quinta-feira, dezembro 30, 2021

Recensão de 'Leonardo Boff, S. José: a personificação do Pai'

 

Leonardo Boff, S. José: a personificação do Pai, Cascais, Editora Pergaminho, 2006.

 

O que poderemos dizer sobre S. José? ...se dele só temos silêncio!

Leonardo Boff enfrenta esta questão e a dureza desta constatação.

Com efeito, a escassez e simplicidade das referências bíblicas poderia ser obstáculo a uma reflexão conclusiva sobre a sua identidade e relevância na história da salvação.

Boff enumera oito situações em que José é referido, nos textos bíblicos, sendo que em nenhuma delas ouvimos palavras suas: na genealogia, na anunciação, no nascimento do seu filho, no relato da fuga para o Egito, na descrição do regresso a Nazaré, na apresentação de Jesus no templo, aos oito dias, no relato da presença de Jesus entre os doutores da Lei e, por, fim, quando se refere que Jesus era filho do carpinteiro.

De resto, se queremos saber mais sobre José, e se formos dados ao cultivo da imaginação, restar-nos-ão os evangelhos apócrifos (de onde, aliás, emanaram muitos dos elementos icónicos que preencheram a sua representação artística ao longo dos tempos).

Para nos conduzir na sua reflexão, Leonardo Boff enuncia uma tese e socorre-se da metodologia teológica que assenta, por um lado, no reconhecimento do lugar da própria tradição teológica para a consolidação da leitura do facto revelado, mas articulando esse mesmo reconhecimento e utilização com um elemento metodológico da teologia altamente iluminador: o nexo dos mistérios.

Socorrendo-se deste, Boff formula um teológúmeno (uma hipótese teológica ainda não totalmente validada pelo magistério, mas que poderá (e já fez) fazer o seu caminho). Esse teologúmeno é devido, como o mesmo Boff reconhece, a Adauto Schumaker, um franciscano nascido em 30 de junho de 1910, que chegou a trabalhar na editora Vozes, onde veio a publicar algumas das suas ‘especulações teológicas’. Estão na posse do nosso autor alguns dos manuscritos do frade Adauto, com quem ele mesmo privou e a quem foram partilhadas em confidência os elementos fundamentais da tese defendida neste livro.

Ora, a ideia fundamental aqui apresentada é a de que José vive em união hipostática com o Pai Celeste.

Para tal, e fazendo uso da metodologia acima enunciada, Boff sustenta que a teologia refere que cada Pessoa da Trindade age na unidade desta («Dada a inclusão de uma [Pessoa Divina] na outra (pericórese), quando uma se autocomunica traz consigo as outras duas, preservada a característica própria de cada uma. Se o Filho se autocomunica a Jesus de Nazaré (encarnação), ele carrega consigo o Pai e o Espírito Santo, embora seja só o Filho que se encarna.» (p. 126)), pelo que, para simplificar, poderá constatar-se que, se em Jesus está presente o Verbo (segunda Pessoa da Trindade), se em Maria agiu o Espírito Santo, a aplicação da metodologia decorrente do ‘nexo dos mistérios’ (em que uns mistérios iluminam outros e estão em estreita coesão e articulação com eles) leva-nos a pressentir que, no silêncio de José se torna presente a ação discreta, mas eficaz, do Pai.

Para reforçar a tese, Leonardo Boff percorre os caminhos da história para evidenciar que, com efeito, longo foi o silêncio do Magistério sobre a figura de José (mais presente entre a espiritualidade popular), mas para a qual tem despertado, em particular nos últimos dois séculos, e, de forma mais significativa, com João Paulo II, que dedica uma exortação apostólica a S. José. Desta, Leonardo Boff destaca a seguinte citação que considera permitir vislumbrar o sentido da sua tese:

«A Igreja rodeia de profunda veneração esta Família, apresentando-a como modelo para todas as famílias. A Família de Nazaré, diretamente inserida no mistério da Incarnação, constitui ela própria um mistério particular. E ao mesmo tempo — como na Incarnação — é a este mistério que pertence a verdadeira paternidade: a forma humana da família do Filho de Deus, verdadeira família humana, formada pelo mistério divino. Nela, José é o pai: a sua paternidade, porém, não é só «aparente», ou apenas «substitutiva»; mas está dotada plenamente da autenticidade da paternidade humana, da autenticidade da missão paterna na família. Nisto está contida uma consequência da união hipostática: humanidade assumida na unidade da Pessoa divina do Verbo-Filho, Jesus Cristo. Juntamente com a assunção da humanidade, em Cristo foi também «assumido» tudo aquilo que é humano e, em particular, a família, primeira dimensão da sua existência na terra. Neste contexto foi «assumida» também a paternidade humana de José.» (João Paulo II, Exortação Apostólica Redemptoris Custos, 21)

O que João Paulo II afirma, ainda não é coincidente com a tese proposta por Boff (e por isso, o próprio autor reconhece tratar-se de um teologúmeno), mas o significado é profundo e admissível: afirmar que José é a personificação do Pai permite olhar para a Sagrada Família já não apenas como um modelo, mas como a própria ação efetiva da Trindade que a encarnação não é abstrata, mas a assunção da real condição humana, que se realiza a partir de uma concreta situação. A assunção (em união hipostática) da paternidade de José, expressando a totalidade da Trindade na família de Nazaré, coloca a prioridade na comunhão em relação à individuação, pretexto para que, em páginas muito significativas, Leonardo Boff reflita sobre desafios colocados, nos nossos tempos, à realidade familiar, em geral, e à condição paterna, em particular. Destacamos desta reflexão o que Boff diz sobre aquilo que ele designa como o ‘princípio antropológico do pai’, socorrendo-se de designação tomada da psicanálise:

«A situação atual do pai não serve de base para se experimentar Deus como Pai. A tradição psicanalítica tem sustentado a importância da figura do pai e das experiências que os filhos/filhas fazem com ele para projetar uma imagem de Deus-Pai integradora e humanizadora […]. Para que continue a desempenhar esta função transcendental e verdadeira missão, urge um reengendramento, sobre outras bases, da figura do pai. É nessa perspetiva que S. José, como pai, pode contribuir com alguma luz.» (p. 166).

A citação aqui recolhida permite observar que ‘S. José, a Personificação do Pai’ não se confina ao limite de formular e defender uma tese, ainda que já não fosse um exercício despiciendo: enuncia consequências efetivas para a sociedade e para a vivência pessoal de uma leitura teológica da figura de José.

Um livro recomendável e de leitura envolvente (espero que sejam tão decisivas para esse reconhecimento as minhas palavras como o foram as de um amigo a quem o emprestei…) oportuna para recolher as aparas que ficam do passar da plaina de um ano dedicado a esta singular figura da história da Salvação.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Livro: recensão de Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes

 

Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

 O fim de um mito

(Ou ‘como ter nas mãos um meio eficaz de repor justiça’)

 

Fake news!

Andamos preocupados – quase obcecados com a matéria. De tal modo que nos levam a crer (fake new!) que as fake news são de hoje.

Este livro não é – nem por sombras! – sobre ‘fake news’. Mas propõe-se enfrentar uma das mais consolidadas ‘fake news’ dos últimos três séculos.

Isso mesmo!

Cerca de trezentos anos!

Trata-se de uma ‘fake new’ que serviu interesses e que alimenta, ainda hoje, muitos preconceitos.

Partamos à sua descoberta.

A sua denúncia formula-se no próprio título do livro: ‘A Idade Média: a verdadeira idade das luzes’ (Talvez se pudesse ter optado por ‘a verdadeira idade da luz’, tendo em conta o que o autor refere, na página 162, a pretexto dos estudos medievais sobre a luz de que resultaram a criação dos óculos, mas admite-se a opção da tradutora por ‘a verdadeira idade das luzes’, aludindo ao título autoatribuído pelos iluministas…).

E que denúncia se vislumbra ali?

A de que a Idade Média foi tudo menos uma idade de trevas.

Mas essa ‘fake’ (a de que a Idade Média era idade de trevas) fez caminho – muito caminho! – e continua, hoje, bem consolidada. (Dado o curto-circuito entre ‘Idade Média’ e ‘Igreja’, quando, numa discussão, se quer silenciar a força argumentativa de um cristão, logo se evoca a ‘tenebrosa’ condição da Idade Média. E tudo fica arrumado! Nada melhor do que um bom preconceito para acabar com uma discussão!)

Quem não se lembra da teoria de que a Idade Média acreditava que a terra era plana?

Sim, quem não se lembra? Disso davam eco (ainda hoje?) os livros de História.

E a lembrança é tão forte que até nos custa a crer que não fosse assim.

Mas não o era, de facto.

A Idade Média não acreditava que a terra fosse plana.

Entre nós, portugueses, já os professores Henrique Leitão, Jorge Buescu e outros denunciaram essa fake new, com muita erudição e detalhe.

Seb Falk demonstra-o, neste livro, de forma muito detalhada.

Para tal, recorda, entre outras coisas, que um dos tratados mais estudados, durante a Idade Média, era o ‘tratado da esfera’ que teve em João Sacrobosco (1230) um dos seus maiores proponentes. A esfera era, bem certo, o orbe celeste, mas, também, a Terra.

Porém, apesar deste facto, a História e a história da História, após a revolução francesa e durante o século XIX, veiculou a ideia de que os medievais (até lhe chamou ‘Idade Média’, para estabelecer uma ponte vazia entre os antigos e os modernos!) eram obscurantistas e defendiam (imagine-se!) que a Terra era plana.

Entre nós (Seb Falk não conta este detalhe), chegou-se ao ponto de consolidar a teoria (a fake new) de que a Idade Média acreditava numa terra plana com a tese de que Cristóvão Colombo não obtivera o apoio da corte portuguesa porque entre esta se continuava a acreditar que a terra era plana.

 

Como consolidar um preconceito

A verdade é outra!

Como conta Jorge Buescu, num artigo com o título ‘a terra nunca foi plana’ (no livro ‘da falsificação de euros aos pequenos mundos’), a coroa portuguesa não apoiou a empresa de chegar à India pelo ocidente, porque sabia que a distância era tão grande que seria um investimento no vazio, pois Colombo nunca chegaria lá. A sorte deste foi ter-lhe aparecido a América, no caminho!

Ora, esta e outras teses são demolidas neste livro de Seb Falk.

Um livro extraordinário!

Extraordinário pelo rigor do autor, pela erudição em linguagem simples com que aborda cada temática e porque é profundamente respeitador do leitor. Veja-se, a título ilustrativo, a qualidade das notas (que, para um leitor habitual, deviam ser de rodapé, mas as edições atuais optam por colocá-las no final, o que dificulta a leitura em vaivém… Deixo o repto!). Seb Falk não faz citação de citação: vai às fontes!

E faz um ensaio de história da ciência como quem escreve um romance policial.

Tudo começa com a investigação sobre o verdadeiro autor de um tratado, a partir de uma investigação feita por Derek Price, na década de 50, que se interrogava sobre o efetivo escritor de uma obra que nos dava instruções detalhadas para a construção de um derivado do astrolábio que permitiria identificar, com precisão, a localização dos planetas. (Tenha-se em conta que tudo era baseado, exclusivamente, na investigação matemática em articulação com as deduções artonómicas, pois ainda se tinha de esperar pela invenção do telescópio… Mas a lucidez e o rigor matemático denunciam um verdadeiro espírito científico de quem parte à demanda da verdade).

Tudo começa aí e vai-se desfiando até nos levar ao quotidiano da vida medieval, onde descobrimos o fascínio da descoberta e a frescura da liberdade intelectual, tantas vezes hoje pretendida e amarfanhada. Ilustra esta liberdade a história de uma greve ocorrida no século XIII, na universidade de Paris, em que os mestres reivindicavam liberdade perante o poder político. A sua reivindicação saiu vencedora. (Sim, não podemos esquecer que as universidades – Bolonha, Salamanca, Oxford, Montpellier, Paris, Coimbra, Lisboa, etc. – nasceram na Idade Média! E que já então a ‘circulação’ dos intelectuais entre universidades era uma prática habitual!).

Pela mão de Seb Falk, compreendemos que os nomes maiores da ciência moderna não nasceram do nada (Mas a forma como é feita a história da ciência deixa, muitas vezes, o travo amargo de uma conceção emergentista dos grandes nomes: como se aparecessem sem ‘gigantes aos ombros dos quais se encavalitam’. Sim, também esta frase, cuja autoria é tantas vezes atribuída a Isaac Newton, é da responsabilidade do medieval Bernard de Chartres!). Percebemos as raízes medievais do pensamento astronómico (devedor à influência cristã e muçulmana que recebeu nos estudos universitários que fez em Cracóvia, Bolonha, Pádua e Ferrara) de Copérnico, que responde, com o heliocentrismo, a interrogações de sempre colocadas pela teoria defendida (e muito discutida) por Ptolomeu, no seu Almagesto, mas mais proximamente formuladas por Peuerbach e Regiomontanus, ou as origens do próprio pensamento de Leibniz no admirado Richard Swineshead (século XIV), autor do Livro dos cálculos, que lhe valeu a alcunha de ‘calculador’.

Falk aborda, ainda (e muito escapa a esta resumida recensão de leitor entusiasmado – exigente tarefa se impõe ao próximo autor que tomarei em mãos, após esta tão fecunda leitura!), a questão do impacto do heliocentrismo nas mentalidades. Curiosamente, também as fakes são abundantes no que respeita a esta matéria. Bem nos recordamos todos de ouvir dizer que o heliocentrismo demolira a visão arrogante que o geocentrismo vincava. Seb Falk recorda, porém, que ‘os pensadores medievais imaginavam muitas vezes a Terra ao fundo, e não no centro, do vasto Universo; e estar tão longe quanto possível da perfeição dos céus não era propriamente uma posição desejável. É por isso que, na obra de Galileu Diálogo sobre os dois principais sistemas do Mundo, Ptolemaico e Coperniciano, o astrónomo florentino pós o seu porta-voz, Salviati, a afirmar que «estamos a tentar tornar [a Terra] mais nobre e mais perfeita […] e de certa forma a colocá-la nos céus, de onde os vossos filósofos a baniram».’

Mas a fake new respetiva defende que os medievais é que eram arrogantes! (Na era dos emojis, deixo ao leitor imaginar qual escolheria!...)

 

Idade Média: idade luminosa com sombras… Como as demais épocas!

Chegados aqui, impõe-se uma pergunta: mas a idade média era só luminosidade e esta beleza de que aqui falamos?

(Obviamente que o autor não esconde os aspetos menos luminosos desta época. Isso é, aliás, frequentemente recordado, por exemplo, quando apresenta o paralelismo entre o desenvolvimento astronómico e a influência dos reptos da astrologia.)

Duas notas nos merece esta constatação da presenças de aspetos opacos na idade média: que todas as épocas tiveram (e terão) as suas opacidades – veja-se como, em pleno século XXI, continuam a proliferar, e com forte influência, as mentalidades que negam, por exemplo, que na gravidez humana esteja em desenvolvimento vida humana! Ou que defendem que existam raças desigualmente humanas, etc… (na luminosa época da ciência, continuam a verificar-se obscuridades deste teor…) – e, por outro lado, que as zonas de sombra pressupõem a luz. Não poderemos fixar-nos nas sombras, omitindo a origem luminosa perante a qual emerge zona sombria. Em relação à Idade Média, a opção tem sido amplificar a sombra, omitindo a força da luz. Seb Falk desafia a que se olhe a Idade Média pelo seu lado luminoso: ‘a verdadeira idade da Luz’!

Não pense, porém, o leitor, que o livro se desenrola ao longo de mais de 400 páginas com a repetição de ‘veja, na Idade Média não eram como pensa’. O livro é, como acima descrito, uma espécie de ‘romance policial’ baseado em factos e dados de investigação. E até é humilhante constatar quanto desconhecíamos. E quanto podemos descobrir quando, honestamente, deixamos que a história de cada época fale por si, sem que lhe imponhamos os nossos preconceitos. Factos, factos e mais factos! Nomes e descobertas e linhas de discussão. Num desenrolar de novelo que nos fascina, da primeira à última página. E, quando já terminámos a leitura, o autor formula um conjunto de sugestões que nos fazem partir à aventura de sermos nós mesmos a ver como funcionava o ‘equatorium’ (Ah, eis o nome do instrumento alternativo ao astrolábio, proposto por John Westwyk – anónimo na nossa recensão como permanecera anónimo durante quase 500 anos…) ou como pensou Richard de Wallingford (que ilustra a capa do livro) o primeiro relógio mecânico ou, ainda, a procurar saber um pouco sobre os nomes dos desconhecidos tradutores das grandes obras clássicas, originalmente escritas em grego ou árabe, vertidas pela sua mão para latim. Seb Falk resgata do silêncio da história nomes de tradutores como o de Gerardo de Cremona ou de Alfred Shareshill… (Ilustres desconhecidos mas de quem todos falam quando dizem que Aristóteles e Avicena foram recebidos nas universidades da Idade Média!)

O próprio autor assume que não quer maçar os leitores com a sucessão de nomes de insignes figuras medievais. Enuncia alguns dos preteridos numa lista final que inclui sugestões muitos úteis de outros livros e sites onde poderão encontrar-se estas e outras informações relevantes. O livro deixa, no leitor que acaba de fazer a viagem que nos é proposta, a sensação de que nada será como dantes… Bem certo que demolir um preconceito não é tarefa fácil. Mas a argumentação, que é pura descrição factual, não deixa margem para dúvidas. Em nome da verdade, há que reconhecer que a Idade que os modernos quiseram chamar ‘média’ foi rica de pensamento e descobertas científicas. Este é, por isso, um livro de justiça… Um livro que coloca nas suas mãos um meio de repor a verdade onde as fake news têm abundado.

quinta-feira, dezembro 16, 2021

Todas as reivindicações são direitos humanos?

Interroguemo-nos, sem preconceitos, sobre o que estamos, afinal, a dizer quando nos referimos a ‘direitos humanos’. A hora é de pensar, refletir e não deixar de nos interrogarmos apenas porque as decisões se afiguram imparáveis…

Para responder a tal desafio, optarei pela via da interrogação que suscite, no leitor, a dúvida sobre se tudo poderá caber sob o chapéu de ‘direito humano’.

Importa, de imediato, fazer uma constatação: o ser humano é um ser de desejos. Mas nem todos os desejos são, por si próprios, direitos. Serão direitos aqueles desejos que correspondam ao que é justo. E o que é justo? Ulpiano, numa definição que se tornou clássica, diz que justiça é a ‘vontade firme e constante de atribuir a cada um o que lhe é devido’. Sublinhemos o final da definição: ‘o que lhe é devido’. Direito é, por isso, um desejo que corresponde a algo que é devido. Desejo que não corresponda a algo que é devido só será atribuído por uma decisão arbitrária, que corre o risco de ser, mesmo, injusta.

Posso desejar muito possuir um determinado bem de alguém (um carro, uma casa, um recurso tecnológico, etc…). Esse desejo não é, porém, por si mesmo, um direito. O bem do outro pertence-lhe. Atribuir-mo, só porque o desejo, faz do ato do decisor um ato injusto. Teria de se verificar se o bem desejado me é devido…

Com tais pressupostos, perguntemo-nos como é que, considerando a criança um ser humano portador de direitos, poderá algum dia aceitar-se que ter um filho seja um direito. Há, aqui, uma tremenda confusão entre o direito a não ser impedido de gerar filhos e o direito a ter filhos. Se ter filhos viesse a ser reconhecido como direito, o filho seria propriedade de alguém, numa negação clara da dignidade da pessoa humana, pois transformaria o filho num meio, não respeitando a sua intrínseca condição humana de fim em si mesmo. A esta luz, como podem reivindicar alguns que tudo seja feito para que, mesmo contrariando qualquer condição natural a gerar filhos, lhes seja garantido o direito a ter filhos? O filho não é um bem que se possui; é alguém que se respeita, acolhe e de quem se cuida, amando-o e considerando-o fim em si, e cujos interesses maiores devem ser prevalecentes.

Como, aliás, aceitar que, em nome do já denunciado inexistente direito a ter filhos, se tenha legitimado que uniões que são, intrinsecamente, incapazes de gerar filhos, possam ver garantidas as condições para que os filhos lhes sejam gerados (atribuídos de forma arbitrária e não justa porque não devida), num contexto de uma orfandade materna ou paterna, originada pela via da lei. A orfandade que tudo quereríamos evitar para alguns está a ser proporcionada, pela via legal, para outros. Quem se compadece destes órfãos gerados pela própria lei?

Perguntemo-nos se, considerando-se que o direito à vida é direito primordial e condição necessária para a possibilidade dos demais, será legítimo que algum dia viesse a ser aceite que o aborto fosse um direito. (Só num mundo de enormes contradições…)

Perguntemo-nos com que legitimidade reivindicam alguns, ao arrepio do que afirma o preâmbulo da declaração universal dos direitos humanos, que diz que os direitos são inalienáveis (logo, insuscetíveis de alineação por alguém, mesmo o próprio…), que o suicídio e a eutanásia possam vir a ter estatuto de direitos humanos… Defender, cuidar e proteger a vida é, bem certo, um direito a que tem cada um perante o outro, mas também, por se tratar de direito inalienável, um dever para si mesmo…

Perguntemo-nos como poderá, considerando-se a igual dignidade de todos, aceitar como um direito humano a poligamia ou poliandria, reivindicada por alguns, a pretexto, por exemplo, da bissexualidade ou de outras opções de teor semelhante. Não pressupõe, aliás, a declaração universal dos direitos humanos, a igualdade de condições entre os dois (homem e mulher) ao afirmar, no seu artigo 16º, que «a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.»? Quanta contradição se percebe entre os que reivindicam como sendo ‘direito a casar’ a legitimação de serem ‘casamento’ uniões que não nascem do mesmo pressuposto que se compreende neste artigo!

Se esta via, vertiginosa e aparentemente imparável, prosseguir, os direitos humanos serão reduzidos ao direito a que cada um faça o que quiser. E, numa sociedade em que cada um faz o que quer, vale a pena perguntar quem faz o que deve e ter-se a noção de que, rapidamente, se proporcionam as condições para que a arbitrariedade se imponha, criando o lastro para o emergir de ditadores que nos dirão o que nos cabe fazer…

Não pisam já os nossos pés esse chão?

terça-feira, novembro 30, 2021

Da tragédia de Édipo à esperança do presépio

 Eis-nos no caminho de Troia para Ítaca, no sonho do Éden… Temo-lo feito, ora com uma mão em Ulisses, ora com a outra em Adão. A mão de Ulisses sua de tragédia, goteja, mesmo! Nela, só parece haver sangue e desilusão. Nada podemos fazer, no caminho grego, contra a voracidade e vertigem do destino. Preserva-se no adágio ‘fatal como o destino’ um resquício dessa rendição.

Mas Adão não é o homem da tragédia.

Sucumbiu (e continua a sucumbir), bem certo, à tentação e, com ela, veio a dramaticidade da vida. Mas ele já não é rendido ao poder de um destino inexorável. O horizonte do Novo Adão redime-o e reconfigura-o como imagem da esperança.

O percurso tem-nos mostrado, por isso, que à densidade trágica não temos de somar tragédia. Mas disso se convenceram os gregos e, com eles, tantos dos nossos contemporâneos.

A história humana é marcada pela tragédia. Mas não há que render-se-lhe como se nada mais restasse do que aceitar que assim é e não poderá ser de outro modo.

Também os gregos vislumbraram, fugazmente, que pudesse não ser assim quando colocaram, num recôndito e escondido recanto da caixa de Pandora, a esperança. Mas a tragédia grega parece mais forte do que a esperança.

Terá de se esperar pelo Cristianismo para fazer germinar e tornar frondosa a árvore bem robusta da esperança

Mas a mão de Ulisses parece querer prender-nos e agarrar-nos, não nos deixando acolher os dedos de Adão.

Em tantos momentos se expressa esta visão trágica!

Particularmente notória é a sua presença quando a vida se dramatiza.

Dela são densas narrativas o mito de Édipo e a singeleza do presépio.

Édipo (já aqui falámos dele, pois virá a ser o pai de Antígona, Polinices, Etéocles e Isménia) é filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas.

Quem no-lo conta é o eterno Sófocles, nas suas tragédias Rei Édipo e Édipo em Colono, seguindo-o, aqui, pela pena de Luc Ferry, no seu livro ‘a sabedoria dos mitos’ [edição da Temas e debates, 2014].

Um oráculo prenuncia que aquele filho, Édipo, matará o pai e tomar-se-á de amores pela mãe.

Ontem, como hoje, o parricídio e o incesto incluem-se nos mais hediondos comportamentos humanos. Para não sucumbirem ao fatídico vaticínio, decidem entregar o pequeno príncipe à sorte, deixando que um dos seus servos, um pastor, o leve para um bosque onde possa ser devorado pelas feras. No caminho, encontra os servos de um rei vizinho que não conseguia ter filhos. Propõem-lhe tomar a criança para a tornarem príncipe de outro rei. Só já adolescente conhece, numa disputa de crianças, que não será, efetivamente, filho do pai, uma vez mais, no oráculo de Delfos, onde os seus verdadeiros pais já tinham concluído que sobre ele impendia aquela maldição.

Decide fugir da cidade onde vivia, dirigindo-se para (pois está claro!) Tebas. (Tudo é trágico, nesta descrição, e nada há a fazer…) No seu caminho vem o rei de Tebas, dirigindo-se ao mesmo oráculo de Delfos, para saber o que fazer, pois a sua cidade era assolada por uma epidemia. Os destinos de ambos cruzam-se sem que nenhum deles possa fazer nada senão dar os passos certeiros para que ele se cumpra…

Do mito para a realidade…

No início da nossa era, também uma outra criança parece ver recair sobre ela oráculos trágicos (como parecem ecoar os gregos as palavras do velho Simeão!). Mas na história desta criança o fado, o terrível fado não tem a última palavra.

O pai foge da perseguição cruel de um Herodes a quem a história chamou ‘grande’. E sobrevive. Não sucumbe.

E mesmo a predição da morte cruel que atravessará o próprio coração da sua mãe é prenúncio de uma esperança que superará a tragédia.

Dos oráculos de Delfos ‘refulge’ a sombra da tragédia.

Da humildade do presépio dimana a refulgência de uma luz infinita.

E é por isso que, enquanto os gregos expunham os seus filhos ‘malditos’, jamais os cristãos expuseram os seus filhos, como disso é retrato intemporal o dizer do anónimo autor da carta a Diogneto, em finais do século II. Diz ele dos cristãos (segundo edição da Alcalá, de 2001) que «habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» Mas (nota que mostra a novidade que o cristianismo trouxe ao mundo e permanece, hoje, como escândalo, quando tantos continuam a expor os seus recém-nascidos ou ainda não nascido…) «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos.»

Édipo continua a fascinar, mas a sua sombra denuncia uma luz de que ele não é origem: a esperança cristã! Hoje, como nos primeiros séculos, o brilho cristão incomoda porque alguns continuam a habitar num reino de sombras. E as sombras falam de uma luz que ofusca e não se quer olhar.

O brilho que inunda o mundo é humilde e suave, mas inabalável. Adão fez-se Novo Adão. Já não estilhaçado pela tentação, mas ainda exposto pelo mundo que o abandona e não quer ver. Mas Deus já não é alguém rendido ao trágico, ao inexorável: liberta e liberta para sempre. Não há, por isso, que temer a fragilidade. Ela já não é uma maldição: é um caminho de superação, em que o próprio Deus encarna, para dela se compadecer e, assim, a elevar. O sonho do Éden está totalmente presente na singeleza luminosa do estábulo frágil e só aparentemente abandonado.

(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')

sábado, novembro 27, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) VI | Creio… num só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus

 

‘Quem dizem os homens que eu sou?’

A pergunta, repercutida em Mc 8,27 (e paralelos) continua, aguda, a ressoar aos nossos ouvidos, sendo tão relevante, no evangelho de Marcos que, segundo os exegetas, determina um antes e um depois em toda a dinâmica deste livro bíblico. Neste contexto, Jesus, ao ouvir da boca de Pedro, que ‘Tu és o Cristo’ (uma afirmação que é muito mais do que a enunciação de um nome, mas a afirmação da condição de ‘escolhido’, ungido, Aquele por quem se estava à espera enquanto ungido para ser rei), ordena que guardem silêncio, um silêncio a manter até que, definitivamente, se opere a ‘unção’ com a morte e ressurreição.

Hoje, volvidos cerca de dois mil anos sobre este acontecimento, a pergunta continua a ser ‘a pergunta’, pois nela se repercute a interrogação definitiva sobre o sentido de toda a criação. Ou Cristo é o Cristo, Aquele em quem se manifesta o que, definitivamente, espera o mundo, ou resta a solidão fria de uma criação sem rumo… Ele revela! N’Ele se revela tudo! E isto muda, de facto, tudo!

Charles Péguy, um escritor francês de finais do século XIX e inícios de XX, um convertido tardio ao cristianismo, repercute este reconhecimento de que o mundo anda todo em busca desta definitividade que traz Jesus Cristo:

‘Os passos das legiões tinham marchado por ELE.

As velas dos barcos por ele se tinham inchado.

Por Ele os sóis de Outono tinham luzido.

As velas dos barcos por Ele se tinham dobrado.

[…]

Os passos de Dario tinham marchado por Ele.

Era Ele que se esperava no fim do fundo da Pérsia.

Era Ele que se esperava numa alma dispersa.

Ele era o Senhor de ontem e de hoje.

[…]

As regras de Aristóteles tinham andado por ele.

Do cavalo de Alexandre às regras escolásticas.

E por Ele os ascetismo e a regra tinham luzido,

Das regras de Epicuro às regras monásticas.’

(Reproduzo, aqui, com pequena alteração, tradução recolhida de J. C. Neves, Deixem-me falar-vos do impossível. Cascais, Lucerna.)

Toda a história do cristianismo é um esforço de resposta consequente a esta decisiva interrogação. Não apenas como uma resposta devida, mas como resposta de vida…

Na definição perante este aparente jogo de palavras se determinou, ao longo da história, o teor da resposta.

Muitas foram as tentativas que redundaram no que veio a considerar-se como heresia. Importa, hoje, compreender o que se decidia quando o cristianismo considerou determinadas linhas como sendo heréticas. (Sublinhe-se, porém, a ilegitimidade de toda a violência em nome do cristianismo… A salvaguarda da verdade não pode ser pretexto para o fim da caridade, assim como a salvaguarda da caridade não pode fazer-se ao arrepio da verdade. Assim com S. Paulo (dizei a verdade na caridade… Ef 4,15), assim com Bento XVI (é preciso realizar a caridade na verdade!).)

Os primeiros séculos cristãos foram, com efeito, marcados pela busca incessante da verdade sobre a natureza daquele Jesus a quem Pedro chamou ‘O Cristo’, redundando dessa busca uma outra compreensão sobre o próprio Deus que n’Ele se revelava.

Para se compreender o critério com que se foi estabelecendo o que não correspondia à ortodoxia, não estava qualquer tipo de opacidade ou verdade oculta, contrariamente ao que pretendem afirmar, ainda hoje, os que, decididos a não tentar perceber o cristianismo, se sossegam sob a capa de um preconceito tranquilizador.

Os primeiros cristãos entenderam, desde a primeira hora, que Aquele com quem eles conviveram, de quem eles conheciam a família, cuja origem era bem sabida de todos, Aquele era um como eles, mas um em quem não havia incoerência e em quem se constatava uma unidade com Deus, que foram percebendo ser Seu Pai, que não se encontrava em qualquer outro.

Ora, uma tal constatação que ganha particular pertinência e evidência na sua morte e na sua ressurreição, confere aos cristãos o critério fundamental: Ele é um de nós, um como nós, mas é muito mais do que um de nós e um como nós; Ele é, no meio de nós, a realização definitiva da ponte com o eterno. Ele é a presença singular, irrepetível, do eterno, na máxima manifestação, à luz da qual todas as demais devem ser interpretadas. Ele é, no dizer da carta aos Hebreus, o único sacerdote, a verdadeira ponte.

Este é o critério! Ele é a ponte!

Ora, uma ponte sem ligação de uma margem a outra pode ser uma bela obra de arte, mas não realiza o que deve realizar uma ponte: unir as duas margens.

Eis o critério definitivo à luz da qual se estabelece o que é resposta adequada à pergunta e o que não o é.

A esta luz, compreende-se porque é que falham o docetismo (que afirmava que a dor e o sofrimento de Jesus Cristo fora aparente), o arianismo (que dizia que Jesus Cristo era, efetivamente, humano, mas não era da mesma natureza de Deus, sendo apenas adotado por este, na morte), o pelagianismo (que reduzira Cristo a um belo exemplo moral, mas em que não se operara, efetivamente, uma salvação universal) ou, já mais recentemente, todas as abordagens que olham, fascinadas, para o Jesus histórico, vendo nele um herói singular, mas não o reconhecem como presença definitiva de Deus na História… Em todas estas abordagens falha a dimensão ‘pontifical’ de Jesus Cristo. Uma das margens fica suspensa!

Continuaríamos, assim, sem resposta à pergunta e continuariam a ser vãos ‘os passos da legiões’, ‘os passos de Dario’ ou o insuflar das velas dos barcos.

E não é apenas porque o queremos ou porque o quer a Igreja que tal deve ser assim. A ressurreição de Cristo operou, naqueles que eram tímidos, acobardados e temerosos, uma transformação tal que fez deles desabridas testemunhas que foram até ao ponto de dar a vida muito tempo depois dos eventos que tinham testemunhado. Nenhuma ilusão se sustentaria tanto tempo e para mais separados uns dos outros e sem os meios de reforço de ‘motivação’ de que hoje dispomos!

A realidade de Jesus Cristo, ponte definitiva entre o efémero e o eterno, entre a criatura e o Criador, estava desde o primeiro momento, presente na condição frágil do menino nascido pequeno e com condição humana. Mas a iluminação, no coração dos que o seguiam foi-se fazendo paulatinamente. Assim também na história do cristianismo. Tudo está desde o primeiro momento. Mas é necessário fazer o caminho de desvelar o que ali transparece, mas que é, tantas vezes, opaco ao olhar desatento. A consequência mais notória desta condição de ponte é que a nossa resposta à pergunta inicial terá de redundar na transformação dupla da nossa própria compreensão (a nossa vida faz sentido, tem sentido, o mundo é ser criado e não produto de acaso), mas também da compreensão de quem é o próprio Deus.

Como bem recorda Albert Nolan, no seu livro ‘Jesus antes do Cristianismo’ (2010, Paulinas), ‘é este o significado da afirmação tradicional de que Jesus é a Palavra de Deus. Jesus revela-nos Deus, mas Deus não nos revela Jesus. Deus não é a palavra de Jesus, ou seja, as nossas ideias acerca de Deus não podem fazer incidir qualquer luz sobre a vida de Jesus. Argumentar, partindo de Deus, para chegar a Jesus – em vez de argumentar partindo de Jesus, para chegar a Deus – é pôr o carro à frente dos bois. Foi isto, como é óbvio, o que muitos cristãos tentaram fazer, conduzindo-os geralmente a uma série de especulações sem sentido, que só servem para obscurecer a questão e que impedem Jesus de nos revelar Deus.’ (p. 226)

Tu és Jesus, o Cristo!...

domingo, novembro 14, 2021

O escorredor da loiça e a coragem de reverter leis injustas

 

Num destes dias, entre as tarefas domésticas partilhadas entre nós, membros da família, deparei-me com uma situação que me pareceu metafórica.

Lavava, apressadamente, a loiça do jantar, e fui, descuidadamente, colocando pratos e testos no escorredor da loiça. De forma desajeitada, fui dispondo os pratos sem grande preocupação em acertar com os frisos do escorredor. Ao fim de alguma acumulação caótica, o escorredor em que caberia a loiça de várias refeições ficou preenchido, restando-me poisar sobre os pratos desalinhados o que me ia chegando às mãos, sem grande segurança e com evidente desequilíbrio.

Presumindo o desfecho (de cacos) daquele desalinho, rendi-me ao evidente. Havia que identificar onde tinha começado a colocar os pratos fora do respetivo friso, retirar toda a loiça ali disposta a partir desse ponto e, finalmente, ganhar o espaço ordenado para poder colocar toda a loiça e, como pressuposto, ainda dispor do espaço sobrante que o meu caos, motivado pelo descuido e precipitação, tinha roubado.

A força simbólica deste evento doméstico não escapou à minha atenção.

Portugal vive, desde há algumas décadas, uma crise demográfica de desastrosas consequências já denunciadas por tantos. A machadada definitiva na cultura do respeito pela vida humana na sua fase intrauterina foi dada pela legalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em 2007, a qual veio somar a liberalização ao que já previa a legislação desde 1984 (que já despenalizara o aborto por violação, malformação e situação de conflito entre vida da mãe e do filho…). A liberalização resultante do referendo de 11 de fevereiro de 2007 veio favorecer a consolidação de uma mentalidade que vê o filho como um bem que se possui e de que se pode prescindir quando a sua existência aparece como obstáculo. O aborto emergiu, de forma definitiva, como um (quão contraditório!) ‘contracetivo pós-conceção’, o que se reflete nos números da sua prática que, desde 2007, já supera os 215 mil. Os números oficiais indicam, até 2018 (não conseguimos encontrar os relatórios oficiais de 2019 e 2020) que se realizaram, entre 2007 e 2018, 217699 abortos, dos quais mais de 96% são a pedido da mulher, até às 10 semanas, sendo os restantes cerca de 4% por motivo de malformação (não será esta uma forma de discriminação por motivo de deficiência?) ou por violação ou conflito entre a vida da mãe e do filho. Cerca de 30% são já abortos repetidos, isto é, abortos realizados por mulheres que já realizaram outros, anteriormente.

Acrescente-se que é sabido que, todos os anos, são inúmeras as complicações para a saúde da mulher resultantes desta prática legalizada, sendo que, em 2010, morreu uma mulher na sequência de complicações graves por motivo de aborto legal.

E tudo isto é estatística… A estatística regista números, mas não permite constatar toda a mudança de mentalidade operada. É fácil apurar como é escasso o fascínio por se ser pai ou mãe entre as gerações mais jovens que olham para esta condição tão decisiva da natureza humana como se se tratasse de um fardo ou de um elemento menor na realização pessoal e como mero fator de realização individualista, sem visão no todo da comunidade a que pertencemos.

Ora, se é notório o efeito tão demolidor na cultura comum de uma decisão (a de liberalizar a prática do aborto até às dez semanas) que nunca se avaliou devidamente, talvez seja hora de olhar para o caos que está sobre o ‘escorredor da loiça’ e descobrir que este se instaurou quando decidimos que um podia ter todos os direitos enquanto ao outro cabia esperar pela generosidade individual daquele, sem ver salvaguardado sequer o direito de existir…

E quer acrescentar-se, agora, um outro fator de caos ao já anteriormente induzido: com a eutanásia, com que se pretende defender um suposto direito, estará a abrir-se nova via de disposição caótica sobre o escorredor coletivo. Com a mesma dinâmica de partir de exceções estará a introduzir-se uma nova mentalidade que olhará para a vida como descartável e ainda mais disponível. E, como é sabido que nada disto será analisado, a mais este fator caótico outros sobrevirão. Até que a loiça se estatele toda no chão, quebrando-se e deixando marcas no próprio lastro em que se abatera.

A metáfora do escorredor de loiça tem, aqui, o seu limite. Sobre o escorredor repousava, apenas, loiça. Cerâmica vulgar, afinal! No ‘escorredor’ coletivo estamos diante de vidas. Talvez tão frágeis como a loiça, mas bem mais dignas e, por isso, suscetíveis de nos suscitar um pouco mais (?) de compaixão… Até quando continuará a suportar o escorredor tamanho caos?

sábado, outubro 16, 2021

Não lhes pesará na consciência?

 

Um filho é gerado de um pai e de uma mãe. Não é propriedade de ninguém!

Concluída, com a singamia, a conceção, está gerada uma realidade nova, singular, única e irrepetível. E, com honestidade, sendo uma realidade nascida de um pai e mãe humanos, será, necessariamente, uma nova entidade de natureza humana.

Nada disto é matéria discutível.

Um filho humano é participante da humanidade dos seus pais, pelo que, perante a sua existência, não há como contornar o dever que logo emerge de o proteger e cuidar. Assim antes, assim depois do seu nascimento. A realidade que é o filho não muda com o nascimento. Só juridicamente, porque tal matéria legislativa nasce de tradições pré-científicas, é que se continua a manter a resistência ao reconhecimento da entidade jurídica do filho ainda não nascido. A história haverá de fazer o seu caminho e, quando ideologias negacionistas da condição humana do ente humano ainda não nascido deixarem de exerce a influência que ainda hoje exercem, nessa altura reconhecer-se-á estar perante uma entidade merecedora de proteção.

A partir desse momento, tudo terá de ser pensado de modo diferente.

A mulher já não ficará só com o seu filho, mas o pai, corresponsável pela conceção deste filho, também será responsabilizado e não repudiado de um processo de que ele é parte integrante.

Antes, porém, de tal momento chegar, continuaremos a assistir à vigência de uma ordem onde negar o óbvio prevalece sobre o dever de reconhecer que se está perante um filho humano que carece de proteção, mais ainda quando depende, em exclusivo, de uma só pessoa para sobreviver. Em tal situação de dependência, maior deve ser a proteção do filho e da sua própria mãe perante todas as violências.

Antes, porém, de tal momento chegar, continuarão a aumentar os números dos que, anualmente, num país como o nosso, tão sedento de nascimentos de humanos, continuem a ser repudiados mais de 200 mil* de entre nós (como evidenciam os números registados nos relatórios da DGS à prática do aborto legal). Este número deveria fazer-nos parar… mais de 200 mil! Mais de 200 mil de entre nós não puderam nascer porque o legislador autorizou que, por motivo qualquer e nenhum, não nascessem!

E com pretextos que os mesmos relatórios demonstram serem falsos. Como podem justificar com o pretenso fim do aborto ilegal uma tal eliminação de humanos como nós, de humanos que somos nós, de humanos numa idade que um dia tivemos nós? Uma ilegalidade que não passou a ser virtuosa só porque passou a ter a cobertura da lei, sendo que estará para comprovar que tenha sido eliminada a referida ilegalidade…

Como podem pretender justificar com o suposto fim de complicações resultantes do aborto ilegal, tantas vezes afirmado como ocorrendo em vão de escada, quando os relatórios evidenciam as múltiplas complicações (perfurações de útero, sépsis, e mesmo, em 2010, a morte de uma mulher que abortara legalmente, etc.) que todos os anos se registam na sequência do aborto legal?

É que o problema não estava na ilegalidade, estava e está no próprio aborto em si que é um ato violento. Violento sobre um filho que é perdido e sobre uma mulher que deixa de ser mãe de forma abrupta…

E tudo isto a coberto da lei.

O poder de um legislador está, precisamente, pela via da lei, gerar justiça, gerar relações construtivas na sociedade, contribuir para a violência nas comunidades humanas…

Não pesará, por isso, na consciência dos legisladores nacionais (do nosso e de outros países) o clamor dos que nunca puderam ter voz? Os filhos enjeitados ao ponto de nem o reconhecimento de filhos poderem merecer?...

Entretanto, no nosso mundo onde se legaliza esta violência, muitos são os que se congregam e garantem colo aos que, contra a violência da lei, se determinam a deixar nascer e a acolher… Esses caminharão juntos pelas cidades deste país (em 23 de outubro, 10 cidades serão palco de caminhadas pela vida), sem gritos nem a força dos media do seu lado… porque é loquaz o silencioso gemido dos que não nasceram!

 

 

*Ver relatório de 2018 da DGS

https://www.dgs.pt/portal-da-estatistica-da-saude/diretorio-de-informacao/diretorio-de-informacao/por-serie-1144918-pdf.aspx?v=%3D%3DDwAAAB%2BLCAAAAAAABAArySzItzVUy81MsTU1MDAFAHzFEfkPAAAA

segunda-feira, agosto 09, 2021

A hora de Antígona

 

(Artigo publicado em Mundo Rural)

Continuemos o nosso ‘regresso a Ítaca no sonho do éden’….

Já em texto anterior refletimos sobre como a visão grega, tão carregada de tragicidade, precisa de ser condimentada (e superada) pela esperança cristã. De outro modo, sobrará o medo, o desespero, a desilusão. E é bom que tenhamos consciência de que, nas nossas sociedades ocidentais, mesmo sem essa consciência explícita, estas duas visões estão sempre em dinamismo de ‘encontro’ e ‘desencontro’. À esperança cristã, que nos propõe olharmos a vida como dom gratuito a respeitar e acolher, contrapõe-se, tantas vezes, a visão dominadora de que a vida é uma posse absoluta de que dispomos até nos cansarmos dela. Uma visão que rapidamente se torna decadente… Não a vemos já, diante dos nossos olhos?...

Condimentemos, então, a história que se segue, para que não tome conta de nós a visão trágica, mas não sem, antes, perceber a densidade de leitura que ela nos pode trazer.

Antígona…

Antígona é a protagonista (muitos discutem se o protagonismo deverá ser partilhado com o rei Creonte…) de uma muito célebre tragédia escrita por Sófocles, em período compreendido entre 442 e 440 a.C.[1]

Nesta obra, Sófocles retrata o ocorrido após a decisão do rei Creonte: impedir o sepultamento de Polinices. Antígona, irmã deste, opõe-se à ordem do rei e sepulta-o, sendo alvo da ira régia que ordena o seu emparedamento. Emparedada, Antígona lamenta a sua miséria, que, por força do destino (os gregos atribuíam a este um poder superior ao dos próprios deuses), se abateu sobre a sua família.

Recordemos a densidade trágica desta família, a dos Labdácidas.

O pai de Antígona, Édipo, matara o seu próprio pai, casara com a mãe, de quem tivera quatro filhos, cegando-se quando descobriu que cometera incesto e parricídio, mas já sem nada poder fazer para alterar o rumo da história. Como se não bastasse, dois dos seus filhos – Etéocles e Polinices – matam-se um ao outro no contexto do cerco à cidade de Tebas, liderado por este último. A este, o rei Creonte, que assume o poder da cidade, proíbe que seja concedida a honra de ser sepultado, o que contrariava a lei religiosa e moral que obrigava a esse enterramento, como condição para poder ter serenidade na vida depois da morte. É neste passo que entronca a narrativa de ‘Antígona’.

Mas a densidade trágica não acaba aqui.

Após Creonte ser instado pelo seu próprio filho, Hémon, noivo de Antígona, a alterar a sua ordem, persuadido pelo adivinho Tirésias e pelo Coro dos anciãos de Tebas, o rei muda, por fim, a sua decisão, mas não segue a ordem que lhe propusera o coro. Este dissera-lhe que, primeiro, comunicasse a Antígona a sua decisão e, por fim, enterrasse Polinices.

O rei Creonte, em mais uma decisão arbitrária, entende enterrar Polinices e, só depois, comunicar a Antígona que a libertou da pena que ela já cumpria. Quando chega, porém, a decisão à cela desta, ela jaz morta (pusera termo à sua vida), assim como o próprio filho do rei, Hémon, que se suicidara perante a sua amada. A tragédia não finda aqui e é, por fim, a própria rainha, mulher de Creonte, Eurídice, que põe termo à sua própria vida.

É difícil reunir mais tragédia numa só história…

Ou talvez não.

A história está a fazer-se de tragédias reais. Esta é uma tragédia lendária!

Vivemos a Hora de Antígona.

Também hoje emergem reis Creontes que nos pretendem impor, pela força do seu poder despótico, leis (nómoi, como lhes chamavam os gregos) que contrariam as normas de sempre, as normas que emergem da condição humana, da condição própria da nossa natureza.

Sobre eles caem as palavras duras do filho de Creonte, perante a pergunta deste[2]:

«Creonte – Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?

Hémon – Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta

E como com Antígona, o risco de emparedamento é real. O emparedamento da acusação irada, do silenciamento mediático, do preconceito de se ser extremista ou obtuso.

Mas como poderemos aceitar que se nos imponha como norma, como direito reconhecido como humano (as novas normas de Creonte), que matar um filho seja um bem quando jamais deixou de ser reconhecido como um mal? Recentemente, no parlamento europeu, Creonte lançou o seu manto trágico, sob a capa de um relatório designado com o nome do seu proponente, Matic. Ali, defendeu-se o reconhecimento do estatuto de direito humano (novo ‘nomos’) ao abortamento voluntário. Já não se trata de formular o pedido de que não se punisse (a coberto do qual se cometeram, só neste ano, até 20 de julho de 2021 - data da consulta ao site https://www.worldometers.info/, 23 milhões de abortos em todo o mundo), mas inverte-se a apreciação do ato, conferindo-lhe uma bondade inusitada e inacreditável.

Nem Creonte ousara ir tão longe.

E quão trágicos foram os tempos que se lhe seguiram!

Só um olhar de esperança sobre cada vítima do braço estendido de Creonte pode superar tamanha tragédia…

Quem ousa ouvir o grito de Antígona entre as paredes em que a emparedam sucessivamente?



[1] Remetemos essa discussão para Maria Helena da Rocha Pereira in SófoclesAntígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 20088, introdução.

[2] Seguimos tradução de Maria Helena da Rocha Pereira in Obra citada, vv. 738-739.

segunda-feira, julho 12, 2021

Não estamos no fim da História… nem no seu princípio!

 

As diversas épocas da história têm os seus mitos. E cultivam-nos, deles retirando dividendos.

Um dos nossos mais frequentes e badalados mitos é o de que estamos no final da história, isto é, o de que, finalmente, graças aos nossos méritos, foi concretizado o modelo de organização das sociedades que, de acordo com os seus preconizadores, resta difundir pelo mundo (a bem ou a mal, como está fácil de ver).

O grande defensor desta tese – que revisitava ideias que germinaram no pensamento de Hegel, sustentando que estamos no fim da história, mas, agora, com o modelo das democracias e economias liberais – foi Francis Fukuyama que pretendia dizer, em 1989, que o derrube dos regimes coletivistas deixava a descoberto que o respetivo modelo tinha caducado, nada mais restando do que o seu adversário vencedor.

O autor da teoria considera que não pretendeu dizer o que se lhe atribui, matéria que não é o conteúdo da nossa análise, agora, sendo certo, porém, que escritos posteriores vieram rever a leitura otimista que defendera em 1989. (Basta ler, com atenção, o seu mais recente ‘As origens da ordem política’ para se perceber como há uma matização do otimismo da visão liberal, reconhecendo a condição comunitária da pessoa humana.) Interessa-nos, porém, não tanto a discussão sobre o conteúdo da tese, mas sim o seu elemento formal: a convicção de se ter chegado a um modelo definitivo e perfeito que, a partir de então, há que difundir como o absoluto.

Nesta visão, o futuro é desnecessário. O que havia a percorrer está percorrido e o resto é repetição. Como se o Homem não fosse um ser imperfeito e a fazer-se (vale a pena relembrar a fecunda ideia de Gabriel Marcel de que somos ‘homo viator’, homem que caminha).

Muitos se insurgiram e continuam a insurgir contra a perspetiva de Fukuyama. E com razão.

Há, porém, que estar consciente de que a resposta alternativa não tem sido melhor.

Na verdade, a tese denunciada parecia negar o papel do futuro. Tudo estava já conseguido!

Substituiu-a uma nova visão. Aquela que, hoje, parece pulular nas nossas sociedades e na cultura vigente: ‘afinal, não só não atingimos o modelo perfeito com o que fomos forjando ao longo da história como, por oposição, o que é verdadeiro é o que está a vir e por vir. Nada do que fizemos era bom. Há que rejeitar o passado porque a história começou agora, começou connosco.’

Há, segundo esta tese, que abandonar o que percorremos, apagar a história, resultando disto que nada aprendemos com o que fizemos porque nada há a aprender, mas simplesmente a silenciar.

Tal visão constata-se de uma forma particularmente expressiva na designada ‘cancel culture’, que, porém, não tem o exclusivo de tal perspetiva.

Percebamos o que pretendemos denunciar, recorrendo a uma metáfora.

Imagine-se o tempo como dois elásticos em tensão, presos a um ponto estável que se desloca, equidistante. Esse ponto estável que se desloca, equidistante, é o presente. Ele ‘prende’ os dois elementos da tensão: o elástico do passado e o elástico do futuro.

Ora, o que ocorre quando se ‘corta’ um dos elásticos é que o ponto estável se instabiliza, puxado pela força tensional da parte que continuou presa. Fica, não só em risco a dimensão do elástico cortada, mas o próprio presente que parece sumir-se na vertigem da tensão que se absolutiza para uma das dimensões que garantiam a estabilidade da tensão.

Uma tal metáfora deixa uma interpelação.

Há que perceber o ser humano como intrinsecamente feito de memória e projeto, sendo impossível percebê-lo à luz de uma só das duas dimensões. Esquecer uma das duas dimensões é tornar impossível o reconhecimento da densidade do presente. Aliás, este reconhecimento é verificável na própria etimologia dos termos ‘passado’ (‘o que foi caminhado, o que se caminhou’) e ‘futuro’ (particípio futuro do verbo ser – ‘essere’ em latim – ‘as coisas que hão de ser’). Uma e outra etimologia expressam a ideia de uma continuidade que as duas visões aqui denunciadas omitem e cilindram: quem caminha dirige-se para algures (passado); as coisas que hão-de ser não nascem do nada mas estavam em potência no presente que é o passado do futuro (futuro).

Se tomarmos em conta o que aqui se refletiu, perceberemos que muito do que, hoje, é apresentado como novo mais não é do que revisitação de tantas coisas já vividas. Como temos referido em outros momentos, muitas das decisões defendidas como sinais de modernidade (a diluição dos conceitos de família, a prática do infanticídio, do aborto, da eutanásia, o abandono dos idosos, o regresso da pena de morte e tantas outras ‘novidades’) mais não são do que a recuperação do já ‘caminhado’. Retomado por quem acha que, agora, é que começa a história!

Grandes ilusões são fonte de não menores desilusões.

 (Artigo originalmente publicado no Mundo Rural)

terça-feira, junho 22, 2021

Creio num só Deus… que é Trindade!

 

Domingo após domingo, os cristãos professam ‘credo in unum Deum’.

Víamos, em anteriores reflexões, que a formulação ‘in unum Deum’ repercute a ideia de uma adesão que é mais do que assentimento intelectual, mas caminho em direção a Deus, orientação do coração para a realidade fundante de toda a existência.

Importa, agora, refletir sobre a natureza própria d’Aquele «unum Deum» a Quem adere o coração que se abre à fé.

Para tal, socorramo-nos do que nos vão dizendo os melhores de entre os melhores teólogos.

Tomemos por referência, para a nossa reflexão, duas ideias estruturantes.

 

Porque o homem é imagem de Deus, o que dizemos de Deus repercute-se no que entenderemos ser o Homem

A primeira recolhemo-la de Romano Guardini (1885-1968), um dos grandes teólogos do século XX, de ascendência e nascimento italianos, mas cujo percurso teológico desenvolveu na Alemanha, tendo sido, inclusive, perseguido e silenciado pelo regime nazi. Este teólogo escolhe, para título de uma das suas luminosas obras, a seguinte afirmação ‘quem sabe de Deus conhece o homem’. Tal decorre de uma noção estruturante (uma espécie de axioma teológico): o homem é ser criado à imagem de Deus, pelo que o que soubermos de Deus repercutir-se-á no entendimento sobre o próprio Homem.

 

Da presença de Deus na história chegamos à própria natureza de Deus

A esta primeira ideia associemos uma segunda, desta feita, recolhida de Karl Rahner (1904-1984), também teólogo do contexto alemão, que nos diz que chegamos ao conhecimento da natureza de Deus a partir do que o próprio Deus revela de si. De modo ‘técnico’, Rahner diz que se chega à ‘Trindade imanente’ (quem é Deus em si mesmo) a partir da ‘Trindade económica’ (quem é Deus para a humanidade, isto é, no seu processo de revelar-se – a palavra ‘economia’, no contexto teológico, tem este significado: ‘desenvolve-se no contexto histórico, nas circunstâncias próprias da história’).

 Dizendo de modo mais simples: sabemos de Deus aquilo que Deus revelou de Si mesmo, através de palavras e acontecimentos em que se manifestou a Sua própria ação e, por ela, podemos chegar ao que é o mesmo Deus.

Ora, conjugando estas duas ideias – a de que a revelação de Deus ocorre a partir do modo como Deus se mostra e a de que o que se disser de Deus se repercute no que se deverá pensar sobre o Homem – é possível constatar, desde já, que a conceção de Deus proposta pelo cristianismo é algo estruturante para toda a restante reflexão cristã e, com ela, para a compreensão sobre o Homem, o mundo, as suas relações e o seu próprio fim.

 

Mas perguntemo-nos, então, como se revela Deus, quem diz Deus que é.

Tenhamos consciência, desde já, de que a reflexão bíblica não é teoria, não é abstração; parte da experiência. Assim foi com a revelação de Deus como sendo Criador. O povo hebreu toma consciência da natureza criadora de Deus a partir da sua experiência de Deus que liberta. Aquele que liberta do mal histórico é, também, Aquele que liberta da inexistência, do nada de não existir.

Do mesmo modo, e num processo contínuo e coerente, o novo testamento é caminho que parte da experiência de Deus que se apresenta, simultaneamente, como fonte inacessível e palavra que se revela, origem e força que queima por dentro, presença verbalizada e ‘ausência’ que seduz e conduz. É na diversidade da revelação que o povo cristão desvenda o revelar-se de Deus que se define, no dizer de S. João (1 Jo 4,8), como amor. Repare-se que a expressão utilizada por S. João não é ‘Deus tem amor’. Em grego, ‘João afirma «o theós agápê estín | o qeos agaph estin » (Deus é amor).

Deus define-se, no entender de S. João (de acordo com a interpretação de Ricardo de S. Victor [ca. 1110-1173] que aqui seguimos), como relação, o que contraria a lógica que toda a história da filosofia teve (e continua a sustentar). Na verdade, na tabela das categorias de Aristóteles, a relação era considerada um acidente, isto é, não definia a essência de algo; era-lhe acrescentada.

 

Quem sabe da natureza trinitária de Deus sabe o que realiza a humanidade

A conceção trinitária de Deus introduz essa novidade que é extremamente fecunda e que, como temos vindo a defender em diversos contextos de reflexão, está na origem de uma das maiores dívidas da humanidade ao cristianismo: a ideia de que a relação define a própria condição humana, a condição de pessoa, conceito fundamental para se compreender quem é Deus e, por isso, também, quem é o Homem.

Na verdade, ao afirmar que «credo in unum Deum» que é «Pai todo-poderoso», que é «Unum dominum Iesum Christum» e «Spiritum Sanctum», rejeitando-se qualquer possibilidade de triteísmo, só restava ao cristianismo sustentar que a relação era definidora da própria natureza das coisas porque essa era a sua marca desde a sua criação, na medida em que a relação faz parte dAquele que é a sua fonte. A ideia de pessoa é isso que, no fundamental, afirma. Muito mais do que a individuação, a ideia de pessoa vinca a relação como condição de possibilidade do próprio existir. Existe-se em relação, na relação e da relação. É por isso que de Deus podemos afirmar que é três pessoas, mas não três ‘indivíduos’.

Como temos vindo a sustentar, com outra terminologia, poderemos afirmar que para haver relação impõem-se duas condições, simultaneamente presentes em Deus: a identidade e a alteridade. Só é possível relação se estas duas condições se verificarem.

Se não houver alteridade, não há relação por excesso de coincidência; se não houver identidade, não haverá relação por excesso de ‘distância’.

A Trindade não será, então, à luz deste conjunto de constatações, um mistério incompreensível e inacessível, mas sim, como defende a teologia contemporânea, uma realidade que ilumina as restantes realidades (assim deve entender-se o que seja ‘mistério’, na perspetiva cristã), torna-se uma realidade que, pela densidade do seu significado, podemos vislumbrar, mas sempre escapando-nos a toda a delimitação definitiva. Mistério diz de algo que é tão profundo na sua significação que tateamos a sua natureza mas muito continua a esquivar-se ao nosso domínio.

Diante destas noções, não poderemos senão concluir da natureza intrinsecamente relacional da condição humana que podemos conhecer ao sabermos quem é Deus.

E se Deus é amor, que outra coisa poderá realizar o que é ser Homem senão amar?

 

(Aos leitores interessados, deixamos a seguinte sugestão de leitura: Alexandre PalmaA Trindade é um mistério. Mas podemos falar disso. Prior Velho: Paulinas Editora, 2014.)

sexta-feira, junho 18, 2021

UMA VIAGEM PELA HISTÓRIA PARA REGRESSAR AO PONTO DE QUE PARTIMOS…

 (Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')

Prosseguimos a nossa viagem de ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’…

Como em fases anteriores da nossa viagem, cruzaremos a cultura clássica com a bíblica, procurando que, com o contributo recíproco, possamos iluminar o nosso caminhar contemporâneo.

A nossa etapa de hoje pretende perceber as características do paradigma que define as decisões e o modo de pensar deste tempo. Para tal, precisamos de olhar, em contraste, para a história. Para a história dos últimos séculos.

Socorro-me, para isso, do contributo de dois livros.

Revisito o livro ‘ideias e crenças do homem atual’, da autoria de Luís Gonzalez Carvajal (regresso a este livro muitas vezes… Foi um marco no meu modo de olhar para o mundo!) e aproprio-me de uma ideia que encontrei numa leitura recente: ‘O infinito num junco’, da autoria de Irene Vallejo Moreu, um livro extraordinário.

Mas encetemos, então, a nossa viagem de hoje.

A ideia de olhar para a história em ciclos, como se esta fosse o desembrulhar de um novelo em espiral, é já longínqua. Há autores que a pensaram em ciclos sucessivos de melhoria, em etapas tripartidas, sendo, de entre eles, o mais célebre, provavelmente, Joaquin de Fiore (1135-1202), que alguns consideram ter inspirado a versão secularizada de Auguste Comte (1798-1857).

Não me proponho fazer essa leitura, mas antes, olhar para a história e ver como, nas etapas seguintes, se exagerou um determinado aspeto da anterior ou, então, se exagerou um aspeto que se considerou estar omitido na precedente, como forma de compensar as insuficiências prévias. De qualquer modo, a leitura que irei propor ajudar-nos-á a olhar para os limites da atualidade, lançando o desafio de recuperarmos o que nas anteriores havia de mais interessante.

Partamos, então…

 

O paradigma da Idade Média: Abraão

Comecemos por assentar ideias no seguinte: para percebermos o nosso tempo, teremos de alongar o nosso olhar para o passado, indo, eventualmente, até à Idade Média.

Ao fazer esse esforço, perceberemos que a poderemos pensar como o tempo em que o centro da ação era a fé. Poderíamos tomar como paradigma dessa fase a figura de Abraão: nele concentra-se a atitude crente, de alguém que não teme decidir se tal se lhe afigura como desejo de Deus.

Sucede-se à Idade Média a Idade Moderna, cuja origem podemos fazer coincidir com o século XVI.

 

Sísifo e Prometeu: uma autonomia revoltada com a teonomia

É a era de um otimismo antropológico, da emergência da autonomia (se necessário, contra o próprio Deus), sustentada na convicção cada vez mais consolidada de um imparável progresso.

O paradigma desta fase é, como bem retrata Carvajal, configurado nas personagens da mitologia clássica Sísifo e Prometeu. Une ambas estas personagens a condição de se terem oposto aos deuses e, como castigo, terem sido amaldiçoados com uma condição de eterna repetição de um mal: no caso de Sísifo, terá de arrastar, sem nunca conseguir o seu objetivo, uma pedra pelo monte acima, sendo que, quando próximo do cimo, ela volta a rolar pelo monte abaixo; por seu turno, Prometeu verá as suas entranhas serem devoradas, repetidamente… Em ambos os casos, há a atitude de revolta contra o divino e a ideia de um castigo. (Como cristão, não reconheço nesta a visão genuína que quer propor-nos a fé em Jesus Cristo – o que salva é a graça e a misericórdia divina – mas este retrato repercute a visão que o Homem Moderno foi vincando em si mesmo de que ‘ou Deus, ou o Homem’, visão que, em Jesus Cristo é ultrapassada pelo ‘Deus com o Homem’…).

O tempo avançou e, com as duas grandes Guerras Mundiais, o Homem deparou-se com a constatação de que, afinal, o progresso humano poderia não ser infinito.

Gerou-se uma desilusão que levou à deceção (como refere Lipovetsky) e, com ela, à recusa das fases anteriores: a modernidade já tinha rejeitado a fé; restava, agora, com a pós-modernidade, rejeitar a própria ‘Razão’.

 

O homem pós-moderno: Narciso descobre o seu umbigo…

O homem pós-moderno, o que emergiu após as duas Guerras e, segundo o mesmo Lipovetsky, depois do Maio de 68, já não se baseia na força dos argumentos, na força da razão, pois está desiludido em relação a isso. O que lhe resta, então?

Os afetos, a emotividade. O homem pós-moderno é um hipersensível…

Narciso é, segundo Gonzalez Carvajal, o seu paradigma. Narciso é, na mitologia grega, uma personagem que se inebria com o seu reflexo nas águas calmas de um lago. Como se nada mais houvesse senão o próprio umbigo!

 

Esse alguém pós-contemporâneo a que deram outrora o nome de ‘Homem’: a síndrome de Heróstrato

Mas a história não parou e, se olharmos com detenção, perceberemos que Narciso foi, entretanto, superado. Hoje, já não nos basta a autocontemplação.

Hoje, precisamos de constatar quão belo acham os outros que é o rosto (o nosso) que vemos nas águas.

O homem (ou esse alguém a quem deram, em tempos, o nome de Homem… alguns pretendem que estejamos na era do pós-humanismo) pós-contemporâneo (utilizamos este paradoxo para retratar esta atitude alienada em que vivemos: somos mas não somos já deste tempo; não nos sentimos de tempo nenhum…) vive a síndrome de Heróstrato, figura que conheci ao ler o livro de Irene Vallejo, ‘O infinito num junco’. Heróstrato é uma personagem histórica que, em 21 de julho de 365 a.C., decide incendiar o templo de Artemisa com o mero objetivo de ficar conhecido. Quantos Heróstratos temos em nosso redor, nestes tempos pós-contemporâneos!

A história mostra-nos que o esquecimento das virtualidades das etapas anteriores gerou uma humanidade progressivamente mais vazia. Não somos só a fé; não somos só a razão; não somos só a emoção; não somos só a aparência. Só seremos se regressarmos à confiança em que caminhamos no sonho do Éden. Ítaca está no nosso horizonte terrestre, mas esse horizonte ainda não é o definitivo.

Sobreviverá Heróstrato a si mesmo? Uma visão cristã da história não poderá bastar-se em formular a pergunta, pois, no Cristo da cruz (em que o transcendente da trave vertical se une ao imanente da trave horizontal) fica estabelecido que a realização humana se faz na tensão que nunca poderá perder-se entre ser e ainda não ser, entre o ‘já’ de uma salvação de que se participa e o ‘ainda não’ de uma realização total. As etapas da história aqui retratadas perderam esta tensão e pretenderam sossegar o Homem e aquietá-lo. Urge recuperar essa tensão para que o Homem sobreviva, pois, como diz S. Ireneu, ‘a glória de Deus é o Homem vivo’.

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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