Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)
Alberto Ferreyra*
É verão.
As ramadas que cobrem o caminho da Costa criam densas sombras que aliviam, levemente, o peso do calor que torna trôpegos os passos. J. e M. descem, entre conversas, o caminho que os levará ao Souto e à fonte por que anseiam, extenuados, após uma caminhada pelos carreiros da aldeia dos avós.
É a aldeia dos sonhos a que voltam, em cada verão, desejosos dos mistérios que aquelas vielas desvendam.
Param junto a um tanque onde uns girinos sobem e descem em danças irregulares. Distraídos, conversam sobre os nadas da vida…
M. dá uma cotovelada em J.
Avistara um vulto, um pouco adiante, na curva que antecede a ligeira descida para a fonte de cujas águas são proverbiais a frescura e leveza.
Sentado, debruçado sobre o cajado de sempre, com um cântaro de barro a seu lado, um homem, de rosto enrugado, parece de olhar perdido no infinito.
Não os viu. Repousando sobre um pequeno muro que limita a terra do Souto, mastiga, compassadamente, uma erva já meio seca.
Olha para a fonte.
Meneia, a espaços, a cabeça, fechando os olhos.
Volta a abri-los, como que desperto por uma ideia que o atordoa.
Está nisto longos minutos.
M. e J. apreciam, à distância.
O cântaro está vazio, mas não seco. Tivera água, entretanto despejada.
Após longos e demorados minutos, ergueu-se e afastou-se do lugar onde o viam M. e J.
J. ainda fez um gesto de quem pretendia chamar por ele, mas M. conteve-o.
Viram aquele desconhecido desaparecer, entre as sombras lançadas pelas ramadas, em direção à estrada que ladeia o largo vale.
Acordados daquele momento de torpor, M. e J. correram em direção ao assento onde descansara.
Esquecera-se do cântaro.
Ao pegar nele, M. viu que um resto de água se conservara no fundo.
Todo o exterior do cântaro estava humedecido, ao contrário do seu interior que parecia ressequido, mantendo humidade apenas onde se conservava aquele restinho de água.
M. estranhou aquele efeito.
- Já reparaste, J.? O cântaro está todo ele molhado, por fora, mas seco, no interior.
A curiosidade de M. não mais a deixou abandonar aquela observação. Fixou o olhar no fundo do recipiente. As águas, escassas, mas suficientes para criarem um efeito especular, num primeiro momento, refletiam o rosto que as via. Mas, ao manter o olhar atento, outras imagens ali se sucediam.
M. ficou intrigada.
Chamou J. que continuava a procurar ver por onde aquele homem incógnito se encaminhara. Também ele estava atónito. Parecia ter-se perdido entre os campos. Não conseguia vislumbrá-lo entre as ramagens e os verdes. Mas, também, aquele calor não convidava a grandes pensamentos! Talvez apenas a lentidão dos seus passos não acompanhasse a rapidez do olhar…
Encolheu os ombros, como que convencido com a sua conclusão.
M. acordou, entretanto, destes devaneios.
- Vê! Vê! Consegues encontrar o teu reflexo?
J. descortinara, num primeiro momento, os seus traços, que foram sendo substituídos, lentamente, por outras imagens.
- Vejo… Vejo-me. Sim, vejo-me. Mas, estranhamente, nem sempre com a mesma idade.
- Também me dei conta disso, J.. Vemo-nos, num primeiro momento, com o rosto que agora temos, mas, ao fim de uns segundos, as águas começam a refletir-nos com outra idade.
- Mas nem sempre reconheço as cenas que aqui aparecem…
- Intrigante. Muito intrigante, mesmo.
Sem perceber o que estavam a ver, desceram o que os separava da fonte da Costa e refrescaram-se.
O silêncio tomara conta das suas vozes.
Adivinhavam o reboliço que assaltara a mente do outro.
O jantar fizera-se num silêncio que deixara atónitos os pais. Não o percebiam, mas suspeitavam de noite de sobressalto.
A noite confirmou as dúvidas do jantar.
M. e J. não puseram olho. Mal a aurora se anunciou, levantaram-se e regressaram à fonte, pela fresquinha.
Levaram, consigo, o cântaro. A água, entretanto, secara e, com ela, as bordas de todo o cântaro.
Mas a inquietação que assomara aos seus espíritos não os deixava sossegados.
Pousaram o cântaro na direção do fio de água, distraindo o seu olhar com o cenário que os envolvia. Quando lhes parecera que a quantidade seria suficiente, pegaram no cântaro que, para sua surpresa, mantinha uma pequena reserva de água, no fundo, com as características que tinham visto, na véspera: o exterior, humedecido, e o interior, seco.
Voltaram a olhar.
As imagens que refletia repetiram o que já tinham visto. Num primeiro momento, os reflexos atuais; num segundo momento, os seus rostos, mas já sem a idade que agora tinham.
M. pensava…
Subitamente, abriu os olhos com um vigor que J. logo reconheceu.
- J., J., vê bem o que está a acontecer aqui.
- Estamos os dois, no dia em que a mãe nos perguntou se queríamos acompanhá-la a casa do Tio Pedro.
- E lembras-te do que aconteceu?
- Não fomos e, nesse dia, quando estávamos em casa, tentaram a arrombá-la. Como nos apercebemos, ligámos à polícia que prendeu os assaltantes.
- Isso mesmo. Agora, olha com atenção o que mostram as águas deste cântaro.
- Vejo-te a entrar no carro.
- Sim. E que mais?
- Eu também…
- Pois… E depois?
- A casa é assaltada sem que ali estejamos…
- Percebeste?
- Ainda não!
- Este cântaro, com a água desta fonte, permite-nos ver o que aconteceria se outra tivesse sido a nossa opção.
- Isso deixa-me perturbado. – Reconheceu J. – Não somos feitos de ‘ses’. Somos feitos de decisões e são elas que constroem a nossa vida e história.
- J., concordo contigo. Não podemos deixar que este cântaro abra uma fenda na história e nos leve ao território da incondição.
- ‘Incondição’! Tens cada uma, M.. Essa é digna de uma filósofa.
A admiração de J. foi interrompida pelo súbito e penetrante som do cântaro a desfazer-se em cacos contra as pedras salpicadas pela água da fonte. J. olhou, fixamente, M., que mantinha, na mão, o que restava de uma asa de barro, humedecida de água.