Artigo publicado no Correio do Vouga
Luís Manuel Pereira da Silva*
Fomos convocados. Não para um jogo na seleção, mas para celebrar. Francisco convocou-nos e Leão XIV renovou o convite para um ano jubilar, na já sete vezes centenária tradição católica dos jubileus (o primeiro foi convocado por Bonifácio VIII, em 1300) e enraizada na ainda mais profunda tradição bíblica de celebrar os jubileus do perdão, ao som do ‘jobel’, um chifre de carneiro que entoava, pelas serranias, que era hora de perdoar, libertar da servidão e dar descanso aos campos (cfr. Lv 25, 1-28).
‘Peregrinos da esperança’ é a tradução portuguesa do lema latino deste ano jubilar, ‘peregrinantes in spem’. É denso o seu significado original, que se perde na tradução lusitana. O original diz-nos que somos ‘peregrinos na esperança’, bem certo, mas também diz que somos peregrino ‘para a esperança’ (o ‘in spem’ latino, registado numa preposição ‘in’ seguida de ‘acusativo’, tem implícita a ideia de um ‘movimento em direção a…’). A esperança é, não só, uma realidade do presente, que nos habita, aqui e agora, mas é, também, o horizonte para onde vamos.
O cristão sabe que a esperança tem um rosto e um nome: Jesus Cristo. É Ele e a certeza que, com ele, nos vem, de que a morte foi vencida, de que o dia venceu a noite, de que as sombras foram iluminadas pela luz, a autêntica fonte da esperança.
A esperança é, aliás, distinta da utopia que nasce do sujeito humano, como sinal de um desejo profundo, mas que pode não ter consistência real. Assim não é com a esperança. Ela habita o desejo, mas é-lhe transcendente, vem de fora, vem do amanhã para o hoje e assoma à janela do nosso existir como luz de um sol que está bem alto. Não somos os autores da esperança; somos os seus ‘contadores’, os seus narradores, porque com ela construímos a narrativa que podemos ler e dar a ler.
Desta esperança se fez o jubileu do mundo educativo, em que me foi dada a honra e o privilégio de participar, entre os dias 30 de outubro de 2 de novembro, integrado num grupo de 45 peregrinos de todas as dioceses do país, sob o título de ‘constelação SNEC’ (Constelação dos educadores do secretariado nacional da educação cristã).
A metáfora da constelação acompanhou a vivência deste grupo de quem muito se espera, por ser constituído por professores, dirigentes de escolas católicas, autores de manuais e recursos didáticos, etc.
Em torno da ideia de ‘constelação’, criaram-se simbologias que gostaria de sublinhar como síntese da vivência acontecida.
Uma metáfora da e para a educação: a ‘constelação’
A constelação remete, bem certo, para uma primeira ideia que este jubileu sublinhou, de múltiplos modos: a educação é lugar de cultivo do respeito pelo outro, na sua singularidade e diversidade (entre os diversos contextos deste jubileu do mundo educativo, concretizou-se a ‘aldeia educativa’, espaço de apresentação de experiências educativas). Essa diversidade repercute-se na pluralidade de respostas educativas, visíveis na multiplicidade de movimentos e congregações que, ao longo destes 2000 anos, o cristianismo foi fazendo germinar, como resposta aos desafios de cada tempo, lugar e existência pessoal.
A constelação alude, também, à ideia da perenidade e permanência. O céu que hoje vemos é o mesmo céu que viram os homens e mulheres do ano mil, ou do ano de quinhentos, ou do tempo de Jesus Cristo, ou do tempo de Platão ou, mesmo de Hammurabi… O céu permanece, diante da efemeridade do tempo terreno. Em épocas de mudança de época como a que vivemos, falar de ‘constelação’, em contexto educativo, é recordar que da educação se espera que aponte para o que permanece, que ajude a superar os acidentes das conjunturas, promovendo, assim, a autêntica esperança. A educação deve promover o que não caduca, o que permanece, falando, ‘a linguagem do coração’, na terminologia do Papa Francisco, lembrada pelo Dicastério para a Cultura e Educação que promoveu este jubileu.
A ‘constelação’ fala, ainda, da firmeza dos valores. Vemos e precisamos de nos guiar pelas estrelas principais das constelações (por exemplo, pela ‘estrela polar’ que nos aponta o norte) quando é noite. Em pleno dia, dispensamo-las. Nem sequer as vemos, pois uma luz comum (o sol) guia-nos a todos, em simultâneo. Mas, na noite dos nossos dias, precisamos de procurar sinais que nos orientem. Fala disto a ideia de ‘constelação’: na noite dos tempos, precisamos de nos nortear. De outro modo, a noite dará lugar ao relativismo: cada luz quererá impor-se às outras e abafar as mais frágeis. Ou, ainda pior, sobrará a pequena centelha de cada um, frágil lusco-fusco sem capacidade de orientar.
A ideia de ‘constelação’ comporta, igualmente, a ideia de uma unidade que se concretiza por meio de algo que não vemos, não dominamos; alude à ideia de que o que somos se deve mover pelo que não se reduz à ordem material. As forças que agregam as estrelas, compondo-as como ‘constelação’, não as vemos nem as podemos manipular: escapam-nos. O mundo da educação decai e degrada-se, se não aponta para a dimensão espiritual e para a tensão para o transcendente, que habita o Homem. Educação que abafa o grito que ecoa no coração humano deverá inquietar-se e interrogar-se sobre os seus fins, pois longe estará da sua autêntica meta.
Leão XIV aponta quatro pontos cardeais para a educação
Com estes horizontes se realizou o Jubileu do mundo educativo, do qual as palavras de Leão XIV continuam a ressoar, sulcando na pedra que toda a autêntica educação deve realizar-se em torno de quatro pontos cardeais: ‘interioridade, unidade, amor e alegria’.
Palavras proferidas no dia 31 de outubro, pelo Papa Leão XIV, perante os milhares de educadores que enchiam a Praça de S. Pedro. A meu lado, uma irmã dominicana, provinda de Detroit. Americana como o Papa Leão XIV. Feliz por ser americano o Papa.
Leão XIV recordou, com estas palavras, que não há educação sem o apelo ao que permanece (interioridade), sem a busca da verdade (para que converge a ideia de ‘unidade’), sem o ‘coração’ (o ‘coração’, a marca agostiniana no pontificado de Leão) e, bem certo, sem a alegria, esse sinal de que nos encaminhamos para o que Deus pretende.
No dia 1 de novembro, associou-se, à celebração de todos os Santos, a proclamação de S. John Henry Newman como doutor da Igreja. Entre os doutores da Igreja, só se conta um português: Santo António, proclamado doutor por Pio XII, em 1946.
A proclamação de S. John Henry Newman como Doutor da Igreja merece reflexão, pela enorme oportunidade. Antes de mais, pelo sinal histórico: na celebração, estavam presentes representantes da Igreja de Inglaterra. Um importante sinal ecuménico, dado que S. Henry Newman é, ele mesmo, um anglicano convertido ao catolicismo.
Mas importa guardar, também, uma outra constatação de enorme significado para a atualidade, marcada por clivagens e polarizações.
Newman tem, entre as suas mais importantes contribuições para a teologia, a ideia do ‘desenvolvimento do dogma’, ideia que me parece de particular relevância, por, por um lado, sublinhar que a nuclearidade do dogma permanece, perante os riscos de relativismo que, hoje, assomam ao nosso viver, mas também observa que este se desenvolve, tornando-se mais significativo e compreensivo para os diversos tempos, perante os riscos de um fundamentalismo que petrifica a verdade, com o risco de interpretar o dogma como formulações sem vida, formulações sem significado. Dogma que não se torne iluminador do existir humano não cumpre a sua função. Dito de outro modo. A leitura do pensamento de Henry Newman torna-se mais compreensível se articulada com o princípio formulado no Vaticano II, no documento Unitatis Redintegratio, de que há uma ‘hierarquia das verdades’. Nem todas as verdade são igualmente importantes, para a fé cristã, devendo, por isso, fazer-se uma hermenêutica que secundarize o que é secundário e priorize o que é prioritário, sem inverter estas ordens.
A Newman devemos um importante contributo para este caminho.
Num contexto como o do jubileu educativo, esta proclamação de S. Henry Newman como doutor da Igreja é, por isso, densamente relevante. Os tempos precisam desta inteligência da fé, como ‘luz tenra, suave, no meio da noite’ (hino de completas da autoria de S. John Henry Newman).
De errantes a peregrinos…
Fui a Roma, como educador, mas, principalmente, como peregrino. Muitas vezes me recordei do que diz a Nota Pastoral da Conferência Episcopal para a semana nacional da educação cristã de 2024: ‘um peregrino não é um errante’. Um peregrino é, diferentemente do errante, alguém que, mesmo que erre, não fica eternamente no erro, tornando-se um errante. Errar não tem de nos tornar errantes. Um peregrino cai e, com mão na mão que o levanta, continua o caminho.
Um peregrino sabe para onde vai e despoja-se do que o aprisiona, para poder, livremente, caminhar mais ligeiro. Quão significativo é, para a educação, este símbolo que é o ‘ser peregrino’. Ele não é um ‘sem-abrigo’ (quantos vi, na cidade de Roma! E com que incómodo passei por eles, sem saber o que fazer!...), pois é habitado pelo futuro (sob a forma de ‘esperança’) e habita esse mesmo futuro, porque sabe que o que o espera é a Casa do Amor que Deus é.
Como peregrino, atravessei a Portas Santa, essoutro símbolo de que, do lado de dentro, Alguém nos abre a porta e nos espera. Comovi-me, partilhei, esperei e recebi. Essa é a realidade do peregrino. E, como educador, levei no meu coração a história dos inúmeros alunos com quem a minha vida se cruzou, ao longo destes 25 anos (um jubileu, também!) que tenho, enquanto docente. Com eles, as suas dores e angústias, as suas alegrias e esperanças, caminhei, pelas ruas de Roma, e celebrei, na Praça de São Pedro, nos dias 31 e 1, e, na Igreja de Santo António dos Portugueses, a fé que agrega, de todos os cantos do mundo, as diversidades unidas por uma só certeza: errar, na vida, não tem de nos tornar uns errantes, se de Deus aceitarmos o perdão. É esse o sentido profundo da celebração de um Jubileu de denso significado para a educação. Os que, um dia, erraram, não têm de permanecer, para sempre, no erro.