A noite e o dia são portentosas metáforas, densos símbolos da condição ética do ser humano, coletivamente pensado.
O dia é esse tempo em que um sol comum orienta o agir humano. Referências comuns iluminam o caminhar, também ele comum, dos descendentes de Adão, essoutra imagem simbólica da condição frágil que a todos caracteriza.
Na noite dos tempos, porém, apaga-se a luz comum e fica a penumbra ou, mesmo, a densa escuridão. Frágil, como no dia, o homem procura não se deixar abater pelo peso das trevas. E emergem as bruxuleantes centelhas de luz própria. Já não a luz comum, mas as autogeradas fontes de luminosidade. E, na ausência de uma natural luz comum, brotam as robustas luzes nas trevas, que se impõem, como holofotes, aos mais hesitantes e esperançosos de um novo amanhecer, sábios de uma memória que lhes lembra que não são, eles mesmos, a luz. E densifica-se o poder dos que, na sombra, encandeiam os demais e lhes impõem o seu irradiar.
Porque é a terra que gira em torno do sol, unem-se as mãos do que as fazem rodopiar sobre si, de modo a provocar um novo amanhecer.
Ele poderá tardar. Muitas luzes se sumirão sob a incandescência dos fortes, mas a noite não durará para sempre. É preciso é não confundir, entre as sombras, as agitações do vento do caminhar de um Homem. E permanecer peregrinante na esperança.
Os tempos são de noite.
Os nomes com que se queria proteger o Homem renomearam-se e são, agora, a sua fonte de destruição. Dos direitos ditos protegidos da tentação totalitária resta um vago desejo, reconfigurados que estão sob a capa de um individualismo que tornou sol um relampejo solitário de luz.
O homem invertido isolou-se, fechou-se, amarfanhou-se numa ilusão de si, convencido de que o foco que leva na mão o tornou um novo pirilampo. Mas a sua luz não é já a de uma natureza protegida de todos os assaltos. Buscava, no dia, a luz para onde se projetava. Projeta-se, agora, como luz de si mesmo. Oh, vã cegueira de um olhar apagado pela incandescência da própria luz!
Abandonou o seu ser de peregrino. Tornou-se um errante.
Só. Olha em redor e vê-se isolado.
Não vê, afinal. Pressente!
Mas o dia virá…
O dia já veio, aliás.
Numa outra noite… Na aurora dos tempos, a noite dos homens deu lugar ao dia de Deus e a semente da esperança foi escavada na rocha e lançada à terra.
A terra foi tomada em mãos, girando de si sobre si e aguarda a Hora. O dia vencerá, já vencedor que é. E os ‘eus’ já não serão só somados, mas comunionados como pessoas.
Porque ser-se indivíduo não é, ainda, ser si mesmo. Só no outro se é si mesmo. Sem ‘tus’, não há ainda, dia. ‘Tus’ que irmanam, ‘tus’ que são irmãos.
O dia virá… O dia já veio.
Assim o lembrou o sábio rabino Pinchas…
«Rabi Pinchas perguntou aos seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia.
"É momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carneiro?", perguntou um dos discípulos.
"Não", respondeu o rabi.
"É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira de uma figueira?", perguntou o segundo.
"Não, também não é esse momento", replicou o rabi.
"Então é quando chega a manhã?", perguntaram os discípulos.
"Também não. É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão ou nossa irmã", replicou o rabi Pinchas. E concluiu: "Enquanto não o conseguirmos, continua a ser noite".»[1]
Na noite dos tempos, sente-se, já, o calor da aurora, meu irmão!
[1] Tomas Halík, A noite do confessor: a fé cristã numa era de incerteza, Prior Velho, Paulinas, 2014, p. 277.