Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O(s) autor(es) e a obra
Grégor Puppinck, A família, os Direitos do Homem e a Vida Eterna, Cascais, Princípia, 2018.
Este já é o terceiro livro de Grégor Puppinck que aqui analiso, depois de ‘Os direitos do homem desnaturado’ (número 22 desta rubrica) e ‘Objeção de consciência e direitos humanos’ (número 19 desta rubrica), todos publicados, em boa hora, pela Editora Principia, com a parceria da Fundação ‘A junção do bem’. A sua lucidez é admirável… Dar eco do seu legado torna-se, por isso, um dever para quem o lê: pela clarividência da sua reflexão, pela honestidade do seu discurso, pela coerência entre a sua escrita e a sua ação. A nossa dívida para com Puppinck, mesmo que desconhecida da maioria, é enorme. Como recorda António Pedro Barbas Homem, o autor do prefácio do livro que, agora, analiso, muito devemos a este doutor em direito e diretor do European Centre for Law and Justice, membro do painel de peritos da OCDE e do Conselho da Europa sobre Liberdade Religiosa, destacando-se o seu contributo para o processo chegado ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem interposto contra o Estado Italiano, em relação à presença de crucifixos nas salas de aula. Graças ao contributo singular de Puppinck, não saiu vencedora uma leitura laicista que teria terraplanado séculos de história e contribuído para um aprofundar do afastamento entre o território público dos Estados e a vida real dos seus povos. Este processo ficou conhecido como ‘Lautsi v. Itália, sendo um de muitos em que o contributo deste eminente jurista impediu decisões nefastas para a vida coletiva…
Mas, como bem recorda nos seus vários livros, o ‘bom combate’ continua…
Este livro poderia ter sido o primeiro dos de Puppinck a merecer análise, aqui. Curiosamente, porém, segui uma ordem que não é a da edição, mas a da descoberta. Cheguei a Puppinck pela mão de Gabriele Kuby. As circunstâncias da discussão nacional (e mesmo internacional) sobre os limites à objeção de consciência levaram-me ao seu livro dedicado a esta matéria. Logo ali percebi e fiquei assombrado com o seu brilhantismo. Parti, por isso, à descoberta do segundo, ‘os direitos do homem desnaturado’, ficando com o desejo de ler este que, agora, analiso, um livro, aliás, premiado.Da leitura dos três livros emerge a consciência de uma desarmante coerência de pensamento que, neste terceiro livro recebe, pela circunstância em que ele surgiu, um ‘plus’ a referir.
Dado tratar-se de uma obra nascida de uma circunstância muito precisa – nasceu como texto de uma intervenção num colóquio sobre família e a Igreja, organizado pela Conferência Episcopal da Eslováquia, no contexto mais amplo do sínodo sobre os «desafios pastorais da família no contexto da evangelização’, - neste livro o autor permite-se explicitar traços que só implicitamente estão presentes nos outros livros.
Na verdade, aqui, Puppinck evidencia o papel ímpar, insubstituível do cristianismo católico para a ‘reparação’ de erros que estão a ser cometidos a coberto de uma leitura individualista dos direitos humanos.
Para tal, Puppinck descreve, com clareza, a génese dos erros que estão diante de todos (a emergência e estabelecimento de uma leitura voluntarista e individualista do ser humano; ao arrepio da leitura humanista e personalista), denunciando as suas consequências e implicações (mesmo as ainda não totalmente visíveis), mas vai mais longe, explicitando o papel que cabe ao catolicismo como garante de que o resvalar individualista não esfrangalhe definitivamente a sociedade.
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
No posfácio, da autoria de Mons. Aldo Giordano, enuncia-se o esboço de uma metáfora que nos serve, perfeitamente, para resumir o alcance da abordagem defendida neste livro: a metáfora da noite e do dia.
A natureza do dia poderia definir-se como a de um tempo em que todos se regem, movem, orientam, por uma luz comum. E isso une todos os ‘ensolarados’ em torno de algo que é comum. As dúvidas de uns podem ser esclarecidas por uma ‘fonte’ que é comum a todos. E isso garante a unidade da leitura, a convergência das leituras, mesmo que diversas nos detalhes.
A natureza da noite poderia definir-se, pelo contrário, por ser um tempo em que, pela ausência de uma luz comum, cada um gera ou recolhe a sua própria luz, ofuscando as luzes mais fortes a luz dos mais frágeis… Pela ausência de uma ‘fonte’ de luz comum, as possibilidades de choques, conflitos, imposições, aumentam.
Os direitos humanos foram vertidos, na década de 1940, para um documento que pressupunha uma ‘fonte’ comum: a natureza humana, objetivamente considerada e anterior à vontade de cada um. A participação de todos nessa natureza universalizou os direitos humanos e permitiu reconhecê-los como ‘iguais e inalienáveis’. Como tantas vezes venho recordando, fez deles ‘direitos’, mas, também, ‘deveres’ para todos e cada um.
Progressivamente, porém, foi-se impondo uma leitura duvidosa sobre a dignidade (que se considerava como pressuposta, para uma outra noção que a faz depender da perceção de cada um), assente em axiomas individualistas e voluntaristas: é o sujeito individual que passa a ser a ‘medida de todas as coisas’.
Uma tal ‘revolução’ está a conduzir a uma abordagem dos direitos humanos que os vai afastando, mais e mais, da natureza humana. Como o próprio Puppinck sintetiza, ‘Do ponto de vista individualista, quanto mais antinatural – isto é, contrário à natureza humana – for um direito, mais será visto como uma elevada manifestação da liberdade humana, e mais alto se encontrará na nova hierarquia dos direitos.’(pp. 42-43)
E a família, nisto tudo?
Com o brilhantismo que lhe conhecemos, Puppinck regista que a leitura individualista dos direitos humanos deslocou a abordagem sobre a família daquilo que ela é, uma união que não depende de um só e que carece de proteção pelos bens que ela comporta (entre os quais merecem particular destaque os filhos), para uma outra linha que coloca o centro no indivíduo. Como se ‘alguém pudesse casar sozinho’… Neste novo registo, o centro passaram a ser os direitos dos adultos, deixando em segundo plano os direitos das próprias crianças, dependentes de serem desejadas pelos adultos (assim no aborto, nas barrigas de aluguer, na procriação medicamente assistida, etc…).
È neste contexto que ganha particular premência o papel do catolicismo que, de acordo com o autor, deve resistir à tentação de ‘laicizar’ e neutralizar o discurso explicitamente religioso, evidenciando, pelo contrário, que é a certeza da ‘vida eterna’ (essa nascente comum da luz que a todos iluminará, simultaneamente) que pode fazer regressar a humanidade à realidade, acordando-a das ilusões de autossuficiência que a pós-modernidade (que o autor referencia diversas vezes como sendo um tempo de ilusão da dispensabilidade de Deus). O autor lança, por isso, o desafio a que os cristãos percebam que a estranheza que lhes suscitam as leituras individualistas dos direitos humanos são um convite a que se envolvam na defesa de uma leitura coerente com a originalmente pretendida: a que assenta e pressupõe a realidade, a natureza humana objetiva e prévia, fazendo da liberdade, não um fim em si mesma, mas uma condição para a autêntica libertação das ilusões.
Este não é, porém, um livro escrito exclusivamente para cristãos. É um livro que, honestamente, explicita como o contributo cristão para a autêntica defesa dos direitos humanos pode agregar e reunir, de forma singular e insubstituível, todos os que se reveem numa leitura que respeita o autêntico espírito que assistiu ao renascer da vida depois dos escombros que a II Guerra Mundial deixou. De outro modo, restarão sujeitos fechados sobre si mesmos, sem memória, sem lastro real, sem corpo, puros espíritos monádicos, isolados e, como explicita Puppinck, infelizes apesar da ilusão da felicidade.
Na mesma página que o autor (citações)
‘Como sublinha o Autor, «o humanismo ateu levou a sociedade a colocar a sua esperança em si própria; o cristianismo parece, por vezes, ter seguido o mesmo caminho», tendo que pagar o preço das esperanças não realizadas».’ António Pedro Barbas Homem, prefácio, p. 12.
‘Dar testemunho voltou a ser essencial, como no cristianismo primitivo. E é isso que Grégor Puppinck vem fazer e só podemos felicitá-lo, a ele, pela escrita, e a nós, por o podermos ler.’ António Pedro Barbas Homem, prefácio, p. 13
‘Do ponto de vista humano, a situação na Europa é muito má. Encontramo-nos num período de charneira marcado pelo esgotamento da sociedade nascida na década de 1960: esgotamento demográfico, esgotamento económico e esgotamento político, mas também esgotamento espiritual e até ecológico. O projeto político europeu está a ser fortemente posto em causa, incluindo os direitos do homem; o sonho humanista moderno que promoveu este projeto degenerou numa pós-modernidade individualista e niilista.’ (Introdução, p. 17)
‘Nesta situação, em que o indivíduo liberto de si mesmo se encontra perante o seu próprio nada e o absurdo da vida, a Igreja tem um papel profético. E esse papel não consiste em ir ao encontro do mundo na escuridão da pós-modernidade, mas, pelo contrário, em puxar o mundo para cima, revelando-lhe o Céu, a vida eterna.’ (Introdução, p. 18)
‘Na grande Europa do Conselho da Europa (incluindo a Rússia), mais de um terço das gravidezes termina em aborto (num total de 4,5 milhões de abortos por ano, face a 8,5 milhões de nascimentos). Em França, uma gravidez em cada cinco termina em aborto (o correspondente a um total de 220 000 abortos por ano). No futuro próximo, vários Estados assistirão ao declínio da sua população, em consequência da fraca taxa de natalidade.’ (Introdução, p.19)
‘Os dados estatísticos que acabamos de enunciar revelam uma derrocada do casamento e da família, derrocada essa que tem causas múltiplas e complexas; uma das mais importantes poderá ser designada por «revolução individualista». Uma análise do direito, em particular dos direitos do homem, revela a evolução que ocorreu na nossa sociedade; com efeito, os direitos do homem são uma expressão da antropologia dominante no seio de uma sociedade, porque pressupõem uma certa conceção do Homem.’ (p. 21)
‘Os direitos do homem, tal como foram enunciados após a Segunda Guerra Mundial, eram a expressão de uma antropologia fundada na natureza humana, tal como a descrevia a filosofia humanista e personalista. A universalidade desta antropologia natural estava, aliás, na origem da universalidade dos direitos do homem.’ (p. 22)
‘[…] se o direito ao casamento não é um direito subjetivo que pertence à pessoa enquanto indivíduo, como são as liberdades, é porque pertence antes de mais ao casal; ninguém pode casar-se sozinho.’ (p. 23)
‘[…] o direito ao casamento alcança três protagonistas: o homem, a mulher e a sociedade; e visa um bem que é comum aos três; a família e, através dela, a transmissão da vida e do património material e imaterial. Este bem comum é realizado pelos filhos que, consequentemente, ocupam um lugar central da mesma família, sendo protegidos, em particular, por meio do casamento.’ (p. 23)
‘Com a revolução individualista ocidental, a família deixou de ser a célula fundamental da sociedade, posição em que foi substituída pelo indivíduo. […] O indivíduo é distinto da pessoa; o indivíduo é uma pessoa cuja humanidade consiste em definir-se a si mesmo, enquanto a pessoa é um indivíduo cuja humanidade procede da natureza humana. Assim, a pessoa reconhece que é dependente, enquanto indivíduo pretende ser autónomo.’ (p. 25)
‘Se os direitos do homem protegem o que distingue o Homem do animal, os direitos pós-modernos do indivíduo asseguram a prevalência da liberdade do indivíduo em si mesma, abstraindo-se das suas relações com outros indivíduos.’ (p. 29)
‘A separação do biológico (ou natural) do social levou o tribunal Europeu a separar, nomeadamente, o casamento da família, a família da alteridade sexual, a filiação da biologia, a orientação sexual do sexo, a «qualidade de vida» da vida, e ainda a pessoa do ser humano.’ (p. 30)
‘A unidade entre individualismo, subjetivismo e relativismo torna-se então manifesta: os três conspiram para a negação do primado da realidade; é que o primado da realidade é visto como a negação da liberdade individual.’ (p. 35)
‘Atualmente, o respeito pela liberdade individual sobrepõe-se a todos os outros valores, incluindo a vida, o que abre caminho, por exemplo, ao direito ao suicídio assistido.
A atenção central que é concedida à afirmação de si é relevante para a interpretação da noção de dignidade. De facto, se, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, esta última era descrita como inerente à pessoa humana, atualmente é vista mais como reflexiva, ou seja, individual e subjetiva. Passámos, pois, de uma conceção da dignidade fundada na natureza humana- uma dignidade que está presente em cada homem pelo facto de ser homem, e que é exterior ao agir individual – para uma conceção relativa da dignidade, que é determinada pela perceção que cada indivíduo tem de si próprio.’ (pp. 38-39)
‘Cada pessoa é, pois, o juiz da sua dignidade individual, a qual deixa de ser inerente e absoluta, tornando-se subjetiva e relativa, estreitamente relacionada com a «qualidade de vida»; e a sociedade está obrigada a respeitá-la, como estava obrigada a respeitar a antiga dignidade ontológica inerente à pessoa humana.’ (p. 39)
‘Do ponto de vista individualista, quanto mais antinatural – isto é, contrário à natureza humana – for um direito, mais será visto como uma elevada manifestação da liberdade humana, e mais alto se encontrará na nova hierarquia dos direitos. Assim, o direito às uniões entre pessoas do mesmo sexo, o direito ao aborto, o direito ao suicídio assistido e à eutanásia, embora se oponham à Convenção, têm o potencial de se tornar «sobredireitos», dado que são direitos sobre-humanos que exaltam o indivíduo e a sua capacidade de dominar a natureza; na verdade, estes direitos transformaram-se em dogmas.’ (pp. 42-43)
‘O individualismo atomiza a sociedade; visto como uma situação que promove a liberdade, a verdade é que é também uma causa de sofrimento, de pobreza e de isolamento, a ponto de esta liberdade ser, as mais das vezes, um logro. Quantas pessoas se divorciam para serem libres e acabam pobres e solitárias! O individualismo libertário não torna as pessoas felizes e as suas mais recentes conquistas culturais são mórbidas: eutanásia, aborto, direito aos filhos (gestação de substituição), eugenismo, divórcio. Ao distanciar as pessoas dos seus prolongamentos naturais (família, comunidades diversas), e sobrenaturais (religião), este individualismo esvazia as existências, tornando-as absurdas.’ (p. 44)
‘A secularização não afetou apenas as obras sociais católicas (escolas, hospitais, obras de caridade), mas também a sua atitude política. Com efeito, no campo político e moral, o discurso da Igreja foi laicizado, quis ser fundado na razão e na moral natural, com exclusão, a maioria das vezes, de qualquer referência religiosa, quer se tratasse de defender os imigrantes ou de condenar o aborto. A Igreja tentou convencer o mundo sendo mais humanista ou mais racional que ele; deste modo, o conjunto dos católicos passou a evitar dar testemunho explícito da fé, como se tivesse integrado o argumento laico da inadmissibilidade dos argumentos religiosos no debate público.’ (p. 51)
‘A aceitação do Criador leva, necessariamente à aceitação da realidade, voltando a situar o Homem na medida e na perspetiva do seu Criador. Assim sendo, anunciar o Criador, dar a conhecer a ternura do amor que nasce da sua contemplação permite-nos aceder a uma delicada humildade relativamente à sua criação.’ (p. 53)
‘O humanismo ateu levou a sociedade a colocar a sua esperança em si própria; o cristianismo parece, por vezes, ter seguido o mesmo caminho. E tanto o humanismo como o cristianismo pagam o preço das suas esperanças não realizadas. Porque, tal como o cristianismo, também o humanismo é posto em causa pelo individualismo e o relativismo.’ (p. 56)
‘[…] dado que a sociedade ocidental sofre de um excesso de individualismo […] é necessário antes de mais […] voltar a desenvolver as dimensões sobrenaturais e sociais de cada existência individual, dimensões que foram atrofiadas no homem ocidental.’ (p. 56)
‘Sem a perspetiva da vida eterna, uma vida boa consiste na satisfação das próprias pulsões, na realização pessoal, mas sem possibilidade real de conhecimento próprio. Assim, há muitas pessoas que desejam divorciar-se para serem felizes, pessoas para quem permanecer ao lado do cônjuge até à morte equivale a um fracasso, porque, a partir do momento em que a vida conjugal deixa de corresponder às suas expectativas, o esforço de a manter é vão; o divórcio permite-lhes, pois, retomarem a posse de si próprias. É a ausência de perspetiva de vida eterna que torna absurdo o esforço de toda uma vida e justifica a separação dos cônjuges.’ (p. 57)
‘Sem a luz de Deus, o mundo não passa de um conjunto de fenómenos, de um fechamento na escuridão inferior, e a vida mais não é que ilusão fugaz, uma consciência dolorosa no nada.’ (p. 58)
‘O ensino da verdade é a maior das caridades com que a Igreja tem o dever de servir o mundo, a exposição da verdade em toda a sua luz, a fim de que os indivíduos possam sair do impasse escuro da pós-modernidade.’ (p. 59)
‘É o medo de que não haja nada para além de nós que nos faz querer existir desesperadamente; e é o absurdo de tal existência que torna absoluta a nossa vontade individual. Só ela plana sobre as águas.
Mas ver o Céu permite-nos conhecer algo que é maior do que nós – a ordem do universo -, que se deduz do todo e não se constrói a partir de nós. Amar o Céu pelo próprio Céu, preferi-lo a nós por amor à perfeição, reordena-nos para o bem universal e faz-nos participar desse bem, abandonando as outras liberdades à sua vacuidade mentirosa.’ (p. 71)
‘Ser livre para nada é simplesmente desesperante. […] A liberdade não tem condição para se autossalvar. A salvação só pode vir de um Outro. Decidir confiar num Outro, no Pai, que tem a capacidade de realizar a aspiração do divino, ao eterno, à beleza, à verdade, ao amor, é o grande ato de inteligência da liberdade.’ Mons. Aldo Giordano, Posfácio, pp. 76.77)
