quarta-feira, novembro 15, 2023

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | Do amaldiçoado Édipo ao Bendito Filho do Altíssimo

  Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ tem-nos levado a percorrer os caminhos que aproximam e distanciam a cultura clássica, profundamente trágica, e a cultura surgida do cristianismo, redentora da tragicidade com que a vida se afigura. O trágico é omnipresente e o ‘ar que se respira’, na cultura grega; o trágico é o ponto de partida mas não o de chegada, na cultura emergente do acontecimento ‘Cristo’.

Numa e noutra, a consciência da dualidade da vida existe, mas, numa, a visão trágica grega, ela converte-se num dualismo, de que Platão e os seus seguidores são o máximo expoente, que deseja o abandono do corpo e da matéria a que atribui a origem do mal; na outra, essa consciência faz-se de um olhar atento que vê o mal habitar o coração do homem, como expressão de um englobante livre arbítrio, mas que o redime para o superar, nada abandonando, mas tudo assumindo para o transcender.

Um dos âmbitos em que essa tragicidade é particularmente notória é a que concerne às relações familiares.

A tragicidade com que os gregos veem a vida repercute-se nas relações mais radicais da condição humana. Veja-se quão central é, entre os mitos gregos, a história de Édipo e tudo o que a envolve. Difícil será imaginar maior tragédia, toda ela verificada no âmbito das relações familiares

 

O mito de Édipo

Recordemos os traços mais largos deste denso mito, com a consciência da sua importância para a cultura grega… Seguimos o que nos conta Pierre Grimal, no seu ‘Dicionário da mitologia grega e romana’ (edição da Antígona Editores, 2020)

Édipo é filho de Laio, rei de Tebas, descendente de uma família que reinou na cidade ao longo de gerações.

Há discussão sobre o momento em que é anunciada a maldição que impenderá sobre esta criança, mas seguindo a versão adotada por Sófocles, ao nascer, um oráculo anuncia que esta criança matará o pai e casará com a mãe. Para evitar que o oráculo se concretizasse, Laio ‘expôs o filho’ (p. 127), isto é, segundo uma das versões, foram-lhe atados os pés (donde vem o nome dele – Édipo quer dizer ‘pés inchados’) e atirado ao mar, e, segundo outra, foi deixado ao abandono num monte. De qualquer modo, sublinhe-se este ‘desprezo’ pelo filho, neste caso, por causa de um destino. Hoje esta crença no destino (vejam-se os pretextos para o aborto alegando-se que se vai ser pobre ou infeliz ou… ou… A lógica é semelhante. O destino está traçado e nada parece haver a fazer… A visão cristã contrasta, radicalmente, com esta perspetiva…) continua entre muitos, expressando a presença dessa visão trágica de que temos vindo a falar.

Mas retomemos a história de Édipo.

Édipo é, então, exposto. Deixado ao abandono, contraria as expectativas do rei e sobrevive, tendo, segundo algumas versões, vivido na corte de Políbio, soberano de Corinto (ou de outras localidades). O tempo passa e vem a dar-se o trágico encontro fortuito entre Édipo, que pensa, toda a vida, ser filho de Políbio, e o rei de Tebas, Laio (seu pai verdadeiro). Desse encontro (também ele diverso nas várias versões conhecidas do mito) resulta a morte de Laio e a ida de Édipo para Tebas, onde se apaixona por Jocasta, a esposa de Laio (e, está fácil de ver, mãe desconhecida dele) ou, noutras versões, casa com a mesma em virtude de ter conseguido livrar Tebas da esfinge que devorava, diariamente, um tebano, até que conseguissem decifrar o enigma em que ela perguntava ‘qual o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro, e que, contrariamente ao normal, é mais fraco quando usa o maior números de pés’. Descobrindo que era ‘o homem’, Édipo destrói a esfinge e é-lhe dada a possibilidade de casar com a rainha viúva.

A tragédia prossegue e, em período de uma peste, é-lhe dado a conhecer que o responsável por ela é o assassino do rei Laio. Édipo lança uma ‘caça ao homem’, até que descobre ser ele mesmo o dito assassino.

Édipo cega-se e Jocasta suicida-se.

 

Leitura do mito em contraste com a visão cristã da vida

É difícil imaginar maior tragédia, sendo que a visão grega não consegue vislumbrar saída. Nem os deuses gregos parecem escapar à força do destino, o que deixa num beco sem saída uma cultura que adote esta visão.

A densidade deste mito agudiza-se se tivermos em conta que ele exprime algo das próprias vivências gregas. Valerá a pena recordar, repercutindo o que nos conta Miguel Morgado no seu luminoso livro ‘Guerra, império e democracia’ (Publicações Dom Quixote, 2023), como eram tratadas as crianças, no contexto da cidade-estado de Esparta, cidade grega rival da de Atenas. Diz Miguel Morgado: ‘A educação era pública e, a partir dos sete anos, as crianças eram retiradas aos pais, ricos e pobres, para serem sujeitas à mais feroz preparação militar. Eram entregues a um «bando» - agélé – de meninos da mesma idade. Aprendiam a sobreviver sozinhos, com pouca comida – e daí terem de roubar, apesar do risco de castigos corporais terríveis se apanhados em fragrante delito – e completamente expostos ao frio e ao calor. […] Os espartanos praticavam sistematicamente o infanticídio. Não como controlo do crescimento da população, mas como técnica eugénica. Não podiam sobreviver em Esparta os recém-nascidos com deformações ou debilidades físicas.’ (pp.226-227)

Repercutir estas constatações expõe o alcance do ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’. Na verdade, pressentimos, nestas palavras algo do que vamos notando na cultura contemporânea que, a pretexto de ‘progressos’, afinal, retoma práticas que o cristianismo superara.

A visão pessimista sobre a criança, presumindo a ‘indignidade’ da criança débil e frágil, contrasta com a visão cristã que, olhando a densidade da realidade humana, a debilidade e vulnerabilidade dos recém-nascidos, reconhece, até no infante frágil depositado na manjedoura, (o mesmo que, volvida uma semana, será reconhecido como sinal de contradição), a presença do divino entre os homens. Na visão cristã, o trágico redime-se com a transparência do eterno no efémero. Aquela criança, aumentando-se o contraste com a visão trágica, é, não apenas sinal, mas o próprio Deus, na pessoa do Filho, superando a força negativa que a tragédia colocava nos filhos.

O caminho que nos leva de Ítaca (aqui tomado como símbolo da cultura grega) até ao futuro sonhado no Éden mostra-nos, em contraste, as duas matrizes que a nossa cultura continua a fazer conviver, nem sempre consciente do alcance de uma e outra. Regressámos, com Ulisses, enquanto Penélope tecia e desfazia o tecido, fiel e resistente, esperando pelo marido, que ela cria vivo e a caminho de casa. Muito da cultura grega nos chega, positivamente, mas a visão trágica precisa da redenção, para que Penélope não tenha tecido, em vão, a esperança do retorno sempre desejado. O Éden não é um mito do passado: é o futuro nascido das mãos de um Deus que cria bom, mas cuja criação, existente no efémero, sente a sedução da decadência. O sonho do Éden vitaliza o bem e supera o mal, não como dois princípios em conflito, mas como a total concretização diante da insuficiente realização.

Hoje, como sempre, ao longo destes dois mil anos, as duas matrizes convivem, mas as implicações de uma e outra são distantes nos seus resultados. Muitos sentem a sedução da tragédia, mas o beco sem saída deveria acordar do torpor. Acordará Ulisses a tempo? Ou não lhe restará senão cegar-se, como Édipo, e deitar termo à vida, como Jocasta.

No cristianismo, ‘espada que trespassará o coração da mãe’ não é a última palavra, mas o passo anterior à redenção. Que espada escolhemos? A trágica de Jocasta ou a redentora da Mãe com o Filho no regaço?

Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

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