quinta-feira, março 07, 2024

Sabes, leitor... | 3 | Marca de água do livro de Viktor Frankl, 'A voz que grita por um sentido'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
O autor e a obra
Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido: como redescobrir a dimensão humanista da psicoterapia, Alfragide, Lua de papel, 2021.

Sou um admirador de Viktor Frankl (1905-1997 – neurologista nascido na Áustria) desde os meus tempos de faculdade, altura em que um amigo missionário de Barcelona, Francisco Xavier, me falou do seu pensamento e das suas intuições fundamentais. Estávamos em 1992. Durante 7 anos, procurei, em vão, uma tradução de algum dos seus livros até que, em 1999, encontrei, na livraria Victor Jara, em Salamanca, o seu ‘o homem em busca de sentido’.

(Uns amigos enviaram-me de Curitiba, pouco tempo depois, outra edição da mesma obra, desta feita, brasileira… É assim a vida de quem se deleita com a leitura: ‘contamina’ quem o envolve…).

Ler Viktor Frankl alterou o meu modo de compreender porque adoecíamos, mentalmente, interiormente. A sua intuição fundamental, que apresentarei nas ‘marcas de água’, começou a assomar-lhe ao pensamento ainda na década de 30, em que as taxas de suicídio cresciam entre os jovens universitários vienenses. O que fora uma intuição, nessa década, vem a confirmar-se, na década seguinte, quando a guerra e a perseguição nazi o levaram a passar por quatro campos de concentração, como ele mesmo refere neste livro que, agora, nos faz estar na mesma página, caríssimo leitor.

Viktor Frankl é autor de outros livros como ‘O homem em busca de sentido’, ‘Um sentido para a vida’, ‘Dizer sim à vida, apesar de tudo’ e é considerado o criador da terceira escola psicologia de Viena, após a psicanálise de Freud e a psicologia individual de Adler.

Marcas de água (o que fica, depois de se deixar o livro)

A intuição fundamental de Viktor Frankl parte da constatação de que as abordagens psicoterapêuticas conhecidas até então enfermavam de reducionismo que pressupõe que o ser humano ‘não é mais do que’, confinando-o à sua dimensão biológica. Frankl propõe-se superar este erro dos reducionismos e pressupõe que o ser humano é, fundamentalmente, um ser em busca de sentido, criando, por isso, a logoterapia que, como ele mesmo define, consiste na ‘terapia através do sentido’ (p. 17). Uma das observações que ele fizera, nos campos de concentração em que estivera preso, é que as pessoas que sobreviviam não eram necessariamente mais fortes, em termos físicos, mas sim em termos do sentido das suas existências. Ter um sentido conferia-lhes maior capacidade de resistência física.

Soma-se a esta intuição fundamental uma visão antropológica que não exclui nenhuma dimensão do ser humano, numa articulação sistémica que o faz enfrentar todas as grandes questões do ser humano a que se associam perturbações e distúrbios: do alimentar ao sexual, do laboral ao familiar, etc.

Frankl faculta-nos, ainda, neste livro, para além de dados para perceber a utilidade da logoterapia, ferramentas para compreender a insuficiência de algumas psicoterapias que se bastam em identificar a etiologia dos problemas de ordem psicológica mas sem conseguirem tratar o círculo vicioso de que se alimentam as doenças desse foro.

Neste livro, o autor descreve algumas das técnicas desenvolvidas pela logoterapia, recolhendo testemunhos de pessoas tratadas com recurso a elas, detalhando, entre outras, a técnica da intenção paradoxal que propõe ao paciente enfrentar aquilo que outras técnicas propunham evitar a todo o custo. Frankl, não só descreve os efeitos esperados com esta técnica, mas também como é que ela mesma atua, ficando evidenciada fundamentação teórica de uma prática que a leitura atenta põe ao dispor do próprio leitor.

Como refere, citando um terapeuta de nome Agras, ‘a intenção paradoxal expõe efetivamente o paciente à situação que ele receia, para tentar provocar as consequências temidas do seu comportamento, em vez de evitar as situações. Assim, uma mulher com agorafobia e que tem medo de desmaiar se passear sozinha é orientada para fazer isso deliberadamente e desmaiar. Quando descobre que não é capaz, isso permite-lhe enfrentar a sua condição fóbica.’ (p. 129)

Os casos de recuperação com recurso a esta técnica são inúmeros e descritos, com detalhe e humor, ao longo do livro que apresenta ideias de enorme atualidade, seja no que concerne à leitura da pessoa, na sua individualidade, seja no que respeita à vida em sociedade. Destaquemos, a este propósito, a referência ao facto de que a felicidade deve ser uma consequência e não um objetivo (p. 78), constatação particularmente oportuna, nestes tempos tão obsessivamente concentrados na ideia da busca da felicidade como meta, esquecendo que, como ele mesmo refere, a sobrevivência depende de um ‘para quê’ e um ‘para quem’ que, esses sim, geram a autêntica felicidade (p. 35). Em matéria de análise de sociedade, sublinhemos a sua afirmação de que existe uma tríade da neurose de massas: a depressão, a agressão e a dependência (p. 25) que ele considera sintomas do ‘vácuo existencial’.

Na mesma página que o autor (citações)

‘[…] pilares principais em que assenta o sistema da logoterapia: a vontade de sentido, o sentido da vida e a liberdade da vontade.’ (p. 11)

‘[…] o reducionismo é o exato oposto do humanismo. O reducionismo, diria eu, é sub-humanismo. […] o homem revelasse como um ser em busca de um sentido – uma busca que, feita em vão, explica muitos dos males da nossa era.’ (p. 15)

‘Uma tradução literal do termo “logoterapia” é “terapia através do sentido”, do logos. Claro que também podia ser traduzida por “cura através do sentido” embora isto introduzisse uma sugestão religiosa que não está necessariamente presente na logoterapia. Em qualquer dos casos, a logoterapia é uma (psico)terapia centrada no sentido.’ (p. 17)

‘A sensação de falta de sentido, o vácuo existencial, aumenta e alastra a um ponto tal que pode, na verdade, ser designado como uma neurose de massas.’ (p. 23)

‘[…] foi estabelecida , para além de qualquer dúvida razoável, uma relação significativa entre o consumo de drogas e um propósito na vida.’ (p. 25)

‘[…] a busca de um sentido é uma características exclusiva do ser humano.’ (p. 28)

‘O argumento de que não se deve pensar no homem de uma forma demasiado elevada parte do princípio de que é perigoso sobrevalorizá-lo. Mas é muito mais perigoso subvalorizá-lo, como observou Goethe. O ser humano, em especial a geração mais jovem, pode ser corrompido se for subvalorizado. Pelo contrário, se reconhecermos as aspirações mais elevadas do homem – com a sua vontade de sentido – então também seremos capazes de as incentivar e mobilizar.’ (p. 30)

‘Claro que um logoterapeuta não consegue dizer a um doente o que é o sentido, mas pelo menos pode mostrar-lhe que há um sentido na vida, que está ao alcance de todos e que, mais do que isso, a vida guarda o seu sentido sob todas as circunstâncias. Mantém-se literalmente plena de sentido até ao derradeiro momento, até ao último suspiro.’ (p. 41)

‘A liberdade humana é uma liberdade finita. O homem não está livre de condições. Mas é livre para assumir uma atitude perante elas. As condições não o determinam por completo. Dentro de certos limites, depende dele sucumbir ou render-se às condições.’ (p. 48)

‘É a coisificação que abre a porta à manipulação. E vice-versa. Para manipular seres humanos e preciso em primeiro lugar coisificá-los e, para isso, doutriná-los segundo as linhas do pandeterminismo.’ (p. 54)

‘O niilismo de ontem ensinava o “nada”. O reducionismo de hoje prega o “não é mais do que”. (p. 57)

‘A liberdade pode degenerar em mera arbitrariedade, a menos que seja vivida com responsabilidade. É por isso que eu recomendaria que a Estátua da Liberdade na Costa Leste fosse complementada por uma Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste.’ (p. 62)

‘O homem não deixará de odiar enquanto lhe for ensinado que são os impulsos e os mecanismos que o fazem odiar. É ele que odeia!’ (p. 74)

‘No clima impessoal da sociedade industrial, cada vez mais pessoas sofrem obviamente com um sentimento de solidão – a solidão da “multidão solitária”.’ (p. 75)

‘A sexualidade humana é sempre mais do que simples sexo, e é mais do que sexo na medida em que serve como expressão física de qualquer coisa metassexual: é a expressão física do amor. Só na medida em que o sexo cumpra esta função será uma experiência verdadeiramente recompensadora.’ (p. 83)

‘Os jovens […] não devem deixar-se contaminar pelo desprezo universal com o qual uma sociedade orientada para a juventude considera os velhos. De outro modo, se tiverem a sorte de envelhecerem, verão como o seu desprezo pelos velhos se transforma em desprezo por si mesmos.’ (p. 110)

Responder à vida significa sermos responsáveis pelas nossas vidas.’ (p. 116)

‘O medo […] tende a provocar precisamente aquilo que é receado e, por isso, a ansiedade antecipatória pode desencadear, e provavelmente fá-lo-á, aquilo que o paciente tanto teme. Assim se estabelece um círculo vicioso que se autoalimenta: o sintoma evoca a fobia; a fobia provoca o sintoma; e a recorrência do sintoma reforça a fobia.’ (p. 121)

‘Como é possível quebrar um mecanismo de retorno deste género? […] Bem, é precisamente isto que se propõe a intenção paradoxal, que pode ser definida como um processo pelo qual o doente é encorajado a fazer, ou a desejar que aconteça, exatamente aquilo de que tem medo (o primeiro caso aplica-se ao doente fóbico, o segundo ao obsessivo-compulsivo). Assim, o doente fóbico deixa de fugir dos seus medos e o obsessivo-compulsivo deixa de lutar com as suas obsessões e compulsões. De qualquer modo, o medo patogénico é substituído por um desejo paradoxal. Quebra-se assim o círculo vicioso de ansiedade antecipatória.’ (p. 123)


**Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

 

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