Artigo publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/luis-manuel-p-silva-temos-um-problema-com-a-liberdade/
Na discussão sobre a liberdade cruzam-se os maiores problemas da condição humana. Ela é, de facto, um elemento de charneira, um gonzo definidor da condição antropológica, o eixo em torno do qual giram os demais assuntos humanos.
É, por isso, importante que a definamos com precisão para que, pela sua condição fontal, dela não derivem ‘nados-mortos’ ou degenerescências que não pretendíamos.
Eis uma primeira constatação…
Mas somemos, a esta primeira constatação, uma segunda: não parecem restar dúvidas de que o modo como geramos os conceitos se repercute no modo como vivemos. É uma ideia que venho vincando, repetidamente e que aqui retomo, agora.
O modo como viveremos a liberdade será deveras condicionado pelo modo como a concebermos.
Mas poderá continuar a não ser claro o alcance deste axioma.
‘Não pensamos todos o mesmo sobre o que é liberdade? Não é a liberdade a condição de quem é livre?’
Parece óbvio, mas é-o tanto como uma petição de princípio. ‘Ser livre é a condição de quem participa da liberdade como a liberdade é a condição de quem é livre.’
E não saímos daqui.
A análise tem de ser mais fina.
A conceção de liberdade parece fazê-la derivar da ideia de aleatoriedade.
Nesta abordagem, a liberdade é a condição de um ser imprevisível.
Parece ser suficiente.
Rapidamente, porém, esbarrará com uma insuficiência: uma pedra que rola pela montanha é de rumo imprevisível mas não se ousaria designá-la como livre.
A aleatoriedade continua, por isso, a não ser suficiente.
Um olhar ainda mais fino constatará que a sua (da liberdade) atribuição deverá sê-lo, apenas, do ser humano e, apenas por analogia, aplicada a outros seres, mas com a consciência dos limites da opção.
Esta observação mais fina já nos auxilia na busca do que deveremos considerar como sendo ‘liberdade’. Será uma condição de que, em rigor, na história, só os humanos participam.
Aos animais e demais seres animados ou, ainda menos, aos seres não vivos, só por comparação poderá dizer-se ‘serem livres’.
Mas sabemos algo faltar para que a atribuição seja precisa.
Concentrados nos humanos, caberá, então, perceber de que falamos ao referir-nos à liberdade.
A etimologia poderá ajudar-nos.
É curioso que a palavra latina ‘liber’, com que se refere ‘homem livre’, sirva, simultaneamente, para ‘livro’, mas também para ideia de ‘homem honrado’, ‘homem nobre’. E, não menos interessante, a palavra ‘liberi’ refere-se a ‘filhos’. De qualquer modo, a palavra remete para ‘libra’, uma balança de dois braços.
O cruzamento destes dados etimológicos permite-nos constatar que a aleatoriedade não era, de modo algum, o elemento definidor da ideia de liberdade, para os latinos.
Também para os gregos, a ‘liberdade’, dita com a palavra ‘eleuthería’ remetia para a ideia de nobreza, generosidade.
O termo, numa e noutra culturas, remetia para a ideia de uma capacidade de se elevar, de se projetar para além de si mesmo (ideia que faço decorrer de ‘liberi’, ‘filhos’ – aqueles que nos repercutem no futuro…). A liberdade remetia, bem certo, para a ideia de independência, mas uma independência por se ser capaz de ‘equilibrar’ a ‘libra’, a balança. O homem nobre, o homem generoso é aquele que sabe, por si mesmo, equilibrar a balança, buscar determinar-se pela lei e não, simplesmente, ser o criador aleatório da mesma lei.
Aqui está o busílis da questão.
Uma certa modernidade (não toda a modernidade; defendo, aliás, que preservemos a modernidade evitando aquela que estou a denunciar e salvaguardando a autêntica modernidade…) confundiu ‘liberdade’ com ‘aleatoriedade’. E fez a pedra rolar, monte abaixo…
Essa confusão nasceu de uma deslocação do conceito de liberdade do âmbito em que ele sempre estivera – ser livre é deixar-se iluminar pela luz da verdade (vinda da razão e da fé; em grego, ‘verdade’ pode dizer-se com o termo ‘alêtheia’. Designo, por isso, esta conceção como ‘aletheísta’, sustentada na importância da iluminação da verdade.) – para um outro em que o que grassa é a aleatoriedade – a vontade. De facto, a vontade é indeterminada e indeterminável. A vontade tudo quer, tudo pensa poder e tudo pretende poder. Quem a deve iluminar e orientar é a luz da verdade.
Mas a tal linha moderna recusou essa ‘submissão’ da vontade.
E, ao recusá-lo, fê-lo com um outro custo. É que, enquanto a luz da verdade une os humanos que a buscam, comummente, criando um conceito de liberdade ‘comunitarista’ (somos livres enquanto seres intrinsecamente relacionais), a aleatoriedade da vontade é intrinsecamente individualista e solipsista – só o sujeito sabe, a cada momento, o que quer a sua vontade.
Esta última linha conceptual fechou os sujeitos, isolou-os. E, por consequência, fez dos outros ‘um inferno’, um estorvo que cabe limitar. Os sujeitos humanos, nesta conceção de liberdade, limitam-se uns aos outros, fazendo desta uma condição que acaba onde começa a condição livre do outro.
Por contraposição, a visão comunitarista presume que as liberdades não se anulam nem estorvam, mas, antes, projetam-se e realizam-se nos entrecruzar de umas com as outras.
Os sinais estão aí…
A eleuterologia de tipo voluntarista está a fechar-nos numa solidão em que apenas somos casualmente contemporâneos uns dos outros. Ninguém sabe quem é o outro e só o conhece se ele lhe permitir a entrada. Haveremos de chegar a não nos reconhecermos se tal não nos permitir cada ‘outro’.
A eleuterologia de tipo ‘aletheísta’ reconhece-nos intrinsecamente relacionais, geneticamente abertos aos outros e em condição inerentemente ‘indigente’ – nada somos sem o outro.
De que futuro falam as nossas escolhas de hoje?
Que humano resistirá à escolha que estamos a fazer de entre estas duas matrizes?
Levar-nos-á, monte abaixo, a pedra que fizeram rolar?