Há algo de trágico e dramático em ter-se uma boa resposta, mas não se lhe encontrar pergunta correspondente. Como a chave caída na calçada, à qual só um acaso poderá vir a restituir utilidade, ao encontrar-se de novo a porta em que encaixava e que permitia abrir.
Parece-me residir, aqui, a mais profunda causa da crise das religiões tradicionais. Possuem sábias e demoradas respostas para interrogações entretanto sumidas.
Soma-se, porém, à tragicidade original e essencial daqui decorrente um segundo nível trágico: as perguntas nunca deveriam ter-se sumido, dada a sua natureza de condição necessária à existência do perguntador. Se não pergunta sobre si mesmo e a permanência de si aquele que pergunta, sobre o que perguntará? Bastar-se-á nas perguntas efémeras?
Não é, por isso, apenas trágico para as religiões constatarem que possuem respostas para perguntas que, entretanto, se esfumaram. É-o, principalmente, pela natureza das perguntas sumidas. De outro modo: a verdadeira tragicidade está em que o sujeito humano tenha desistido de se interrogar, tenha desistido de se perguntar sobre si, tenha desistido, afinal, de ser humano.
A história da emergência evolutiva do ser humano pode fazer-se a partir da capacidade de o humano se deixar interpelar pela unicidade e inevitabilidade da morte. No processo evolutivo, sabemos estar perante comunidades humanas porque as vemos associadas a (mesmo que rudimentares) sinais do culto dos mortos. Há humanos onde há a interrogação sobre a ‘questionabilidade’ do morrer. Os animais não têm culto dos mortos. Não se interrogam sobre o que é morrer.
Um olhar fino percebe a concomitância entre a interrogação sobre o morrer e a resposta que é viver. A lenta, mas consolidada história, do reconhecimento da dignidade do que é ser-se humano faz-se do confronto perante a inevitabilidade, unicidade e incontornabilidade da morte, perante a qual se torna necessário assegurar condições de proteção. É que a essas notas com que se afigura a morte soma-se uma última: a irreversibilidade.
O reconhecimento da necessidade de se proteger esse ‘algo’ considerado ‘dignidade humana’ encontra o seu berço neste inconsciente confronto com a impossibilidade de reverter a ação da morte.
Ora, os tempos em que vivemos trazem-nos uma radical novidade que a história da humanidade nunca ousara permitir-se: ‘desdensificou’ (anulou a densidade) a morte.
Hoje, morre-se como se já não se vivesse: sem drama! Acresce a isto um salto para a frente: pretende-se, não só não evitar a morte, mas, inclusive, assegurar que se pode pretendê-la e obtê-la. A morte ficou ao alcance da ‘mão que embala o berço’, do desejo feito direito sussurrado sob a capa da compaixão.
Sucumbem, assim, de uma só tirada, a dramaticidade da morte e a inviolabilidade do viver.
Deveriam incomodar-nos as mortes solitárias, na ordem das centenas, que são levadas à terra, sem a companhia de qualquer familiar. (Ouvir https://rr.pt/fotoreportagem/renascenca-reportagem/2025/10/17/ha-cada-vez-mais-nomes-estrangeiros-imigrantes-sao-quase-um-quarto-dos-funerais-solitarios-em-lisboa/444114/)
Deveriam pôr-nos em sobressalto os números dos suicídios por solidão (https://youtu.be/wKSIN7hIi0Y), nas sociedades do bem-estar e modernas. A modernidade favoreceu a emergência de um modo de nos pensarmos radicalmente solipsista, autossuficiente, visão que venho designando como intrinsecamente ‘inumana’, pois o humano é, por natureza, um ser dependente, nascido sempre de dois, necessitado de mais do que de dois para se saber existente, carente dos outros para ter uma cultura, uma língua, um chão para pisar. Mas uma certa modernidade (não tinha de ser assim! A modernidade esqueceu-se de que a autonomia é a interiorização da lei e não a capacidade de o sujeito ‘criar a lei’) tomou o rumo de nos isolar, negando-nos como ‘pastores do ser’ (Heidegger), como aqueles que recebem o ser que devem proteger e cuidar. Iludimo-nos, pensando-nos originariamente ‘eus’ sem ‘tus’. Mas a génese dos sujeitos é a invertida a esta: primeiro, está o ‘tu’, diante do qual emerge e nasce o ‘eu’.
A morte é, assim, enquanto experiência antecipada no morrer dos outros, ocasião de densa interrogação sobre o viver. No morrer dos outros, reconhecidos como ‘tus’, renascemos como humanos que regressam à fonte de todas as perguntas. Se perdemos a capacidade de nos deixarmos incomodar com o morrer, se tornamos asséptica a morte, não é apenas a morte que deixa de o ser, mas o próprio viver.
É, por isso, urgente ‘desabituarmo-nos’ da morte. Há que devolver-lhe a sua unicidade, a sua dramaticidade, a sua condição de lugar de inquietude. ‘Nenhuma pergunta é proibida’ – assim deverá manter-se, perante a morte, como dizem os dominicanos, na sua academia de Bagdad.
Em cada morrer, em cada morte, cria-se a cova de um berço de um renascimento: regressamos à humanidade, à condição do ser feito de ‘húmus’, frágil, vulnerável, e disso sempre consciente. Não alienado ou distraído de si. Presente a si! Densamente perturbado pela morte para, na resposta da esperança, buscar a quietude nunca acomodada ou sossegada.
Como diz o poeta José Rui Teixeira, no seu ‘Hitoritabi’:
‘Disseram-me que foi uma morte súbita.
A morte é sempre um processo, pensei.
E a esperança lastimou em faúlhas,
do outro lado do arame farpado,
esse modo tão esbranquiçado do frio.
Tenho-me convencido das minhas incertezas.
A fé é uma ferramenta sem descanso.’