sábado, novembro 19, 2022

A defesa da vida humana | O que ouve quem nos ouve?

Imagine-se a seguinte afirmação: ‘os que legalizaram o aborto até às dez semanas queriam era levar à prisão todas as mulheres que o praticam fora desse prazo’. Ou a seguinte: ‘quem defende o fim da pena de morte quer é ver na rua todos os que praticam crimes’. Ou, ainda, esta: ‘quem defende que deve haver faltas nas escolas quer chumbar todos os alunos que faltam’. 

São frases absurdas?

Pois bem. São-no tanto como a que diz que quem é contra a legalização do aborto quer ver na prisão as mulheres que o praticam.

Mas o que é certo é que esta última tem feito caminho, tem sido repetida até à náusea, com consequências muito nefastas. Basta que se pense que, com ela, muito se tem contribuído para ridicularizar a ação dos que defendem que o aborto é um erro. Tal ridicularização tem feito com que só os mais corajosos continuem a ousar dizer, publicamente, quão errada é esta prática, ainda que sabendo que a ousadia de o dizerem os cobrirá de vergonha e com um manto de suspeita de que serão radicais, fundamentalistas e incompassivos. Sublinhe-se que a lei tem uma função pedagógica. Ao relativizar uma prática que é ofensiva da dignidade e violenta, está a transmitir uma mensagem à sociedade: a de que é uma prática tolerável. É isto que está em causa na legalização do aborto: legalizar diz que é aceitável. 

É por isto que não posso concordar com o que li, há dias, no mais recente livro de Tomas Halík, um autor que sigo e cujos méritos permanecem intocáveis, apesar da crítica que me valem as suas palavras sobre os movimentos de defesa da vida. 

Diz Halík: ‘Também eu tenho um respeito sagrado pela vida do nascituro, mas não posso participar nas marchas daqueles que se fixaram obsessivamente nesse assunto e transformaram o Cristianismo numa cruzada militante para criminalizar o aborto e proibir a contraceção. Fizeram dessa agenda o principal – e muitas vezes o único – critério para aferir o grau de «Cristianismo» dos políticos e o seu sentido de voto nas eleições, tornando-se presa barata para astutos demagogos.’ (T. Halík, A tarde do cristianismo, Ed. Paulinas, p. 114)

Não posso concordar porque não tenho o direito a julgar os motivos que levam os participantes nestas marchas que Halík aqui ridiculariza. Já participei e organizei muitas dessas marchas e encontrei múltiplas razões entre os participantes. Alguns, inclusive, porque tinham vivido, de perto, a dor da perda, por aborto espontâneo, de um filho, e sabiam o que tal significava de perda de esperança e futuro. 

Mais, ainda… É uma ‘obsessão’ como tantas outras em que participei. Também participei e organizei iniciativas contra a pena de morte; contra a tortura, contra a eutanásia… OU, melhor. A favor do respeito pela dignidade humana. E isso não me parece uma obsessão, mas um dever. 

Sendo que, a ‘obsessão’ contra a legalização do aborto, da eutanásia, da pena de morte, tem o condão de estar marcada pela urgência. Cada atraso (de um dia, de uma hora, de um minuto…) pode significar a perda efetiva de vidas. Cada atraso na legalização do aborto, num país, pode significar garantir a sobrevivência de milhares de crianças e mães. Sim, de crianças e mães.

É que, em cada aborto, morre uma criança (obviamente!), mas também uma mãe, pois só se é mãe porque se tem um filho. Sobrevive, eventualmente, a mulher (em Portugal, já morreram mulheres na sequência do aborto legal. Sim. Posso demonstrar o que acabo de afirmar!), mas morre a mãe. 

Acho injusto considerar esta ‘obsessão’ um aspeto marginal da fé cristã. Os movimentos de defesa da vida têm feito, nas últimas três décadas, mais pelas mulheres do que os movimentos ditos feministas, que deixam a mulher abandonada numa rede de supostos direitos, mas solitária e cada vez mais deprimida num mundo solipsista. Os movimentos de defesa da vida arregaçaram mangas e criaram respostas. Nenhuma mulher que pede ajuda fica sozinha. Tem, imediatamente, uma rede de ajuda que a apoia e ajuda a salvar-se das situações confusas com que a vida a confronta.

É injusta acusação... 

Tenho encontrado, entre as pessoas dos movimentos de defesa da vida, uma fé viva, feita de amor. Um amor que ama mesmo aquele a quem ainda não vimos o rosto ou o sorriso. Um amor que ama sem condições. Um amor que acolhe, seja bonito ou feio, ‘perfeitinho’ ou marcado pela deficiência.

É tão injusto, Tomas Halík! Mas bem sabemos que tem sido contra esta injustiça com que o mundo nos vem lendo que continuaremos a lutar, porque há pobres entre os pobres, a quem nem o direito a nascer se quer garantir, que merecem que gritemos por eles, para que um dia, possam gritar que alguém por eles gritou, quando ainda não podiam.

Se o abortado for um filho, um de nós, ainda sem nome nem rosto, mas a quem ousamos dar o rosto de um humano, então a causa da defesa dos não nascidos pode ser uma legítima e justa obsessão. Porque amamos todos: a mãe, o filho, o pai (esse ausente a quem a legalização do aborto excluiu) e todos os que seriam afetados pela perda de um deles… Não amamos um contra os outros. Estamos do lado de todos: a mãe, o filho, o pai. Sempre, sempre, sempre. Mesmo quando nos dizem que o fazemos por não ter fé. Mas porque sabemos que, mesmo que a mãe abandone o seu filho, Deus nunca nos abandonará. 

Queremos ser sinal dessa certeza de um amor incondicional, num tempo que parece tudo reduzir a direitos e a lutas de uns contra outros. Estamos do lado de todos!


terça-feira, novembro 01, 2022

Um outro paradigma para e na educação: não, já, dos ‘direitos aos deveres’, mas sim dos ‘deveres aos direitos’

 

Em matérias que dizem respeito ao ser humano, exige-se sempre alguma prudência na adoção de visões que absolutizam uma só causa, uma só linha de análise, uma só… um só…

Na educação, este princípio é, por maioria de razão, dado mexer com o âmbito do ‘fazer-se humano, válido e de atender, sem qualquer ambiguidade.

É habitual assistir-se ao conflito aberto entre quem defende que educar é, principalmente, instruir, transmitir saberes que são adquiridos como algo exterior ao sujeito, opondo-se-lhe uma outra visão em que tudo está já presente no sujeito e só cabe aos educadores favorecerem a ambiência para que emirjam os saberes já previamente existentes no indivíduo.

Uma e outra visão esquecem o carácter dinâmico da existência humana que é, sempre, o resultado do encontro entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, entre nato e inato, etc…

O erro está em entender que a razão humana possa entender-se fora de uma realidade concreta, historicamente situada e culturalmente definida. Sem estes pressupostos, tudo parece desvanecer-se como fumo dissipado por uma rajada mais forte de vento.

Este quase maniqueísmo educacional é notório nas políticas educativas portuguesas que pendem de uma visão objetivista que concebe a educação como transmissão pura e dura de conhecimentos, fazendo tábua rasa das idiossincrasias dos sujeitos, para uma outra, de sinal oposto, em que o sujeito é, à maneira platónica, um sujeito omnisciente que já possui em si os saberes que cabe apenas fazer emergir, em resultado da criação de contextos favoráveis a tal.

O pessimismo antropológico da primeira visão parece viver do otimismo da segunda, excluindo-se mutuamente, num erro em que o verdadeiro perdedor é a educação.

Nada, na educação, é apenas objetivo ou apenas subjetivo. Na educação, como em tudo o que é humano, a subjetividade e a objetividade interpenetram-se e regeneram-se reciprocamente.

Tendo em conta estes pressupostos, orientemos a nossa visão para um vetor em que nos parece particularmente notório este maniqueísmo destrutivo: o que respeita à relação entre direitos e deveres.

 

O movimento pendular dos paradigmas

Um certo paradigma, mais prevalecente em épocas ou regimes de matriz autoritária, colocava o acento da educação no dever. O sujeito era sumido na consciência coletiva, parecendo inexistente.

Em reação a tal visão, o paradigma substituto veio centrar a educação na consciência dos direitos, pressupondo que um sujeito consciente dos seus direitos é alguém que, mais cedo ou mais tarde, vem a reconhecer ter deveres.

Esta visão, constituída em paradigma maioritário nas sociedades ocidentais do bem-estar, parece-nos assentar numa visão fundamentalmente individualista do sujeito humano.

Se virmos com atenção, partir dos direitos, sem mais, e contar com uma espontânea emergência da consciência do dever, tem muito de otimista e pouco realista.

Um sujeito que vai sentindo que os seus direitos se vão somando, dificilmente sairá desta espiral de conquistas para assumir – a que título? – uma consciência do dever.

 

 

Um outro paradigma: dos ‘deveres aos direitos’

No nosso entendimento, seria importante problematizar um terceiro paradigma, um paradigma de equilíbrio.

Já não um paradigma que sumisse o sujeito numa consciência coletiva, nem, por oposição (na linha do paradigma vigente), um paradigma que partisse dos direitos para vir a fazer emergir o sentido do dever, mas sim um outro em que o sujeito se encaminha para os direitos a partir dos deveres.

Repare-se como este aparente jogo de palavras (não já ‘partir dos direitos para chegar à consciência dos deveres’, mas sim ‘partir dos deveres para chegar à consciência dos direitos’) encerra em si visões muitos distintas. Por um lado, como acima dizíamos, no paradigma que parte dos direitos para chegar aos deveres, está implícita uma visão fundamentalmente individualista. O centro é cada um; não a sua relação com os demais.

No paradigma que estamos a propor, pelo contrário, o sujeito centra-se no outro, para com quem reconhece ter deveres e, a partir desse reconhecimento, constata que também os demais têm deveres que dimanam dos direitos que ele descobre em si mesmo. O regresso a si é feito no encontro com o outro. Aliás, este entendimento vem na linha do que vimos defendendo, desde há muito, ao afirmar que o verdadeiro erro de Descartes não é ele ter-se esquecido das emoções e dos sentimentos, mas sim em ter-nos convencido de que o primeiro facto de que temos consciência seja de que pensamos, de que o ‘eu’ existe. Pelo contrário, o que nos evidencia a realidade é que o primeiro sujeito de que temos consciência é da nossa mãe, é do outro, do ‘tu’, diante do qual nos constituímos como ‘eu’.

Na educação escolar, esta mudança de paradigma seria uma autêntica revolução suave ou, para evocar a ocorrida na antiga Checoslováquia, uma revolução ‘de veludo’.

 

Os sinais que exigem a mudança paradigmática

Na realidade, vale a pena perguntarmo-nos que trabalho educativo temos vindo a fazer quando, chegada a hora de assumirmos deveres, os sinais são de que recuamos e não o fazemos. Vejam-se a título ilustrativo, as notícias de que os concursos para funções militares, policiais, etc. ficam com muitas vagas por preencher, num país em que continuam elevadas as taxas de desemprego. Ou vejam-se os números muito preocupantes das taxas de nupcialidade, ou as baixíssimas taxas de natalidade. Bem certo que, para cada um destes indicadores, há que procurar muitos fatores (cada realidade tem, certamente, os seus, muito específicos), mas, globalmente, evidenciam uma crise de compromisso, uma crise do sentido do dever. Os filhos, a título ilustrativo, são fonte de realização pessoal, bem certo, mas também são um dever para com as gerações futuras e para com a comunidade. (Espero que esta afirmação seja devidamente entendida pelos leitores… Não pretendo dizer que geramos por obrigação, mas há, certamente, algum sentido de dever que acompanha o acolhimento de um filho que, por exemplo, nasceu sem ‘agendamento prévio’ ou com alguma fragilidade especial ou, mesmo, porque todo o filho comporta reajustamento da vida. Nunca mais se fica igual…)

Pode contribuir para esta progressiva mudança de paradigma a tomada de consciência de quanto investe toda a comunidade (compreendida como ‘Estado’), em cada ano, para que cada aluno possa frequentar, gratuitamente, o ensino público. Em 13 de setembro de 2021, o então ministro da educação recordava que cada aluno custa, por ano, ao erário público, 6200 euros (Ver jornal Público[1]). Se, em vez de pensarmos o Estado como uma entidade abstrata que não é ‘ninguém’, o tomássemos como um ‘tio rico’ que decidiu investir na nossa educação, como lhe estaríamos, certamente, gratos pelo que fez por nós! Sendo o Estado a organização da comunidade dos portugueses, será importante que cada aluno, cada família, reconheça o enorme dever que comporta beneficiar da ajuda de todos para que possa abrir, de par em par, o futuro, que é, afinal, a missão da educação escolar.

Propomos, por isso, um novo paradigma: não o que está assente na ideia de dever entendido como fim fechado em si mesmo; não, também, um paradigma que parte dos direitos para vir a chegar (quando?) à consciência dos deveres. Antes, um paradigma em que se parte dos deveres para se chegar à consciência dos direitos. Um tal paradigma centra-se na consciência de que, enquanto pessoas, somos seres em relação, cuja consciência de si mesmo depende dos outros e é devedora da missão que eles têm de fazer emergir em nós a consciência própria.

São muito oportunas, neste contexto, as palavras dirigidas ao povo americano por John F. Kennedy, em 20 de janeiro de 1961, no discurso de tomada de posse após ter sido eleito presidente dos Estados Unidos:

Não perguntem o que pode o vosso país fazer por vós. Perguntem, antes, o que podem fazer pelo vosso país.’ (In Simon, Sebag Montefiore, Discursos que mudaram o mundo, Lisboa, Difel, 2006, p. 221)

 



[1] https://www.publico.pt/2021/09/13/sociedade/noticia/aluno-custa-6200-euros-ano-aumento-30-desde-2015-ministro-1977237

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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