ‘um mar determinado’, mas, também, figurativamente, ‘perigo’[2]). A sua ideia fundamental era a de que a natureza humana não era tocada pelo pecado original, sendo capaz, por si própria, de evitar o pecado, pelo que, ‘sem necessidade de nenhum auxílio sobrenatural, evitar todos os pecados e praticar todas as obras boas’[3], não sendo, por isso, necessária a salvação oferecida por Deus, através de Jesus Cristo.

A heresia pelagiana difundiu-se com grande rapidez, dado o seu poder sedutor (ainda hoje, o tique pelagianista continua a atrair, afirmando-se como um otimismo antropológico que parece pensar o ser humano como isento de mácula e atribuindo à sua liberdade a fonte de toda a moralidade…), tendo, mesmo, atraído, num primeiro momento, a adesão do Papa Zózimo que, porém, por intervenção de S. Agostinho, vem a rever a sua posição, na célebre carta Tractoria (418). As teses pelagianas são sucessivamente condenadas no sínodo de Cartago (411), no de Diáspole (415), por Inocêncio I (em 417) e, como dissemos, pelo Papa Zózimo, na carta Tractoria. A condenação definitiva das teses pelagianas ocorre em abril de 418, em Jerusalém. O que ficava em causa, com o pelagianismo, saltava à vista. Se o homem, por si só, consegue obter a sua salvação, que lugar caberia a Deus? E onde ficaria a missão de Jesus Cristo: não seria mais do que um exemplo, escapando-lhe o poder redentor?

A tese fundamental de Pelágio expressava-se de forma particularmente acutilante neste aforismo recolhido de uma das suas cartas: ‘Está em meu pode fazer o bem, sou eu a gerir a minha liberdade.’ (Epist. 216,5)

Ao lê-la, os nossos ouvidos parecem reconhecer os ditames do paradigma contemporâneo. O sol nunca será demasiado próximo para os Ícaros de hoje.

Dédalo continua, porém, a sussurrar-lhe que não ouse elevar-se demasiado, porque são de cera as suas asas.

Mas o homem continua a elevar-se até não ser mais do que um ponto negro no horizonte… Mas convencido de que só a si cabe salvar-se.

O cristianismo, porém, continua a recordar-lhe que a condição humana, na história, está marcada pela debilidade e pela fragilidade, enquanto criatura, debilidade a que Paul Ricoeur, no seu ‘o homem falível’[4], chama ‘falha existencial’. A perda desta consciência é e tem sido causa de arrogância que faz do Homem ‘homini lupus’[5] (homem lobo do homem).

Os voos com asas de cera são, assim, muito mais do que metáforas de um desejo: são a tentação permanente de se arvorar em Deus, abandonando a condição de criatura.

Distingue a leitura grega da cristã a definição da ‘missão’ de Deus perante esta arrogância. Os gregos projetavam nos próprios deuses o orgulho que assomava à alma dos humanos, eternizando a arrogância; o cristianismo liberta o homem, confinando ao ‘território’ da história o poder do orgulho. Na morte de Jesus Cristo, o Humilde por antonomásia, o orgulho é derrotado e fica o reconhecimento da condição ‘indigente’ de quem ama: quem ama não é orgulhoso, não é arrogante – é todo ele abertura ao outro; é todo ele acolhimento do outro.

Mesmo sendo altamente sedutora a tese pelagiana, ela não pode vencer: a afirmação do ‘pecado original’, clarificada com a polémica entre Agostinho e Pelágio, permanece urgente como garante do reconhecimento do limite intrínseco à condição criatural, não porque seja desejada por Deus (que, pelo contrário, dela a redime), mas porque, como reconhece Andrés Torres Queiruga, não poderia ser de outro modo, dado que, na história, o limite é intrínseco[6]. Negar o limite, presumindo-se a ‘ilimitude’ de cada criatura, é fonte de males que vitimizam o próprio humano, desumanizando-o…

Regressa, Ícaro, ao chão de que nasceste, porque és Adão![7]



[1] Sigo a edição portuguesa da Antígona Editores, publicada em 2020.

[2] Isidro Pereira, Dicionário de grego-português e português-grego, Braga, Livraria A.I., 19908.

[3] Cfr. Roque Frangiotti, História das heresias: conflitos ideológicos dentro do cristianismo, São Paulo, Paulus, 1995, p. 114.

[4] Paul Ricoeur, o homem falível, Lisboa, Edições 70, 2019.

[5] Thomas Hobbes, Leviatã.

[6] Andrés Torres Queiruga, Recuperar a salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã, São Paulo, Paulus, 1999, pp. 97 ss.

[7] ‘O pecado de Adão torna-se ao mesmo tempo a figura do drama humano na sua generalidade e a sua representação simbólica do acontecimento original que é seu ponto de partida.’ (Bernard Sesboüé, História dos dogmas, Tomo 2, O homem e sua salvação, S. Paulo, Edições Loyola, 2003, p. 227)

quinta-feira, março 07, 2024

Sabes, leitor... | 3 | Marca de água do livro de Viktor Frankl, 'A voz que grita por um sentido'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
O autor e a obra
Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido: como redescobrir a dimensão humanista da psicoterapia, Alfragide, Lua de papel, 2021.

Sou um admirador de Viktor Frankl (1905-1997 – neurologista nascido na Áustria) desde os meus tempos de faculdade, altura em que um amigo missionário de Barcelona, Francisco Xavier, me falou do seu pensamento e das suas intuições fundamentais. Estávamos em 1992. Durante 7 anos, procurei, em vão, uma tradução de algum dos seus livros até que, em 1999, encontrei, na livraria Victor Jara, em Salamanca, o seu ‘o homem em busca de sentido’.

(Uns amigos enviaram-me de Curitiba, pouco tempo depois, outra edição da mesma obra, desta feita, brasileira… É assim a vida de quem se deleita com a leitura: ‘contamina’ quem o envolve…).

Ler Viktor Frankl alterou o meu modo de compreender porque adoecíamos, mentalmente, interiormente. A sua intuição fundamental, que apresentarei nas ‘marcas de água’, começou a assomar-lhe ao pensamento ainda na década de 30, em que as taxas de suicídio cresciam entre os jovens universitários vienenses. O que fora uma intuição, nessa década, vem a confirmar-se, na década seguinte, quando a guerra e a perseguição nazi o levaram a passar por quatro campos de concentração, como ele mesmo refere neste livro que, agora, nos faz estar na mesma página, caríssimo leitor.

Viktor Frankl é autor de outros livros como ‘O homem em busca de sentido’, ‘Um sentido para a vida’, ‘Dizer sim à vida, apesar de tudo’ e é considerado o criador da terceira escola psicologia de Viena, após a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Adler.

Marcas de água (o que fica, depois de se deixar o livro)

A intuição fundamental de Viktor Frankl parte da constatação de que as abordagens psicoterapêuticas conhecidas até então enfermavam de reducionismo que pressupõe que o ser humano ‘não é mais do que’, confinando-o à sua dimensão biológica. Frankl propõe-se superar este erro dos reducionismos e pressupõe que o ser humano é, fundamentalmente, um ser em busca de sentido, criando, por isso, a logoterapia que, como ele mesmo define, consiste na ‘terapia através do sentido’ (p. 17). Uma das observações que ele fizera, nos campos de concentração em que estivera preso, é que as pessoas que sobreviviam não eram necessariamente mais fortes, em termos físicos, mas sim em termos do sentido das suas existências. Ter um sentido conferia-lhes maior capacidade de resistência física.

Soma-se a esta intuição fundamental uma visão antropológica que não exclui nenhuma dimensão do ser humano, numa articulação sistémica que o faz enfrentar todas as grandes questões do ser humano a que se associam perturbações e distúrbios: do alimentar ao sexual, do laboral ao familiar, etc.

Frankl faculta-nos, ainda, neste livro, para além de dados para perceber a utilidade da logoterapia, ferramentas para compreender a insuficiência de algumas psicoterapias que se bastam em identificar a etiologia dos problemas de ordem psicológica mas sem conseguirem tratar o círculo vicioso de que se alimentam as doenças desse foro.

Neste livro, o autor descreve algumas das técnicas desenvolvidas pela logoterapia, recolhendo testemunhos de pessoas tratadas com recurso a elas, detalhando, entre outras, a técnica da intenção paradoxal que propõe ao paciente enfrentar aquilo que outras técnicas propunham evitar a todo o custo. Frankl, não só descreve os efeitos esperados com esta técnica, mas também como é que ela mesma atua, ficando evidenciada fundamentação teórica de uma prática que a leitura atenta põe ao dispor do próprio leitor.

Como refere, citando um terapeuta de nome Agras, ‘a intenção paradoxal expõe efetivamente o paciente à situação que ele receia, para tentar provocar as consequências temidas do seu comportamento, em vez de evitar as situações. Assim, uma mulher com agorafobia e que tem medo de desmaiar se passear sozinha é orientada para fazer isso deliberadamente e desmaiar. Quando descobre que não é capaz, isso permite-lhe enfrentar a sua condição fóbica.’ (p. 129)

Os casos de recuperação com recurso a esta técnica são inúmeros e descritos, com detalhe e humor, ao longo do livro que apresenta ideias de enorme atualidade, seja no que concerne à leitura da pessoa, na sua individualidade, seja no que respeita à vida em sociedade. Destaquemos, a este propósito, a referência ao facto de que a felicidade deve ser uma consequência e não um objetivo (p. 78), constatação particularmente oportuna, nestes tempos tão obsessivamente concentrados na ideia da busca da felicidade como meta, esquecendo que, como ele mesmo refere, a sobrevivência depende de um ‘para quê’ e um ‘para quem’ que, esses sim, geram a autêntica felicidade (p. 35). Em matéria de análise de sociedade, sublinhemos a sua afirmação de que existe uma tríade da neurose de massas: a depressão, a agressão e a dependência (p. 25) que ele considera sintomas do ‘vácuo existencial’.

Na mesma página que o autor (citações)

‘[…] pilares principais em que assenta o sistema da logoterapia: a vontade de sentido, o sentido da vida e a liberdade da vontade.’ (p. 11)

‘[…] o reducionismo é o exato oposto do humanismo. O reducionismo, diria eu, é sub-humanismo. […] o homem revelasse como um ser em busca de um sentido – uma busca que, feita em vão, explica muitos dos males da nossa era.’ (p. 15)

‘Uma tradução literal do termo “logoterapia” é “terapia através do sentido”, do logos. Claro que também podia ser traduzida por “cura através do sentido” embora isto introduzisse uma sugestão religiosa que não está necessariamente presente na logoterapia. Em qualquer dos casos, a logoterapia é uma (psico)terapia centrada no sentido.’ (p. 17)

‘A sensação de falta de sentido, o vácuo existencial, aumenta e alastra a um ponto tal que pode, na verdade, ser designado como uma neurose de massas.’ (p. 23)

‘[…] foi estabelecida , para além de qualquer dúvida razoável, uma relação significativa entre o consumo de drogas e um propósito na vida.’ (p. 25)

‘[…] a busca de um sentido é uma características exclusiva do ser humano.’ (p. 28)

‘O argumento de que não se deve pensar no homem de uma forma demasiado elevada parte do princípio de que é perigoso sobrevalorizá-lo. Mas é muito mais perigoso subvalorizá-lo, como observou Goethe. O ser humano, em especial a geração mais jovem, pode ser corrompido se for subvalorizado. Pelo contrário, se reconhecermos as aspirações mais elevadas do homem – com a sua vontade de sentido – então também seremos capazes de as incentivar e mobilizar.’ (p. 30)

‘Claro que um logoterapeuta não consegue dizer a um doente o que é o sentido, mas pelo menos pode mostrar-lhe que há um sentido na vida, que está ao alcance de todos e que, mais do que isso, a vida guarda o seu sentido sob todas as circunstâncias. Mantém-se literalmente plena de sentido até ao derradeiro momento, até ao último suspiro.’ (p. 41)

‘A liberdade humana é uma liberdade finita. O homem não está livre de condições. Mas é livre para assumir uma atitude perante elas. As condições não o determinam por completo. Dentro de certos limites, depende dele sucumbir ou render-se às condições.’ (p. 48)

‘É a coisificação que abre a porta à manipulação. E vice-versa. Para manipular seres humanos e preciso em primeiro lugar coisificá-los e, para isso, doutriná-los segundo as linhas do pandeterminismo.’ (p. 54)

‘O niilismo de ontem ensinava o “nada”. O reducionismo de hoje prega o “não é mais do que”. (p. 57)

‘A liberdade pode degenerar em mera arbitrariedade, a menos que seja vivida com responsabilidade. É por isso que eu recomendaria que a Estátua da Liberdade na Costa Leste fosse complementada por uma Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste.’ (p. 62)

‘O homem não deixará de odiar enquanto lhe for ensinado que são os impulsos e os mecanismos que o fazem odiar. É ele que odeia!’ (p. 74)

‘No clima impessoal da sociedade industrial, cada vez mais pessoas sofrem obviamente com um sentimento de solidão – a solidão da “multidão solitária”.’ (p. 75)

‘A sexualidade humana é sempre mais do que simples sexo, e é mais do que sexo na medida em que serve como expressão física de qualquer coisa metassexual: é a expressão física do amor. Só na medida em que o sexo cumpra esta função será uma experiência verdadeiramente recompensadora.’ (p. 83)

‘Os jovens […] não devem deixar-se contaminar pelo desprezo universal com o qual uma sociedade orientada para a juventude considera os velhos. De outro modo, se tiverem a sorte de envelhecerem, verão como o seu desprezo pelos velhos se transforma em desprezo por si mesmos.’ (p. 110)

Responder à vida significa sermos responsáveis pelas nossas vidas.’ (p. 116)

‘O medo […] tende a provocar precisamente aquilo que é receado e, por isso, a ansiedade antecipatória pode desencadear, e provavelmente fá-lo-á, aquilo que o paciente tanto teme. Assim se estabelece um círculo vicioso que se autoalimenta: o sintoma evoca a fobia; a fobia provoca o sintoma; e a recorrência do sintoma reforça a fobia.’ (p. 121)

‘Como é possível quebrar um mecanismo de retorno deste género? […] Bem, é precisamente isto que se propõe a intenção paradoxal, que pode ser definida como um processo pelo qual o doente é encorajado a fazer, ou a desejar que aconteça, exatamente aquilo de que tem medo (o primeiro caso aplica-se ao doente fóbico, o segundo ao obsessivo-compulsivo). Assim, o doente fóbico deixa de fugir dos seus medos e o obsessivo-compulsivo deixa de lutar com as suas obsessões e compulsões. De qualquer modo, o medo patogénico é substituído por um desejo paradoxal. Quebra-se assim o círculo vicioso de ansiedade antecipatória.’ (p. 123)


**Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

 

sexta-feira, março 01, 2024

Sobre o aborto | É óbvio… então, porque querem fazer-nos crer que não?

Por mérito da Federação Portuguesa pela Vida, o tema «aborto» voltou a ocupar, momentaneamente, as atenções dos portugueses.

Claro que a oleada agenda libertária logo se encarregou de carregar as tintas com que magistralmente logo se oculta um tema quando é perturbador.

E uma dessas ‘tintas’ é a de que o tema já só interessa aos radicais e aos mais empedernidos conservadores.

Esquece-se, porém, que quem não conserva deixa estragar, sendo que a história do desenvolvimento humano é, afinal, a história da capacidade do ser humano conservar o que lhe escapa.

Se bem pensarmos, o desenvolvimento humano deu-se sempre que se conseguiu conservar o que, sem determinadas descobertas, se perderia na voragem do progredir do tempo. Assim foi com a escrita, com a descoberta do papiro, do pergaminho, dos meios para conservar a energia, para conservar os alimentos, para conservar a saúde perante as agressões do meio, para conservar, para conservar… Sem conservar, o que é frágil perde-se.

E é de fragilidade que se fala, quando nos referimos ao aborto.

Digamos o óbvio, pois alguns pretendem convencer-nos de que a legitimação do aborto é irreversível…

É óbvio que…

…O aborto é a força dos fortes sobre a fragilidade dos frágeis. O que pode um filho perante a força dos que o pretendem eliminar?

É óbvio que…

… um filho não é fruto de um só; como poderá, então, ser direito de um só?

É óbvio que…

… sendo o abortamento a eliminação de um filho, extingue-se, com esse mesmo ato, a mãe e o pai, pois estes só o são porque existia um filho.

É óbvio que…

… a legalização do aborto insensibiliza a sociedade, pois gera a convicção de que a vida de um embrião humano está disponível, contribuindo, deste modo, para explicar as anémicas taxas de fecundidade e os saldos naturais negativos desde 2007 (apenas com exceção de 2008).

É óbvio que…

… de acordo com a declaração universal dos direitos humanos, no seu preâmbulo, a dignidade humana é anterior à liberdade e deve ser respeitada por esta, ao contrário do que parecem fazer-nos crer muitos dos que a invocam para justificar as suas decisões. Não é a liberdade que fundamenta a ética; sendo a sua condição necessária (não há ética de seres não livres), não é o seu critério de ordem material. O critério ético fundamental é o respeito pela dignidade da vida humana. Estaremos perante Estados que desistiram da ética?

É óbvio que…

… o aborto deveria merecer a oposição de todos os que se consideram humanistas, e que reconhecem que a vida humana não pode merecer menos proteção do que a vida de outros seres, em particular os animais, para cuja proteção não se criam leis que penalizam apenas o seu abate, em adulto, mas também o protegem (por exemplo, no caso das aves) desde a nidificação. Abater um ninho de ave protegida é mais grave do que eliminar um ser humano na sua fase embrionária?

É óbvio que…

… numa sociedade em que o critério é ‘cada um fazer o que quer’ resta perguntar quem ‘faz o que deve?’.

É óbvio que…

… Quando uma lei (a que legalizou o aborto, em 2007) foi responsável por mais de 250 mil abortos, pela morte de algumas mães na sequência da prática de aborto legal (dado omitido, intencionalmente, pelos media, mas que relatório da DGS relata do seguinte modo, referindo-se a morte ocorrida em 2010: «em 2010, entre as 10 mortes maternas notificadas durante a gravidez e puerpério, ocorreu uma morte na sequência de um aborto medicamentoso, por choque tóxico com Clostridium sordellii), pela ocorrência de sequelas graves (úteros perfurados, sepsis, depressões, etc.), não se pode considerar que se trata de uma lei reveladora de humanismo e genuíno sentido de progresso. Como pode uma lei assim, de um Estado de Direito, ser motivo de orgulho dos que a defendem?

É óbvio que…

… os abortistas têm sabido enredar a sua insensibilidade para com a vida dos filhos ainda não nascidos sob a capa de ‘preconceitos’ que, quando agitados na imprensa, logo dividem a decisão dos que os ouvem. Quem quer ser conotado como ‘insensível’ ou ‘incompassivo’ ou ‘conservador’ ou ‘radical’? A estratégia é dar como assente que todos pensam que o aborto é um bem e insistir, insistir, insistir, até que se considerem uma minoria sem importância os que, obviamente, ainda continuam a perceber que algo não está bem, que não pode ser bom o ato de matar um filho, mesmo que ele ainda não saiba que existe.

É óbvio que…

… a oposição ao aborto não é matéria de uns radicais ou de uns fanáticos, como bem o sabia o inteligente Norberto Bobbio, que se definia como socialista e laico, que afirmava, em maio de 1981, no Corriere della Sera, que lhe causava estupefação que os «laicos entregassem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar», opondo-se ele próprio à legalização do aborto em Itália. Não é para todos esta clarividência…

É óbvio que…

… quem, hoje, tem trinta anos, já foi embrião, sendo que quem é abortado, hoje, jamais terá trinta anos!

É óbvio que…

… uma lei que não é cumprida não passa a ser boa porque legaliza o incumprimento. Sendo o aborto um ato pelo qual os pais matam os seus filhos, na sua fase embrionária, não passa a ser bom porque a lei o desculpa.

É óbvio que…

… quem se opõe à legalização do aborto não é incompassivo ou incapaz de perceber o sofrimento de quem a ele recorre, como o demonstram as ações por si desenvolvidas para acompanhar quem pede ajuda às suas associações, criadas para permitir condições às mães que se sentem impelidas, pelas circunstâncias, a pedir o aborto. Incompassiva é, sim, a atitude dos que dão como resposta para quem se sente impelido para a morte de um filho a legitimação dessa agressão em vez de acompanharem e apontarem outras vias de resposta. É mais fácil legalizar o aborto do que criar respostas longas e duradouras que diminuam as circunstâncias que favorecem o seu pedido.

É óbvio que…

… dizer que se protege um bem sem prever que (e como) esse bem deva ser defendido é uma contradição e não passa de conversa vazia de intenções como as que se diz que enchem o inferno... A despenalização permitiu criar condições para que em torno do aborto outros ‘valores’ se elevassem, muito para além da compaixão para com quem a ele recorre. A legalização despenalizou não só a mulher que o pratica, mas todos os que ganham com o aborto…

É óbvio que…

… um Estado, que reconhece que um filho é um ser a proteger da agressão dos que o rodeiam, cria condições para que a mulher e mãe não fique só na decisão de acolher o nascimento daquele que se desenvolve no seu seio. Um Estado assim responsabiliza o pai e envolve-o neste processo, e não, como acontece pela legalização do aborto, abandona a mulher à sua solidão, entregando-lhe a decisão sobre um filho que foi, afinal, gerado por dois.

É óbvio que…

… se dermos um nome e imaginarmos um rosto que será o do embrião humano em desenvolvimento, jamais o abortaremos, porque o veremos como um ‘tu’ que nos olha, olhos nos olhos e nos pede, por clemência, que o deixemos viver…

Se é óbvio, afinal, tudo isto, então, porque querem fazer-nos crer que a legalização do aborto é assunto arrumado? Não é possível pensar uma sociedade em que todos possam nascer e não fiquem entregues à sorte?

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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