Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)
Alberto Ferreyra*
Os olhos fechados… Tudo é realidade que entra pelas narinas.
J. e M. sentem, no rosto, o afago da natureza que se estende diante de si. Sob as pálpebras corridas, cheiram, ao longe, as rumorejantes águas do rio Vouga, lento e demorado. Uma suave brisa embala o lânguido movimento do baloiço onde descansam. Só os dois e o mundo! O mundo e a solidão acompanhada.
Com o vento preguiçoso, os odores do tempo.
Alfazema…
Laranjeira…
Alecrim…
Jasmim…
Os olhos não veem, mas o encanto do tempo assoma-lhes, pelas narinas despertas, ao mais íntimo de si.
Sonham que o mundo é só perfume, sem poder possuir-se em recipiente que contém e retém. Um ondular sem corpo…
Nisto, J. desperta M., dando-lhe para a mão um vaso de barro cru. Pede-lhe que volte a fechar os olhos e aproxime o vaso do seu nariz.
- O que vê o teu nariz?
Perplexa, M. hesita, como se tomada por um súbito pavor. Pareceu-lhe ver, com clareza, um rosto de uma memória já longínqua.
- Não te assustes. – Insistiu J. – Volta a fechar os olhos e vê o que sentes…
M. anuiu.
Fechou, de novo, com força, os olhos, aproximou, do seu rosto, o vaso de barro cru, e deixou-se transportar.
Sentia-se levada por subtis perfumes a que se ligavam vivências de que se esquecera ou que nem sua memória eram. Eram memórias contidas nos cheiros do fluir do tempo. Cada odor era um lugar, uma pessoa, um tempo, uma sombra ou uma luz… O seu ser era só odores! Tudo era cheiros, perfumes ou desprezíveis odores fétidos.
J. apreciava…
As rugas na testa de M. faziam supor momentos nebulosos a que se seguiam longos tempos de testa lisa. Os tempos sucediam-se.
No interior de M., apenas odores.
- Sonhamos poder conter com cheiros o que vivemos, mas o olfato é o mais espiritual dos sentidos. Nada o consegue reter.
J. parecia estar a pensar em alta voz.
E continuou…
- Sempre desejámos prendê-lo, gravá-lo e reproduzi-lo, mas o esquivo sabor do ser esvai-se por entre os dedos… Pelas narinas, para ser mais preciso! Quem o puder, um dia, conter, saberá qual o cheiro do Céu. Mas, até lá, restará este vaso de barro cru.
M. pareceu acordar de um sonho.
- Onde o encontraste?
- Há, aqui perto, uma pequena quinta. Não é bem uma quinta, fechada e retida. É uma escassa língua de terra entre a estrada e o rio. É atravessada por um pequeno curso de água onde dizem ter-se saciado, em tempos longínquos, um afamado ciclista nacional, em prova muito aplaudida. É uma espécie de oásis num deserto de eucaliptos. Resoluta contra o fogo, a vegetação faz-se de árvores já longevas, resistentes a toda a violência e fúria. Assim o decidira o seu dono, renitente em abater as memórias que lhe vinham dos seus antepassados que ali deixaram crescer robustas recordações em formas verdes. Em boa hora o determinara. Naquele escasso recanto, resistia-se. E, sob a folhagem rasteira, verde, sempre verde, fervilha vida em nutritiva terra de que se recolheu o barro com que se fez este vaso. Nele, os odores retêm-se para poderem reproduzir-se. Aprecia!
M. voltou a fechar os olhos. E novas memórias lhe assomaram à mente. Vivas... Muito vivas!
O viver transfigurava-se em odores muito firmes, determinados, quase carnais. Sentia-os como se vivesse cada momento, agora. Agora, mesmo! Odores de tempos vividos, uns por si mesma, outros como memórias de família, tangidas de dores e sofrimentos.
Ao longe (num longe feito tempo, que não espaço…), sente o odor das primeiras chuvas que enchem do sabor a terra as entranhas da alma. Regressa ao lugar que fez a infância dos avós.
Sente um seco odor a pó que a leva a voar até ao lugar onde se vota, em tempos de ditadura, num general que o regime derrubará à lei da bala.
Assaltam-lhe a mente as memórias contadas pelo seu avô.
O odor seco do pó leva-a ao interior da sala de soalho de madeira onde se vota.
Por entre as frinchas do soalho, caem os votos dos opositores, para que a contagem confirme a permanência dos autocratas.
- Sr. Cruz, e se falássemos do fontanário tantas vezes adiado?! – Interroga o representante do regime ao delegado da oposição, levando-o para longe do lugar onde se fazem as contas de uma enviesada eleição.
Esfuma-se a memória e continua a voar pelas ondas do odor…
Sente o cheiro das águas calmas do rio, ladeado de perfumados laranjais.
Deixa-se levar ao tempo de um século passado em que um renomado abade, de nome Santiago, pagou, com oito mil cruzados, a ponte, não distante dali, que continua a unir o que estava separado, como o pretendera o homem da igreja. Pois de que se faz a missão de um eclesiástico senão de unir o que está separado?!
Vai, ainda, ondulando pelos odores das laranjeiras, ao tempo em que um homem, de nome Severi, governava aquelas terras, mal sabendo que do seu nome restaria marca perene na toponímia da região.
Odores! Só odores!
Sente, muito impregnado nas fímbrias da alma, o clamoroso odor de sangue de inocente derramado às mãos de um cruel pai rei ciumento dos amores do filho por uma donzela de nome Inês.
O seu viajar pelos odores leva-a ao mosteiro onde se tumulam os amores subitamente derrotados ao fio da espada. E vê, sob o túmulo da donzela, os rostos dos carrascos sobre que fizeram o escultor repousar o túmulo, como sinal da vitória do bem sobre o mal. Alcobaça perpetuaria, no transepto da sua Igreja monasterial, a imagem de que os cruéis do mundo não sairão vencedores… Mas o odor do sangue inocente é penetrante!
Profundas rugas se cavam sobre os olhos de M. É perturbadora aquela imagem, ainda que esquiva, como os odores que a provocam.
Tão esquivos são os odores! Como se escapam qual almas incontíveis!
Tudo ali, naquele vaso.
J. estava feliz. Sentia, no rosto de M., o fascínio de fruir do milagre a que a humanidade estava impedida de aceder: conter e reproduzir os odores de outros tempos e lugares.
Quando o conseguirá fazer um novo Galileu, já não do sentido a que acedemos pelo olhar, mas do olfato que nos antecede?
J. recolheu, das mãos de M., o vaso.
Logo se lhe abriram, de novo, os olhos.
Brilhava como a visão do transfigurado.
Não pretendia, porém, ali armar nova tenda. Havia que descer à quinta de onde recolhera a terra para fazer aquele miraculoso vaso.
Correram…
Não deram conta de como com eles correra, também, o tempo.
Após curvas, muitas curvas, chegaram à pequena quinta dos bichos. Bem lhes apetecia mudar-lhe o nome. O ‘lugar adâmico’, melhor seria.
Como se daquela fecunda terra se tivesse feito corpo de Adão, reservando-lhe Deus o poder de guardar na sua inacessível memória os cheiros de que se faria a sua vida.
M. parecia ouvir, no rumorejar das águas que desciam em direção ao Vouga, a cadência de um versículo ausente de Génesis: ‘Ficará, como sinal da tua vergonha, a maldição de não poderes tornar acessíveis os perfumes do teu viver.’
J. fez rolar, pelas águas do pequeno ribeiro, o vaso que logo se dissolveu, como se sal para salgar.
Recordava-se de que, pelas narinas, Deus insuflara o Seu espírito…
Nos perfumes do mundo, reavivar-se-ia, para sempre, a memória do primeiro momento. Para sempre inacessível o mundo dos cheiros. Como memória de que o homem se faz de corpo e alma. De um corpo que não consegue conter toda a alma…