Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)
Alberto Ferreyra*
O calor de agosto convida a robustas sombras. O branco calcário da praça reflete, com vigor, o sol tórrido daquele verão.
A nascente, o edifício dos paços do concelho é encimado por uma sineta que, hora a hora, com três ligeiros toques, recorda, aos que passam, que o tempo passa como eles. Não é lugar de ilusões.
Não se pode parar sobre o branco do lajedo. As tílias que ladeiam a zona central não são, ainda, de copa suficientemente larga para acalmar o calor que queima. É preciso acelerar o passo e procurar sombras que sosseguem o vigor do estio.
No lado poente, uma pequena capela de Santo António, fresca, acolhe os que se querem abrigados sob a proteção das águas eternas. Reza-se por um menor rigor no tempo, esperando a condescendência do eterno.
No centro da praça, o vazio. Só o branco da pedra calcária e a languidez das formas, desvirtuadas pela ebulição de um ínfero calor…
Nos esparsos bancos de jardim, no lado norte da praça, descansam, sobre as suas bengalas retorcidas, os esquecidos do tempo e de tempo. Aguardam… Já não sabem por que hora. Mas aguardam, alquebrados.
J. e M. vieram visitar os avós e gostam, sempre, de uma rápida visita à praça. Fala-lhes de tempos em que também eles ali viveram, numa das moradas que hoje já só alguns recordam terem sido habitadas. Tudo é loja ou ausência…
Sob as tílias mais robustas, pingando calor, deitam um olhar em redor. Pela zona central da praça, o seu olhar é veloz. A brancura refletida da luz não se compadece com demoras.
Detêm o seu olhar, porém, numa porta invulgar.
Como que incrustada entre portas que abrem para lojas, modernas e luminosas, uma porta de madeira, antiga, parece ter ali sido forçadamente pregada.
Tosca, rematando uma parede de tijolo mal pintada, tudo nela é singular. Só o número – trinta e seis – garante a continuidade com o tempo. O resto é invulgaridade.
J. e. M. ousam sentar-se à soleira daquela porta. Afagam umas poucas ervas nascidas sem terra e desviam a conversa para o tempo que passa.
Divertem-se a comentar o que observam.
(Sabem que o pai não acha piada que passem o tempo a comentar as vidas de outros, mas, na sua ausência, atualizam a conversa… Talvez tomados por um rebate de consciência, desviam os comentários para o significado daquele número.
- Trinta e seis. Hum. Não é a idade que o pai tinha quando nasceste? – gracejou J.
- E a data em que Jesus poderá ter morrido. Os cálculos feitos, no século VI, pelo monge Dionísio o exíguo, têm um pequeno erro de alguns anos: três ou quatro ou cinco ou, até, seis… Jesus, que terá morrido com trinta e três anos, morreu no ano de trinta e seis ou trinta e sete ou trinta e oito ou, até, trinta e nove.
- Já estás nas tuas derivas, M.)
Estão nisto, quando, sem se aperceberem, se acerca deles um homem de caminhar trôpego, pernas arqueadas e olhar estrábico.
Assustam-se com a sua presença.
Num primeiro momento, tartamudeiam um mal-amanhado ‘boa tarde’, não percebendo, de imediato, se conseguirão manter uma conversa límpida com aquele estranho homem.
Parece-lhes desconexo o que ele diz.
Após um ‘têm um pãozinho?’, e um apontar com o braço para a praça, seguido de um ‘explodir de braços’, J. e M. olham um para o outro sem saberem o que esperar dali.
Subitamente, aquele deambular louco dá lugar à surpresa de um regresso ao tempo.
Aquele homem aparentemente desnorteado dá lugar a um ‘Sabem? Pensam que sou louco!’
Adotando uma postura de corpo hirta e robusta, retomando o olhar centrado, pediu para se sentar no meio deles.
Atónitos, esboçaram um mecânico movimento de afastamento que permitiu que os três partilhassem aquele improvisado banco de jardim.
- Chamo-me ‘António’. É assim que me chamam por aqui. Na verdade, sou ‘Lázaro’. Como todos os lázaros de todos os tempos e todos os lugares… Sou aquele a quem ‘Deus dá ajuda’. E, por mim, a outros.
M. queria estar encostada a J. para poder dar-lhe uma cotovelada. Via-o perdido, surpreendido, de olhar suspenso.
Não era para menos. Aquele homem mudara de figura sem que tivessem conseguido compreender o que se passara diante dos seus olhos.
Enquanto os pensamentos se enrolavam nas cabeças baralhadas de J. e M., aquele homem prosseguia.
- Todos os meus foram infelizes. Doenças, mortes precoces, separações, abandonos. Tudo o que podeis imaginar aconteceu aos meus.
Um dia, vim aqui. Sentei-me neste lugar.
Nesta casa, viveu uma família que deu teto a muitos. Das mãos do chefe desta família saíram as paredes da morada de muitos. Mas uma família muito sofrida. Numa noite de verão, em pleno agosto, ouviram-se uns gritos de desespero. Os que aqui passavam ouviram um: ‘porque não a mim?’ Nada mais se ouviu, desde então.
Ficaram estas paredes para o testemunhar.
Despertando do seu espanto sonolento, M. atirou:
- Não entendi nada. Ficaram estas paredes?
- Só o tempo veio a explicar o que aqui aconteceu. Vendo os seus sofrerem desalmadamente, aquele pai desejou, para si, o sofrimento por que via passarem os seus. Foi-lhe concedido esse dom. A dor sofrida pelos seus foi aliviada, assumida por aquele compassivo pai. E, para o lembrar, as paredes exteriores desta casa escondem o segredo que jamais será revelado. Ninguém pode jamais voltar a entrar nela. Se alguém o fizer, tudo regressará ao que era.
E encostou a mão à porta.
M. era só olhos… No centro do seu olhar, interrogações. Só interrogações.
- Mas esta casa está assim. Velha, como que prestes a cair. O que tem isso a ver com o que nos está a contar?
- O exterior, esta porta, esconde o segredo que o seu interior reserva. No centro da casa, transfigurada, formou-se um profundo lago, feito das lágrimas e sofrimentos dos seus mais amados. Dizem que a profundidade do lago se deve a que nele estarão todas as dores do mundo... Ao centro, uma só planta: uma victoria cruziana. Floresce, nos meses de verão, apenas uma vez ao ano, de noite. Atrai, com o seu odor, os males dos que, amados, sofrem dores que outros querem sofrer por si. A sua dimensão compreende, em cada ano, a grandeza da compaixão. No primeiro dia, a sua cor é branca, luminosa. E fecha, de novo, ao alvorecer para, ao fim do mesmo dia, voltar a florescer, já com tons de rosa. – As dores do mundo são densas… Os que aqui se sentarem, em cada ano, e desejarem assumir sobre si as dores dos seus, talvez vejam, nesse singular florescer, reparados todos os sofrimentos de que desejam libertá-los.
Ainda a última palavra se soltava dos seus lábios, o homem ergue-se de um salto e começou a andar, de novo com aquele andar trôpego com que se acercara deles.
Mas M. teve tempo de perguntar:
- ‘Como sabe isso?’
O homem estacou…
- ‘Nas máscaras da vida há muitas personagens.’ – E, retomando o passo, dirigiu-se para a praça, de andar desajeitado, olhar estrábico e conversa enrodilhada.
Do interior, através das frinchas secas da madeira da porta trinta e seis, J. e M. sentiram exalar um doce odor de nenúfar…
Avizinhava-se o anoitecer. Era um mês de verão!