quinta-feira, novembro 30, 2023

É impreciso falar-se de ‘direitos dos animais’ | Melhor seria falar-se de ‘deveres assumidos pelos humanos para com aqueles’

 

Estamos num tempo em que, imprecisão após imprecisão, se vão consolidando ideologias que percebemos não serem corretas ou ajustadas, mas a que nós próprios nos vamos ajustando, para não divergirmos dos demais. Mas lá chega o momento em que a consciência nos acusa de não termos ousado dizer o que se impunha…

Há muito que a reflexão sobre a matéria que se adianta no título se me vem impondo, mas tenho-lhe resistido. A circunstância de ter lido o enunciado de um teste a que respondeu um dos meus filhos, no contexto escolar, onde estas matérias apareciam todas baralhadas, despertou-me para a necessidade de enfrentar o assunto.

Enfrentemo-lo, então…

Desenvolvo esta reflexão a partir de uma ideia que ouvi, pela primeira vez, ao eminente e sábio professor Walter Osswald.

Vamos, então, ao assunto…

O reconhecimento da condição de se ser portador de direitos é um exclusivo de sujeitos morais, capazes (ou potencialmente capazes…) da sua reivindicação.

Facilmente compreenderemos que a possibilidade da definição e reivindicação de direitos é, pelo que se acaba de dizer, exclusiva do ser humano, sujeito que, por reunir as condições para ser reconhecido como detentor de direitos é, também, igualmente, sujeito portador de deveres. Uns e outros, direitos e deveres, são as duas faces de uma mesma moeda.

O progresso no reconhecimento destes direitos é, dada a potencialidade também incluída na definição acima enunciada, extensível a todos os humanos, estejam eles ou não na efetiva e atual posse das capacidades plenas de reivindicação ou, por circunstâncias mais ou menos efémeras, impossibilitados de as exercer.

Ora, face a esta clara definição das condições necessárias (e não só suficientes) para o reconhecimento de que um sujeito é portador de direitos, facilmente se concluirá que, no caso dos animais (ou, mais extensamente, no caso da natureza), só impropriamente se lhes poderá aplicar a designação de ‘direitos’ para se referir a condições de proteção destes perante os restantes seres.

Primeiro, porque não se poderia imputar a outros sujeitos (que não aos humanos) o dever de respeitar os putativos direitos dos animais em caso de desrespeito (como reivindicar, por exemplo, à natureza que respeitasse os direitos dos animais exigindo-se-lhe determinados deveres?) e, em segundo lugar, porque os animais não são, eles próprios, sujeitos morais, capazes (ou sequer potencialmente capazes) de assunção de responsabilidade ou de reivindicação dos seus hipotéticos direitos.

Como, então, colocar a questão aqui suposta?

Naturalmente, o único modo preciso de abordar a questão é a partir dos sujeitos morais, já anterior e exclusivamente identificados com os sujeitos humanos.

A estes pode exigir-se-lhes responsabilidades, deveres que decorrerão, não do reconhecimento de direitos inerentes àqueles que vimos não serem sujeitos morais, mas de uma assunção de compromisso, da parte dos sujeitos morais (os humanos) de não causar dano ou mal indevido porque esse dano ou mal é gratuito e denunciador de uma atitude intrinsecamente violenta.

Percebamos que a abordagem que vem cavalgando a ideia de que existam ‘direitos dos animais’ ou ‘direitos da natureza’ tem pressupostos que ainda não denunciámos mas de que importa ter consciência.

 

Pode a ciência fundamentar a ética?

Para o fazermos, comecemos por recordar o que afirmava Albert Einstein, num conjunto de textos por si publicados entre 1939 e 1941, dedicados à discussão sobre a relação entre ciência e religião. (Seguimos, aqui, a edição da Relógio D’água, publicada em 2005).

Diz Albert Einstein: ‘[…] a ciência pode apenas indagar aquilo que é, mas não o que devia ser, e fora do seu domínio permanece toda a esfera dos juízos de valor, cuja necessidade ninguém discute.’ (p. 275)

Esta citação é muito relevante para a reflexão, pois vinca com clareza que não compete à ciência fundamentar o domínio ético, o domínio dos valores.

Está, porém, no pensamento dos defensores de que existam ‘direitos dos animais’, um pressuposto diretamente recolhido da ciência, sem qualquer filtro. Na verdade, os defensores desta ‘causa’ sustentam a sua reivindicação na ideia de que a evolução das espécies demonstraria que, entre os humanos e os demais animais, não haveria uma distinção fundamental, essencial, mas uma pura circunstância a superar. Como bem observa Johannes Hartl, no seu luminoso livro ‘A cultura do Éden’ (ediciones Rialp, 2023), todo o reducionismo consiste em definir os humanos como não sendo ‘mais do que…’.

Se é verdade que há muitos aspetos de semelhança entre os animais e os humanos, o que espanta, porém, é aquilo em que se distinguem e que os distancia abissalmente, como genialmente registou o grande Chesterton, na sua obra Ortodoxia (sigo a edição da Alêtheia, 2008, p. 205): ‘Aquilo que tem de ser explicado não é a semelhança, é a monstruosa escala da dissemelhança. Que o homem é parecido com os animais é, em certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão parecidos, eles sejam tão inconcebivelmente diferentes, isso é que é um choque e um enigma’.

É, aliás, nesse fundamento que assenta o reconhecimento da intrínseca dignidade humana, com todas as implicações que daí decorrem.

Com isto, esvaziamos um dos pressupostos ocultos na reivindicação da existência de supostos ‘direitos dos animais’: a sua base científica.

 

Oriente e ocidente: dois modos distintos de ver a realidade

Mas há um outro pressuposto igualmente implícito: o da fusão das identidades numa unidade cósmica indiferenciada.

Para enfrentar este pressuposto, recordo que esta visão nos chega do oriente. Cabe, por isso, consciencializar que, entre o ocidente e o oriente, há duas linhas que caminham em paralelo, mas que não se chegam a cruzar. Muito há em comum entre o oriente e o ocidente e muito há a receber, reciprocamente. Mas há um elemento que os distingue e que dificilmente poderá conciliar-se: o oriente jamais seria capaz de gerar o conceito de pessoa, nascido no ocidente, da convicção de que o mundo se realiza no encontro das diversidades. O oriente supõe que o universo nasce e caminho para o uno, numa fusão absoluta. O ocidente pressupõe que tudo nasce da diversidade (Deus é trino) e caminha para o encontro definitivo nas identidades diversas…

Estes dois pressupostos antagónicos refletem-se nesta questão dos supostos ‘direitos dos animais’. A distinção é ocidental; a fusão é oriental.

Os reivindicadores dos putativos ‘direitos dos animais’ pressupõem que, entre os humanos e os animais, tudo se fundirá, pelo que a indistinção é reivindicada como condição de existência. O ocidente, gerador da ideia de pessoa, da individualidade relacional, pressupõe, sempre, a distinção.

Distinção que se expressa, também, na distinta condição dos humanos perante o resto da criação, pela qual são responsáveis e a qual estão incumbidos de cuidar, mas sabendo que, entre eles e o resto da criação, há uma condição hierarquicamente distinta. Só esta condição hierarquicamente distinta os pode, também, responsabilizar, pois se tudo é indistinto, ninguém é responsável por nada.

Parece ser essa a intenção dos que reivindicam as indistintas condições humana e animal: concluir-se que ao homem nada mais possa e deva pedir-se do que o que se poderia pedir ao ‘inimputável’ animal. Inquieta-me que alguns vão preparando o terreno (ainda só teórico e num horizonte que parece distante, mas, até quando?...) para que, um dia, aos próprios animais se aplique o (outro conceito impreciso) estatuto de ‘pessoas’…

É por isso que é preciso afirmar que a verdadeira responsabilidade (deve e) nasce do reconhecimento do único sujeito moral, o humano, o único capaz de ser autêntico portador de direitos, mas também o exclusivo detentor de deveres, cabendo concluir-se que, ao falar das matérias aqui abordadas, é impreciso e incorreto falar de ‘direitos dos animais’ ou ‘direitos da natureza’, devendo-se, antes, afirmar-se estar perante deveres assumidos pelos humanos em relação à natureza e aos animais.

 

quarta-feira, novembro 15, 2023

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Do amaldiçoado Édipo ao Bendito Filho do Altíssimo

  Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ tem-nos levado a percorrer os caminhos que aproximam e distanciam a cultura clássica, profundamente trágica, e a cultura surgida do cristianismo, redentora da tragicidade com que a vida se afigura. O trágico é omnipresente e o ‘ar que se respira’, na cultura grega; o trágico é o ponto de partida mas não o de chegada, na cultura emergente do acontecimento ‘Cristo’.

Numa e noutra, a consciência da dualidade da vida existe, mas, numa, a visão trágica grega, ela converte-se num dualismo, de que Platão e os seus seguidores são o máximo expoente, que deseja o abandono do corpo e da matéria a que atribui a origem do mal; na outra, essa consciência faz-se de um olhar atento que vê o mal habitar o coração do homem, como expressão de um englobante livre arbítrio, mas que o redime para o superar, nada abandonando, mas tudo assumindo para o transcender.

Um dos âmbitos em que essa tragicidade é particularmente notória é a que concerne às relações familiares.

A tragicidade com que os gregos veem a vida repercute-se nas relações mais radicais da condição humana. Veja-se quão central é, entre os mitos gregos, a história de Édipo e tudo o que a envolve. Difícil será imaginar maior tragédia, toda ela verificada no âmbito das relações familiares

 

O mito de Édipo

Recordemos os traços mais largos deste denso mito, com a consciência da sua importância para a cultura grega… Seguimos o que nos conta Pierre Grimal, no seu ‘Dicionário da mitologia grega e romana’ (edição da Antígona Editores, 2020)

Édipo é filho de Laio, rei de Tebas, descendente de uma família que reinou na cidade ao longo de gerações.

Há discussão sobre o momento em que é anunciada a maldição que impenderá sobre esta criança, mas seguindo a versão adotada por Sófocles, ao nascer, um oráculo anuncia que esta criança matará o pai e casará com a mãe. Para evitar que o oráculo se concretizasse, Laio ‘expôs o filho’ (p. 127), isto é, segundo uma das versões, foram-lhe atados os pés (donde vem o nome dele – Édipo quer dizer ‘pés inchados’) e atirado ao mar, e, segundo outra, foi deixado ao abandono num monte. De qualquer modo, sublinhe-se este ‘desprezo’ pelo filho, neste caso, por causa de um destino. Hoje esta crença no destino (vejam-se os pretextos para o aborto alegando-se que se vai ser pobre ou infeliz ou… ou… A lógica é semelhante. O destino está traçado e nada parece haver a fazer… A visão cristã contrasta, radicalmente, com esta perspetiva…) continua entre muitos, expressando a presença dessa visão trágica de que temos vindo a falar.

Mas retomemos a história de Édipo.

Édipo é, então, exposto. Deixado ao abandono, contraria as expectativas do rei e sobrevive, tendo, segundo algumas versões, vivido na corte de Políbio, soberano de Corinto (ou de outras localidades). O tempo passa e vem a dar-se o trágico encontro fortuito entre Édipo, que pensa, toda a vida, ser filho de Políbio, e o rei de Tebas, Laio (seu pai verdadeiro). Desse encontro (também ele diverso nas várias versões conhecidas do mito) resulta a morte de Laio e a ida de Édipo para Tebas, onde se apaixona por Jocasta, a esposa de Laio (e, está fácil de ver, mãe desconhecida dele) ou, noutras versões, casa com a mesma em virtude de ter conseguido livrar Tebas da esfinge que devorava, diariamente, um tebano, até que conseguissem decifrar o enigma em que ela perguntava ‘qual o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro, e que, contrariamente ao normal, é mais fraco quando usa o maior números de pés’. Descobrindo que era ‘o homem’, Édipo destrói a esfinge e é-lhe dada a possibilidade de casar com a rainha viúva.

A tragédia prossegue e, em período de uma peste, é-lhe dado a conhecer que o responsável por ela é o assassino do rei Laio. Édipo lança uma ‘caça ao homem’, até que descobre ser ele mesmo o dito assassino.

Édipo cega-se e Jocasta suicida-se.

 

Leitura do mito em contraste com a visão cristã da vida

É difícil imaginar maior tragédia, sendo que a visão grega não consegue vislumbrar saída. Nem os deuses gregos parecem escapar à força do destino, o que deixa num beco sem saída uma cultura que adote esta visão.

A densidade deste mito agudiza-se se tivermos em conta que ele exprime algo das próprias vivências gregas. Valerá a pena recordar, repercutindo o que nos conta Miguel Morgado no seu luminoso livro ‘Guerra, império e democracia’ (Publicações Dom Quixote, 2023), como eram tratadas as crianças, no contexto da cidade-estado de Esparta, cidade grega rival da de Atenas. Diz Miguel Morgado: ‘A educação era pública e, a partir dos sete anos, as crianças eram retiradas aos pais, ricos e pobres, para serem sujeitas à mais feroz preparação militar. Eram entregues a um «bando» - agélé – de meninos da mesma idade. Aprendiam a sobreviver sozinhos, com pouca comida – e daí terem de roubar, apesar do risco de castigos corporais terríveis se apanhados em fragrante delito – e completamente expostos ao frio e ao calor. […] Os espartanos praticavam sistematicamente o infanticídio. Não como controlo do crescimento da população, mas como técnica eugénica. Não podiam sobreviver em Esparta os recém-nascidos com deformações ou debilidades físicas.’ (pp.226-227)

Repercutir estas constatações expõe o alcance do ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’. Na verdade, pressentimos, nestas palavras algo do que vamos notando na cultura contemporânea que, a pretexto de ‘progressos’, afinal, retoma práticas que o cristianismo superara.

A visão pessimista sobre a criança, presumindo a ‘indignidade’ da criança débil e frágil, contrasta com a visão cristã que, olhando a densidade da realidade humana, a debilidade e vulnerabilidade dos recém-nascidos, reconhece, até no infante frágil depositado na manjedoura, (o mesmo que, volvida uma semana, será reconhecido como sinal de contradição), a presença do divino entre os homens. Na visão cristã, o trágico redime-se com a transparência do eterno no efémero. Aquela criança, aumentando-se o contraste com a visão trágica, é, não apenas sinal, mas o próprio Deus, na pessoa do Filho, superando a força negativa que a tragédia colocava nos filhos.

O caminho que nos leva de Ítaca (aqui tomado como símbolo da cultura grega) até ao futuro sonhado no Éden mostra-nos, em contraste, as duas matrizes que a nossa cultura continua a fazer conviver, nem sempre consciente do alcance de uma e outra. Regressámos, com Ulisses, enquanto Penélope tecia e desfazia o tecido, fiel e resistente, esperando pelo marido, que ela cria vivo e a caminho de casa. Muito da cultura grega nos chega, positivamente, mas a visão trágica precisa da redenção, para que Penélope não tenha tecido, em vão, a esperança do retorno sempre desejado. O Éden não é um mito do passado: é o futuro nascido das mãos de um Deus que cria bom, mas cuja criação, existente no efémero, sente a sedução da decadência. O sonho do Éden vitaliza o bem e supera o mal, não como dois princípios em conflito, mas como a total concretização diante da insuficiente realização.

Hoje, como sempre, ao longo destes dois mil anos, as duas matrizes convivem, mas as implicações de uma e outra são distantes nos seus resultados. Muitos sentem a sedução da tragédia, mas o beco sem saída deveria acordar do torpor. Acordará Ulisses a tempo? Ou não lhe restará senão cegar-se, como Édipo, e deitar termo à vida, como Jocasta.

No cristianismo, ‘espada que trespassará o coração da mãe’ não é a última palavra, mas o passo anterior à redenção. Que espada escolhemos? A trágica de Jocasta ou a redentora da Mãe com o Filho no regaço?

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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