quinta-feira, novembro 20, 2025

'Os Sete Dias da Criação' |6| Luís M. P. Silva Ainda o primeiro dia: ‘No princípio criou Deus o Céu e a Terra’ – espaço e tempo unidos.

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Regressemos ao primeiro versículo da Bíblia, a Gn 1,1.

O texto diz, literalmente, ‘no princípio, criou Deus o Céu e a Terra, e a Terra estava caótica e vazia…’.

Habitualmente, as traduções têm optado por ‘no princípio, quando Deus criou o Céu e a Terra, a Terra estava caótica e vazia...’[1], favorecendo o risco de uma ‘receção’ do texto que faz crer a anterioridade da Terra, o que suscita reservas quanto à coincidência com a pretensão do autor bíblico de se demarcar das narrativas contemporâneas do texto bíblico.

(Para melhor compreender esta última ideia, tenha-se em conta que a perícope de Gn 1,1-2,4a terá sido redigida no período exílico e pós-exílico [que ocorreu entre 587 e 537 a.C., sob o domínio do império babilónico], tendo o povo bíblico contactado com as narrativas míticas dos povos mesopotâmicos. Nestes textos, é pressuposta a anterioridade de uma matéria à ação criadora. Tal não será a visão bíblica. Deus é o Criador de tudo. Não apenas o ‘modelador’ de matéria incriada.)

Constatemos que o texto utiliza termos que nos falam de ‘tempo’ [no princípio] e de ‘espaço’ [céu e terra].

Uma tal constatação permite-nos estabelecer mais uma ponte interessante entre ciência e religião. Vejamos…

Intuitivamente, tendemos a separar o tempo do espaço e o espaço do tempo. Movemo-nos no espaço, para a frente e para trás, para os lados, o que nos parece, de todo, impossível, em termos de tempo. O tempo é, como nos diz a nossa intuição, uma linha reta. ‘Envelhecemos’ e não ‘rejuvenescemos’ ou ‘reinfantilizamos’.

Estas constatações fazem-nos dissociar, sem qualquer nexo ou ligação, espaço e tempo. Não nos parece que tenham nada a ver um com o outro.

O texto bíblico, de forma quase contraintuitiva, obriga-nos, porém, a ser mais atentos.

Logo na primeira afirmação, tempo (‘no princípio’) e espaço (‘Céu e Terra’) ficam unidos. Deus é o criador de ambos. Não, apenas, do espaço, como, tantas vezes, tendemos a ler.

O tempo e o espaço d’Ele dependem e não existem senão como criaturas suas.

Ora, esta intuição bíblica antecipa, curiosamente, uma das descobertas mais fascinantes da física contemporânea, possível a partir das teorias da relatividade de Albert Einstein.

As suas conclusões permitem constatar que, se nos deslocássemos, no espaço, a velocidades próximas da velocidade máxima que existe no universo (sim, no universo não há velocidades absolutas. Todas têm um limite máximo: a da luz, que é de cerca de 300 mil Kms por segundo), alteraríamos o tempo e poderíamos viajar neste, atrasá-lo. Se alguém se deslocasse (não se preocupe, caro leitor; as construções de tais meios estão atrasadas…) a tal velocidade e regressasse à terra, aqui, o tempo teria levado centenas ou milhares de anos, enquanto no interior dessa máquina o tempo teria decorrido mais lentamente.

Colin Stuart, um autor prolífico de livros sobre estas matérias, e em cuja homenagem já foi atribuído o nome a um asteroide, conta, no seu ‘Tempo: 10 coisas que deve saber’, ‘digamos que viajamos através da galáxia numa grande volta a 99,9999 por cento da velocidade da luz […] durante 10 anos. Regressa uma década mais velho, mas terão passado sete mil anos na Terra enquanto esteve fora.’[2]

Para melhor se perceber a ideia, faça-se um exercício simples que permite dar conta de como as noções de espaço e tempo dependem do ‘mundo’ em que se está e pode haver mudanças distintas, de acordo com esses ‘mundos’.

Imagine-se alguém dentro de um comboio, a velocidade constante. Se essa pessoa deixar cair uma bola de ténis, ela cairá na vertical.

Mas, se algum observador com visão larga, acompanhar o percurso do comboio, e este for totalmente transparente, o movimento da bola formará uma linha diagonal desde a mão até ao chão.

‘Vertical’, se vista dentro do comboio; ‘diagonal’, se vista de fora.

Assim, também, com o tempo. O tempo não é vivido todo de modo igual. Há um nexo estreito com o espaço.

Ora, tal intuição é já vislumbrável no texto de génesis que une ‘tempo’ (‘no princípio’) e espaço (‘céu e terra’).

Curioso…


Sugestões bibliográficas:

Colin Stuart, Tempo: 10 coisas que deve saber, Lisboa, Vogais, 2024.

  1. Tomás de Aquino, Suma de Teología, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.

Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies, Deus, a ciência, as provas: alvorada de uma revolução, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 20242.

Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Paulus, 20146.


[1] Reproduzo a tradução proposta a discussão em 1 de junho de 2025 pela equipa de tradutores da Bíblia, sob a coordenação da CEP.

[2] Colin Stuart, Tempo: 10 coisas que deve saber, p. 72.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

 

 

 

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