segunda-feira, dezembro 27, 2021

Livro: recensão de Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes

 

Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

 O fim de um mito

(Ou ‘como ter nas mãos um meio eficaz de repor justiça’)

 

Fake news!

Andamos preocupados – quase obcecados com a matéria. De tal modo que nos levam a crer (fake new!) que as fake news são de hoje.

Este livro não é – nem por sombras! – sobre ‘fake news’. Mas propõe-se enfrentar uma das mais consolidadas ‘fake news’ dos últimos três séculos.

Isso mesmo!

Cerca de trezentos anos!

Trata-se de uma ‘fake new’ que serviu interesses e que alimenta, ainda hoje, muitos preconceitos.

Partamos à sua descoberta.

A sua denúncia formula-se no próprio título do livro: ‘A Idade Média: a verdadeira idade das luzes’ (Talvez se pudesse ter optado por ‘a verdadeira idade da luz’, tendo em conta o que o autor refere, na página 162, a pretexto dos estudos medievais sobre a luz de que resultaram a criação dos óculos, mas admite-se a opção da tradutora por ‘a verdadeira idade das luzes’, aludindo ao título autoatribuído pelos iluministas…).

E que denúncia se vislumbra ali?

A de que a Idade Média foi tudo menos uma idade de trevas.

Mas essa ‘fake’ (a de que a Idade Média era idade de trevas) fez caminho – muito caminho! – e continua, hoje, bem consolidada. (Dado o curto-circuito entre ‘Idade Média’ e ‘Igreja’, quando, numa discussão, se quer silenciar a força argumentativa de um cristão, logo se evoca a ‘tenebrosa’ condição da Idade Média. E tudo fica arrumado! Nada melhor do que um bom preconceito para acabar com uma discussão!)

Quem não se lembra da teoria de que a Idade Média acreditava que a terra era plana?

Sim, quem não se lembra? Disso davam eco (ainda hoje?) os livros de História.

E a lembrança é tão forte que até nos custa a crer que não fosse assim.

Mas não o era, de facto.

A Idade Média não acreditava que a terra fosse plana.

Entre nós, portugueses, já os professores Henrique Leitão, Jorge Buescu e outros denunciaram essa fake new, com muita erudição e detalhe.

Seb Falk demonstra-o, neste livro, de forma muito detalhada.

Para tal, recorda, entre outras coisas, que um dos tratados mais estudados, durante a Idade Média, era o ‘tratado da esfera’ que teve em João Sacrobosco (1230) um dos seus maiores proponentes. A esfera era, bem certo, o orbe celeste, mas, também, a Terra.

Porém, apesar deste facto, a História e a história da História, após a revolução francesa e durante o século XIX, veiculou a ideia de que os medievais (até lhe chamou ‘Idade Média’, para estabelecer uma ponte vazia entre os antigos e os modernos!) eram obscurantistas e defendiam (imagine-se!) que a Terra era plana.

Entre nós (Seb Falk não conta este detalhe), chegou-se ao ponto de consolidar a teoria (a fake new) de que a Idade Média acreditava numa terra plana com a tese de que Cristóvão Colombo não obtivera o apoio da corte portuguesa porque entre esta se continuava a acreditar que a terra era plana.

 

Como consolidar um preconceito

A verdade é outra!

Como conta Jorge Buescu, num artigo com o título ‘a terra nunca foi plana’ (no livro ‘da falsificação de euros aos pequenos mundos’), a coroa portuguesa não apoiou a empresa de chegar à India pelo ocidente, porque sabia que a distância era tão grande que seria um investimento no vazio, pois Colombo nunca chegaria lá. A sorte deste foi ter-lhe aparecido a América, no caminho!

Ora, esta e outras teses são demolidas neste livro de Seb Falk.

Um livro extraordinário!

Extraordinário pelo rigor do autor, pela erudição em linguagem simples com que aborda cada temática e porque é profundamente respeitador do leitor. Veja-se, a título ilustrativo, a qualidade das notas (que, para um leitor habitual, deviam ser de rodapé, mas as edições atuais optam por colocá-las no final, o que dificulta a leitura em vaivém… Deixo o repto!). Seb Falk não faz citação de citação: vai às fontes!

E faz um ensaio de história da ciência como quem escreve um romance policial.

Tudo começa com a investigação sobre o verdadeiro autor de um tratado, a partir de uma investigação feita por Derek Price, na década de 50, que se interrogava sobre o efetivo escritor de uma obra que nos dava instruções detalhadas para a construção de um derivado do astrolábio que permitiria identificar, com precisão, a localização dos planetas. (Tenha-se em conta que tudo era baseado, exclusivamente, na investigação matemática em articulação com as deduções artonómicas, pois ainda se tinha de esperar pela invenção do telescópio… Mas a lucidez e o rigor matemático denunciam um verdadeiro espírito científico de quem parte à demanda da verdade).

Tudo começa aí e vai-se desfiando até nos levar ao quotidiano da vida medieval, onde descobrimos o fascínio da descoberta e a frescura da liberdade intelectual, tantas vezes hoje pretendida e amarfanhada. Ilustra esta liberdade a história de uma greve ocorrida no século XIII, na universidade de Paris, em que os mestres reivindicavam liberdade perante o poder político. A sua reivindicação saiu vencedora. (Sim, não podemos esquecer que as universidades – Bolonha, Salamanca, Oxford, Montpellier, Paris, Coimbra, Lisboa, etc. – nasceram na Idade Média! E que já então a ‘circulação’ dos intelectuais entre universidades era uma prática habitual!).

Pela mão de Seb Falk, compreendemos que os nomes maiores da ciência moderna não nasceram do nada (Mas a forma como é feita a história da ciência deixa, muitas vezes, o travo amargo de uma conceção emergentista dos grandes nomes: como se aparecessem sem ‘gigantes aos ombros dos quais se encavalitam’. Sim, também esta frase, cuja autoria é tantas vezes atribuída a Isaac Newton, é da responsabilidade do medieval Bernard de Chartres!). Percebemos as raízes medievais do pensamento astronómico (devedor à influência cristã e muçulmana que recebeu nos estudos universitários que fez em Cracóvia, Bolonha, Pádua e Ferrara) de Copérnico, que responde, com o heliocentrismo, a interrogações de sempre colocadas pela teoria defendida (e muito discutida) por Ptolomeu, no seu Almagesto, mas mais proximamente formuladas por Peuerbach e Regiomontanus, ou as origens do próprio pensamento de Leibniz no admirado Richard Swineshead (século XIV), autor do Livro dos cálculos, que lhe valeu a alcunha de ‘calculador’.

Falk aborda, ainda (e muito escapa a esta resumida recensão de leitor entusiasmado – exigente tarefa se impõe ao próximo autor que tomarei em mãos, após esta tão fecunda leitura!), a questão do impacto do heliocentrismo nas mentalidades. Curiosamente, também as fakes são abundantes no que respeita a esta matéria. Bem nos recordamos todos de ouvir dizer que o heliocentrismo demolira a visão arrogante que o geocentrismo vincava. Seb Falk recorda, porém, que ‘os pensadores medievais imaginavam muitas vezes a Terra ao fundo, e não no centro, do vasto Universo; e estar tão longe quanto possível da perfeição dos céus não era propriamente uma posição desejável. É por isso que, na obra de Galileu Diálogo sobre os dois principais sistemas do Mundo, Ptolemaico e Coperniciano, o astrónomo florentino pós o seu porta-voz, Salviati, a afirmar que «estamos a tentar tornar [a Terra] mais nobre e mais perfeita […] e de certa forma a colocá-la nos céus, de onde os vossos filósofos a baniram».’

Mas a fake new respetiva defende que os medievais é que eram arrogantes! (Na era dos emojis, deixo ao leitor imaginar qual escolheria!...)

 

Idade Média: idade luminosa com sombras… Como as demais épocas!

Chegados aqui, impõe-se uma pergunta: mas a idade média era só luminosidade e esta beleza de que aqui falamos?

(Obviamente que o autor não esconde os aspetos menos luminosos desta época. Isso é, aliás, frequentemente recordado, por exemplo, quando apresenta o paralelismo entre o desenvolvimento astronómico e a influência dos reptos da astrologia.)

Duas notas nos merece esta constatação da presenças de aspetos opacos na idade média: que todas as épocas tiveram (e terão) as suas opacidades – veja-se como, em pleno século XXI, continuam a proliferar, e com forte influência, as mentalidades que negam, por exemplo, que na gravidez humana esteja em desenvolvimento vida humana! Ou que defendem que existam raças desigualmente humanas, etc… (na luminosa época da ciência, continuam a verificar-se obscuridades deste teor…) – e, por outro lado, que as zonas de sombra pressupõem a luz. Não poderemos fixar-nos nas sombras, omitindo a origem luminosa perante a qual emerge zona sombria. Em relação à Idade Média, a opção tem sido amplificar a sombra, omitindo a força da luz. Seb Falk desafia a que se olhe a Idade Média pelo seu lado luminoso: ‘a verdadeira idade da Luz’!

Não pense, porém, o leitor, que o livro se desenrola ao longo de mais de 400 páginas com a repetição de ‘veja, na Idade Média não eram como pensa’. O livro é, como acima descrito, uma espécie de ‘romance policial’ baseado em factos e dados de investigação. E até é humilhante constatar quanto desconhecíamos. E quanto podemos descobrir quando, honestamente, deixamos que a história de cada época fale por si, sem que lhe imponhamos os nossos preconceitos. Factos, factos e mais factos! Nomes e descobertas e linhas de discussão. Num desenrolar de novelo que nos fascina, da primeira à última página. E, quando já terminámos a leitura, o autor formula um conjunto de sugestões que nos fazem partir à aventura de sermos nós mesmos a ver como funcionava o ‘equatorium’ (Ah, eis o nome do instrumento alternativo ao astrolábio, proposto por John Westwyk – anónimo na nossa recensão como permanecera anónimo durante quase 500 anos…) ou como pensou Richard de Wallingford (que ilustra a capa do livro) o primeiro relógio mecânico ou, ainda, a procurar saber um pouco sobre os nomes dos desconhecidos tradutores das grandes obras clássicas, originalmente escritas em grego ou árabe, vertidas pela sua mão para latim. Seb Falk resgata do silêncio da história nomes de tradutores como o de Gerardo de Cremona ou de Alfred Shareshill… (Ilustres desconhecidos mas de quem todos falam quando dizem que Aristóteles e Avicena foram recebidos nas universidades da Idade Média!)

O próprio autor assume que não quer maçar os leitores com a sucessão de nomes de insignes figuras medievais. Enuncia alguns dos preteridos numa lista final que inclui sugestões muitos úteis de outros livros e sites onde poderão encontrar-se estas e outras informações relevantes. O livro deixa, no leitor que acaba de fazer a viagem que nos é proposta, a sensação de que nada será como dantes… Bem certo que demolir um preconceito não é tarefa fácil. Mas a argumentação, que é pura descrição factual, não deixa margem para dúvidas. Em nome da verdade, há que reconhecer que a Idade que os modernos quiseram chamar ‘média’ foi rica de pensamento e descobertas científicas. Este é, por isso, um livro de justiça… Um livro que coloca nas suas mãos um meio de repor a verdade onde as fake news têm abundado.

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