Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O(s) autor(es) e a obra
Grégor Puppinck, Os Direitos do Homem Desnaturado, Cascais, Princípia, 2019.
Há pessoas a quem muito devemos, sem lhe conhecermos a autoria do bem que recebemos, mas sabendo que para com alguém temos dívida que nunca saldaremos. Puppinck é um desses homens a quem o mundo muito deve, sem, porém, o saber e, provavelmente, sem nunca lho agradecer, devidamente.
Tal constatação conflui com uma citação de George Elliot que encontrei em filme que vi, poucos dias antes de começar a leitura deste livro que, agora analiso. Diz a poetisa do século XIX (que se ocultava sob este pseudónimo masculino): '...pois as melhorias do mundo dependem em parte de atos que não constam da história; e se as coisas não estão tão más para ti e para mim como poderiam estar, isso deve-se em parte àqueles que viveram fielmente uma vida escondida e que repousam agora em túmulos que ninguém visita.'
Não sei se, um dia, num futuro que se espera muito distante, o túmulo de Puppinck será alvo de romagens e visitas regulares, mas sei que o seu legado disso seria merecedor.
Cheguei às obras deste eminente jurista no decurso da leitura de obra de Gabriele Kuby, que refere este seu ‘os Direitos do Homem Desnaturado’. Li, porém, em primeiro lugar, o seu ‘Objeção de consciência e direitos humanos’, de que já aqui fiz análise, e em que percebi a luminosidade e brilhantismo da sua abordagem, que me deixou o desejo de vir a ler outras obras suas. Esta é a segunda que leio, reconhecendo, nela, igual qualidade.
Puppinck é brilhante. E os pensadores brilhantes levam luz às escuridões que os rodeiam. Os tempos exigem homens assim.
Enquanto diretor do European Centre for Law and Justice, uma ong sediada em Estrasburgo, a ele devemos a condução de muitos processos judiciais que permitiram continuar a proteger os valores fundamentais, de que falam os seus livros. A sua ação tem sido reconhecida, internacionalmente, sendo perito no âmbito dos Direitos Humanos, convidado por diversas organizações e, inclusive, pela Santa Sé, sendo, também, um autor premiado. Em 2016, recebeu o prémio Humanismo Cristão, pelo livro ‘a Família, os Direitos do Homem e a Vida Eterna’, um livro a analisar, futuramente, nesta mesma rubrica.
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
Puppinck oferece-nos, com este livro, um bem a revisitar, regularmente.
Nele, cruzam-se profundidade, oportunidade, visão de passado e visão de futuro, alicerçadas numa fina análise do presente. Esta característica (de ordem formal) concretiza-se na leitura (de ordem material) que nos propõe sobre o que estamos a fazer com os direitos humanos.
Para a sua análise, Puppinck vai à história. Sim, à história mais longínqua (enraizada no espírito iluminista e revolucionário – da revolução francesa, particularmente), mas encaminhando-nos para a história mais recente da ‘construção’ da declaração universal dos direitos humanos. Talvez, para muitos dos leitores deste livro, o que nos é contado seja uma autêntica surpresa. Puppinck dá nomes às abordagens. Jacques Maritain, Julian Huxley, Charles Malik, entre outros, passarão, depois da leitura desta obra, a ser ‘representantes’ dos ‘lençóis freáticos’ (a expressão é minha!) em que bebem as duas mais significativas formas de ‘ler’ os direitos humanos: Maritain e Malik, uma leitura personalista; Julian Huxley (irmão de Aldous Huxley, autor de ‘Admirável Mundo Novo’), preconizador de uma leitura materialista e ‘desvinculada’ da natureza.
Como tão bem evidencia Puppinck, ‘havia duas conceções de Homem e da sua dignidade em concorrência. Segundo uma delas, o Homem é filho, é portador de uma natureza e recebe a sua dignidade Deus ou da natureza; de acordo com a outra, o Homem é pai de si próprio e autor da sua dignidade. A oposição entre estas duas abordagens, encarnadas, respetivamente, por Jacques Maritain e Julian Huxley, é radical; estamos perante duas conceções que geram dois movimentos opostos. A dignidade encarnada realiza-se no cumprimento, por cada pessoa, da sua natureza humana, por exemplo, no facto de ter filhos, de os educar adequadamente, de assumir as suas responsabilidades; pelo contrário, a dignidade desencarnada consiste numa libertação ou numa ultrapassagem, por cada pessoa, da sua própria natureza. Resumindo: a dignidade encarnada consiste em ser plenamente criatura, e a dignidade desencarnada em ser criador de si próprio. Segundo se opte por uma ou por outra conceção do Homem, os direitos do Homem seguem direções muito diferentes, sendo expressão, num caso, do direito natural, e no outro, da vontade.’ (p. 53)
Estas duas linhas emergirão e submergirão, na interpretação dos ‘Direitos Humanos’.
Os sinais diante de nós são inquietantes, pois o avolumar da interpretação ‘huxleyana’ tem favorecido uma abordagem dos direitos humanos que os desvinculam da natureza humana, fazendo-os radicar numa interpretação voluntarista do ser humano (a vontade do indivíduo é que é o novo soberano e a fonte da ‘moralidade’ e fundamento dos direitos humanos). A essência da vontade é ser ‘arbitrária’, desencarnada, desenraizada. O ‘Homem’ da linha ‘huxleyana’ é um ser sem memória, sem vínculos corpóreos: o corpo é um apêndice, um acrescento não humano, como se fosse possível pensar-se o indivíduo sem história, sem uma dimensão visível, tocável. O ‘Homem’ da abordagem huxleyana é só ‘anima’, ‘espírito’, não é corpóreo. É, por isso, que a linha huxleyana aceita o ‘aborto’ (o ‘monte de células’ não é humano…), a eutanásia (matar o corpo não é, para um huxleyano, matar o humano), o eugenismo (eliminar o deficiente faz parte de uma ‘libertação’ de um corpo que prende e corrompe a dignidade), as ‘barrigas de aluguer’ (‘importa é progredir, pois as vivências corpóreas não deixam marca’, parecem dizer, em surdina, os huxleyanos), etc.
Puppinck evidencia-nos, com descrições factuais (São inúmeros os processos judiciais que correram no tribunal europeu dos direitos humanos que são aqui recordados. Em muitos deles, participou o próprio autor.), como, decisão após decisão, os tribunais dos direitos humanos, ao arrepio do respeito pela subsidiariedade (que deveria reconhecer, em muitos dos casos, a incompetência das instâncias internacionais para se sobreporem à soberania dos Estados) que tinham sido constituídos para nos protegerem das ideologias que pretendiam manipular-nos e justificar as ofensas contra a dignidade humana, (originariamente compreendida como assente numa natureza definida como unidade de ‘corpo-alma’), têm sido, eles mesmos, os catalisadores de uma ‘evolução’ interpretativa que está a criar um novo ‘tipo de Homem’ merecendo críticas de inúmeros países que ameaçam, inclusive, desvincular-se da sua tutela. (Vale a pena, a título ilustrativo, recordar como diversas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tomadas pelas secções deste Tribunal, e pretendidas como definitivas, vieram a ser anuladas, posteriormente, pelo plenário do Tribunal, muitas vezes, porque os Estados ameaçaram desvincular-se da tutela do Tribunal, ou porque a pressão internacional evidenciou o absurdo da primeira decisão. Entre os casos, o que previa que os Estados fossem proibidos (em decisão de 2009), apesar de decisões nacionais contrárias, de ter símbolos cristãos nas escolas e espaços públicos. O plenário do tribunal reverteu, em 2011, essa decisão, reconhecendo a legitimidade dos Estados, subsidiariamente, decidirem sobre ter ou não tais símbolos, de acordo com a história e especificidade de cada povo e cultura.)
No fundamental, está em causa uma compreensão dos Direitos Humanos que os entende num registo individualista, espiritualista e gnóstico (a corporeidade é, segundo esta perspetiva, desprezível, e deve ser superada), contribuindo para o emergir de um transumanismo que se constitui como o corolário de uma contradição a denunciar: os direitos que se tinham definido como ‘humanos’ (defensores da humanidade e do ser «humano») conduziram, afinal, à ‘desumanização’ e à recusa do humano, através do ‘transumano’.
Os sinais que deverão inquietar-nos, perturbar-nos, acordar-nos, estão diante de todos.
Puppinck, através das inúmeras descrições sobre como se foi criando este ambiente tóxico e sufocante, mas também através das histórias dos sucessos na proteção da autêntica natureza humana, conduz-nos ao reconhecimento de que os cidadãos, reunidos e ativos, podem travar a vertigem que parece ter tomado conta dos que deveriam proteger-nos.
O autor descreve, em muitas das páginas, os ‘bastidores’ das decisões, evidenciando que não estamos diante de um processo irreversível, ‘espontâneo’, impossível de travar, como se se tratasse de algo ‘natural’ e fatalmente esperável. Há ‘rostos’, ‘nomes’, ‘organizações’, intenções determinadas na raiz das mudanças a temos assistido. Muitas delas, já prenunciadas, antes mesmo de estes movimentos terem o poder que hoje têm. Nomes como os de Margaret Sanger (no início do século XX) e Judith Butler (em meados do mesmo século) diziam pretender o que, hoje, está a ser levado por diante por agendas economicamente muito poderosas e mediaticamente muito sustentadas.
Puppinck, com a coragem de quem não teme ser cilindrado pelos que propõem um ‘novo Homem’, denuncia, neste livro, a construção desse utópico futuro, evidenciando que o ideário de um mundo de perfeitos (sem corpo e sem limites) nos conduzirá a uma sociedade onde as reais diversidades (as que nascem de termos origens diversas, culturas diversas, condições diversas, mas que a dignidade torna comuns) se extinguirão, ficando apenas um homem perfeito, tecnologicamente concebido, desumanizado, porque desenraizado.
Como recorda em vários passos do livro, o rei Ubu (personagem de livro de Alfred Jarry) é ridículo, absurdo, e vai nu. Deixou de estar vinculado à sua natureza, tornando-se ‘desnaturado’ (em português, a ambiguidade semântica dá força ao título: o ‘desnaturado’, desvinculado da natureza, é um vadio, um errante, um ser ‘deserdado’ da humanidade… um ‘desnaturado’, enfim!)
Continuarão a existir crianças que denunciem a nudez do rei?
Com Puppinck, poderemos contar… E com os seus leitores?
Na mesma página que o autor (citações)
‘Passados 70 anos da Declaração Universal, os direitos do Homem invadiram o imaginário político e o universo jurídico; e revolucionaram as instituições, quer as nacionais, quer as internacionais, impondo uma moral universal centrada nos direitos individuais por meio da malha cada vez mais apertada duma rede de instituições encarregadas de obrigar todos os seres humanos a respeitá-los. No século XX, os direitos humanos tornaram-se uma filosofia universal que exprime uma conceção do Homem. Este livro procede a uma análise dessa conceção do Homem mediante uma análise dos seus direitos. Para tal, compara a intenção original dos redatores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, patente nos arquivos de 1948, com a interpretação evolutiva que dela foi sendo feita pelas instâncias internacionais.’ (Prefácio, p. 7)
‘[…] o que pretendo partilhar não é tanto uma crítica quanto uma visão da evolução atual e futura do Homem que está presente nos direitos do Homem. Mais precisamente, este livro descreve a passagem dos «direitos do Homem» de 1948 aos «direitos do indivíduo» dos últimos 20 anos, a que se seguiram os «direitos transumanos» atualmente em formação. Essa evolução reflete a evolução da relação entre o Homem e a natureza. Assim, enquanto os direitos do Homem de 1948 refletiam direitos naturais, a afirmação do individualismo gerou novos direitos antinaturais, como os direitos à eutanásia e ao aborto, que levaram, por sua vez, à emergência de direitos transnaturais ou transumanos, que garantem atualmente o poder de redefinir a natureza, como o direito ao eugenismo, o direito aos filhos e o direito a mudar de sexo. A um nível mais profundo, esta evolução dá testemunho de uma grande transformação na conceção da dignidade humana, que tende a ficar reduzida exclusivamente à vontade individual, ou ao espírito, por oposição ao corpo, e que encara a negação da natureza e dos seus condicionamentos como uma libertação e um progresso. Finalmente, este livro mostra de que forma os atuais direitos do Homem acompanham o transumanismo e promovem a ultrapassagem da democracia representativa. Terminada a análise, aquilo que pergunto é que aspetos do Homem merecem ser protegidos, ou seja, em que consiste a nossa humanidade.’ (Prefácio, p. 9)
‘O amplo consenso de que é alvo a noção de dignidade esconde uma discordância de fundo quanto ao significado desta noção. A despeito do seu êxito, a dignidade não deixou de suscitar debates, que são alimentados pela imprecisão da sua definição e da sua justificação, a ponto de haver quem considere que ela não passa de um slogan, por ser um conceito impreciso que visa dissimular a ausência de um fundamento objetivo dos direitos do Homem e que, em última análise, não passa de uma noção «inútil», que seria preferível abandonar em benefício da clareza do direito. Assim, a noção que pretende fundar teoricamente o edifício dos direitos do Homem, e depois o edifício do ideal democrático, continuar a ser contestada não só na sua existência e no seu significado, mas até na sua realidade.’ (p. 36)
‘Havia duas conceções de Homem e da sua dignidade em concorrência. Segundo uma delas, o Homem é filho, é portador de uma natureza e recebe a sua dignidade Deus ou da natureza; de acordo com a outra, o Homem é pai de si próprio e autor da sua dignidade. A oposição entre estas duas abordagens, encarnadas, respetivamente, por Jacques Maritain e Julian Huxley, é radical; estamos perante duas conceções que geram dois movimentos opostos. A dignidade encarnada realiza-se no cumprimento, por cada pessoa, da sua natureza humana, por exemplo, no facto de ter filhos, de os educar adequadamente, de assumir as suas responsabilidades; pelo contrário, a dignidade desencarnada consiste numa libertação ou numa ultrapassagem, por cada pessoa, da sua própria natureza. Resumindo: a dignidade encarnada consiste em ser plenamente criatura, e a dignidade desencarnada em ser criador de si próprio. Segundo se opte por uma ou por outra conceção do Homem, os direitos do Homem seguem direções muito diferentes, sendo expressão, num caso, do direito natural, e no outro, da vontade.’ (p. 53)
‘Durante todo o período das negociações que terminaram com a assinatura, em Londres, a 5 de maio de 1949, do Estatuto Fundador do Conselho da Europa, os Estados discutiam a referência ao cristianismo e à religião no preâmbulo do mesmo. Numa versão inicial do estatuto, inspirada no congresso de Haia, os governos declararam, logo na primeira frase, que fundavam o Conselho da Europa «com a força do comum compromisso dos seus povos com as liberdades individuais garantidas pelas tradições da sua civilização cristã e pelas suas instituições políticas». A referência à «civilização cristã» respondia diretamente ao pedido de Pio XII, mas foi substituída por uma referência aos «valores religiosos e morais», que acabou por ficar reduzida aos simples «valores espirituais e morais que são o património comum dos seus povos». Deste modo, o fundamento da unidade europeia foi desmaterializado, passando de político-religioso, enraizado na história e na geografia, a indefinido. A sugestão de referir «a caridade» e «a dignidade e o valor da pessoa humana» entre os valores fundadores do Conselho da Europa também não vingou. Os únicos valores explicitamente reconhecidos no «Preâmbulo» são, pois, os valores – inteiramente liberais – da liberdade individual, da liberdade política e da preeminência do direito.
Nas Nações Unidas, aconteceu sensivelmente a mesma coisa. Durante a redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, houve vários representantes de países – nomeadamente, os do Brasil e os da Argentina – que solicitaram que ficasse registado no artigo 1.º que «o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus»; pretendiam assim afirmar que a «origem absoluta» do Homem e dos seus direitos não é o Estado, mas Deus, por considerarem que a causa das crises totalitárias pelas quais passavam as sociedades era a perda da ligação a Deus. Além disso, esses países estavam convencidos de que o reconhecimento de Deus refletiria bem melhor os desejos e as esperanças dos povos do que a expressão de uma «filosofia agnóstica estéril», para além de refletir a fé religiosa da maior parte da humanidade. Os seus esforços foram, contudo, contrariados pela viva oposição dos representantes da China e da URSS.’ (pp. 56-57)
‘Na prática […] os direitos do Homem não vogam acima da política; pelo contrário, transformaram-se num campo de batalha ideológico, e o seu conteúdo é tudo menos imutável. […] O desejo de conferir personalidade ao Homem dos direitos do Homem, considerando-o no contexto do seu meio familiar, profissional e religioso, não permitiu corrigir o problema original dos direitos do Homem: serem e continuarem a ser fundamentalmente um instrumento ao serviço dos indivíduos, e contra duto aquilo que lhes resiste. A partir de 1948, o verniz personalista de que tinham sido revestidos vai estalando progressivamente sob a pressão do individualismo: o desejo de afirmação de si é mais forte do que o gosto pela harmonia, e é em nome dos novos direitos do indivíduo que os direitos da pessoa, consagrados em 1948, são hoje contestados. […]’ (pp. 66-67)
‘O que foi que aconteceu aos direitos do Homem, para que povos que viveram tanto tempo oprimidos os rejeitem desta maneira, vendo neles uma nova opressão, um perigo mortal para as suas civilizações? O que aconteceu foi que se tornaram um poder antidemocrático e um solvente da pertença familiar, religiosa, cultural e nacional, uma coleção de (falsos) direitos individuais ao deboche e à morte. Atualmente até a Igreja desconfia deles, tendo recuperado críticas antigas. Os muçulmanos desprezam-nos; pior, ainda, redigiram uma Declaração Islâmica dos Direitos do Homem (1990), fundamentada na lei islâmica, à qual a Liga Árabe foi buscar inspiração para redigir, em 2004, a sua Carta Árabe dos Direitos do Homem. Por sua vez, a Associação das Nações da Ásia e do Sudeste Asiático (ASEAN) seguiu-lhe o exemplo, adotando, em 2012, uma Declaração dos Direitos do Homem da ASEAN. Estas declarações particulares foram criticadas pelo Alto Comissariado para os Direitos do Homem da ONU, pelo facto de serem, pelo menos em parte, contrárias às normas das Nações Unidas. A verdade é que os direitos do Homem não cumpriram as promessas do personalismo; e é natural que assim seja, uma vez que não havia nenhuma autoridade que os obrigasse a isso. Deste modo, o revestimento personalista, que conferia alguma consistência ao Homem dos direitos do Homem, foi erodido pela usura das reivindicações, deixando à vista um ser nu, desencarnado.’ (p. 72)
‘Foi em 1992 que o Tribunal Europeu decidiu alargar a esfera da intimidade para além do «”círculo íntimo” no qual cada um pode conduzir a sua vida pessoal a sua grado», passando a «englobar, em certa medida, o direito de o indivíduo alimentar e desenvolver relações com os seus semelhantes». A vida privada/intimidade passou então a ser a vida privada/liberdade inspirada na privacy americana; deste modo, a vida privada deixou de ser a vida vivida na intimidade familiar (da qual a sociedade está privada), passando a ser a liberdade que cada um tem de agir, em todas as circunstâncias, em conformidade com o seu foro interno, ou seja, a liberdade de ser si próprio. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha dado este passo em 1965, considerando que a proibição da contraceção era um atentado à vida privada. E foi também esta nação alargada de vida privada que permitiu impor, em 1973, a legalização o aborto, na sequência do caso Roe vs. Wade; nessa altura, um juiz americano apresentou uma definição significativa da vida privada: «Facto moral segundo o qual a pessoa pertence a si própria e não aos outros, nem à sociedade considerada no seu todo». Foi, portanto, da afirmação da primazia da pessoa que resultou o alargamento da vida privada em detrimento da sociedade.’ (pp. 80-81)
‘[…] o individualismo vai-se alargando, absorvendo para o foro interno sucessivos elementos do foro externo, e fazendo aumentar a liberdade individual. Este alargamento começou por incidir sobre os primeiros círculos que rodeiam o foro interno, procedendo à privatização da religião, da consciência, do corpo, da família da sexualidade, da procriação, da morte e das relações sociais, até alcançar quase toda a existência.’ (p. 82)
‘Ao longo dos tempos, o direito ignorou sempre os laços sentimentais em benefício dos laços matrimoniais, a fim de melhor poder apoiar estes últimos; ultimamente, porém, optou, de forma idealista, por fazer dos sentimentos o aspeto essencial da consistência da família. De passagem, esta foi também subjetivada, recebendo a designação de «vida familiar». Assim, inicialmente, a convenção protegia a vida familiar entendida como vida da família; atualmente, pode haver vida familiar sem família, uma vez que a expressão «vida familiar» designa apenas o afeto que várias pessoas têm umas pelas outras, e que passou a merecer o reconhecimento e a proteção da sociedade.
Com efeito, a princípio, a vida familiar pressupunha «a existência de uma família» fundada no casamento ou resultante de uma filiação, mesmo que natural; progressivamente, contudo, o tribunal foi-lhe retirando a consistência objetiva, acabando por reconhecer a existência de vida familiar desde que existam «laços pessoais forte» ou «laços pessoais efetivos» entre adultos e crianças, mesmo na ausência de qualquer laços biológicos ou jurídicos, ou entre dois adultos, sejam de que sexo forem, mesmo na ausência de casamento, de filhos ou sequer de coabitação: basta que duas (ou mais) pessoas declarem que mantém uma relação afetiva ou sexual para beneficiarem do reconhecimento e da proteção que é concedida pela sociedade às famílias.’ (pp. 89-90)
‘A vida privada perdeu por completo os limites e a família perdeu a consistência; uma e outra passaram a ser dominadas pelo espírito individual, o espírito da subjetividade. É deste domínio, deste reino do indivíduo, que emergem uma nova legitimidade e um novo soberano, soberano esse que será, por sua vez, fonte de novos direitos.’ (p. 91)
‘A recusa da natureza humana resulta na recusa da moral, pensada como o caminho para a realização da pessoa. Isolada da natureza, a moral transforma-se em moralismo, constituindo um obstáculo social ilegítimo à liberdade individual. O papel dos direitos do Homem é, então, destruir esse obstáculo, que o mesmo é dizer, no fundo, destruir a ontologia realista que deteta uma sabedoria (um nomos) na natureza.’ (p. 101)
‘O Tribunal Europeu perdeu de tal maneira o sentido da moral natural que não admite que esta possa justificar, por si mesma, a proibição de qualquer prática que o mesmo tribunal considere que entra no campo da vida privada. Deste modo, declarou que «as considerações de ordem moral, ou relativas à aceitabilidade social das técnicas em questão, não podem justificar, por si sós, a proibição total deste ou daquele método de procriação assistida, neste caso, a doação de óvulos», porque o desejo de ter um filho releva da vida privada. O tribunal deixou, pois, de aceitar qualquer tipo de interdição moral absoluta no campo da vida privada, e condena sistematicamente os Estados a instaurarem procedimentos que permitam, pelo menos, solicitar uma derrogação. Foi neste quadro que o tribunal condenou a proibição absoluta, por parte da Alemanha, do suicídio assistido.’ (pp. 102-103)
‘O que tem valor já não é tanto a vida, mas a vontade individual.’ (p. 109)
‘Deste modo, e segundo o tribunal, o respeito pelo direito à vida consiste apenas no respeito pela livre vontade das pessoais, que é simultaneamente a origem e a condição do direito ao suicídio. A objetividade do respeito pelo direito à vida é absorvida pela subjetividade da vontade.’ (p. 110)
‘Sendo impossível determinar o começo da vida humana, este torna-se, na perspetiva do tribunal, uma simples «noção», suscetível de uma «pluralidade de opiniões […] entre os diferentes Estados-membros». Significa isto que o começo da vida humana, isto é, aquilo que faz com que um ser seja humano, é subjetivo e relativo. É realmente o cúmulo, um Tribunal dos Direitos Humanos não saber o que é um homem!’ (p. 120)
‘A ideia de que o aborto é uma liberdade afirmou-se, portanto, com a erosão da consciência do valor da vida humana pré-natal e a correlativa afirmação do valor da vontade individual. Mas este duplo movimento é um só, e consiste na opção filosófica fundamental pelo crescente controlo do ser por parte da vontade, numa cultura que perdeu a sua inteligência metafísica, ou seja, a compreensão da identidade e do valor do ser propriamente dito. Esta opção resulta do abandono dos resquícios de metafísica que ainda revestiam de uma certa dignidade a vida humana pré-natal.’ (p. 124)
‘[…] do ponto de vista materialista, a eutanásia e o aborto não matam a pessoa, mas apenas um corpo, e são atos moralmente bons porque o prosseguimento daquela vida seria absurdo, contrário à evolução, e um fardo inútil para a sociedade.’ (p. 127)
‘’Esta oposição entre espírito e corpo consistiu inicialmente na afirmação da independência radical do desejo em relação à identidade sexual; depois, foi levada até à afirmação de uma independência da identidade sexual em relação ao próprio sexo. Deste modo, o desejo e a identidade sexual libertaram-se de todo e qualquer determinismo corpóreo e social, passando a ser objeto exclusivamente da subjetividade individual.’ (p. 130)
‘A ideia do direito a ter filhos foi durante muito tempo uma ideia chocante, porque se opõe à ideia de que um filho é um fruto do amor, um dom da natureza e de Deus. No direito, esta ideia é contrária ao princípio da inalienabilidade da pessoa humana, segundo o qual, desde a abolição da escravatura, deixou de ser possível, em teoria, ter direitos sobre uma pessoa; só se pode ter direitos sobre coisas. Significa isto que reconhecer o direito a ter filhos reduz as crianças a objetos do desejo dos adultos, um pouco como os animais domésticos que se pode comprar; note-se, aliás, que o direito a ter filhos é frequentemente acompanhado por uma transação financeira em benefício das clínicas de procriação medicamente assistida, bem como das agências de maternidade de substituição e de adoção.’ (P. 134)
‘[…] não é raro os governos quererem ser condenados por Estrasburgo, porque isso lhes permite justificar, perante as suas próprias opiniões públicas, a adoção de medidas que são impopulares.’ (p. 139)
‘De todos os casos de maternidade de substituição, o caso Paradiso e Campanelli era o mais escandaloso, e portanto o mais contestável [o tribunal, em primeira instância, tinha condenado a Itália por ter retirado a criança ao casal que tinha pagado 49 mil euros por ela, mas a decisão veio a ser revertida pelo plenário, após contestação.], dado que «a criança foi efetivamente vítima de tráfico de seres humanos: foi encomendada e comprada pelos requerentes».
Finalmente, por 11 votos contra seis, o Tribunal Pleno recusou-se a identificar uma «vida familiar» neste caso, tendo em consideração, em particular, a ausência de relação genética e o breve período de coabitação, e declarou mesmo que a convenção «não protege o simples desejo de fundar uma família». Mais: o tribunal considerou legítimo que essa criança fosse retirada, uma vez que «aceitar que a criança ficasse com os requerentes […] era o mesmo que legalizar a situação por eles criada, em violação de importantes regras do direito italiano». Com esta decisão, o tribunal conferiu aos Estados uma certa capacidade para se recusarem a ratificar as maternidades de substituição praticadas ao arrepio da lei, mas apenas quando não se constata a existência de uma vida familiar entre a criança e os adultos.’ (p. 139)
‘O reconhecimento do direito de aceder às técnicas de eugenismo negativo [impedir de nascer os que possuem malformações] deverá conduzir, no futuro, ao direito ao eugenismo positivo [manipular geneticamente, de modo a impedir a existência total de malformações].’ (p. 191)
‘Percebemos claramente […] que o progresso das biotecnologias está a suscitar desejos cuja realização é depois reclamada como um direito’. (p. 192)
‘O transexualismo é outra manifestação de transumanismo, na medida em que deixou de ser uma patologia, apresentando-se agora como uma liberdade – a «liberdade morfológica» reivindicada conjuntamente pelos militantes LGBTI e pelos transumanistas. Na verdade, a corrente LGBTI está na vanguarda da corrente transumanista, uma vez que é inteiramente motivada pelo ideal de liberdade relativamente ao corpo; deste modo, qualquer progresso de uma serve a outra.’ (p. 193)
‘Em 1919, Margaret Sanger, a fundadora do planeamento familiar, explicava que o controlo da natalidade «abre caminho ao eugenismo e preserva a ação deste»; é «a via de entrada para os educadores eugenistas». E tinha razão. Para Huxley, «são amplíssimas as possibilidades que se abrem» se a sociedade conseguir separar a função sexual da função reprodutiva».’ (p. 194)
‘Não é excessivo qualificar este sistema de totalitário, na medida em que impõe o respeito por uma moral cujo conteúdo é definido por ele próprio.’ (p. 209)
‘Em 1948, esses direitos foram definidos com base na natureza humana; atualmente, não existindo uma natureza humana, é o Homem que é definido com base nos direitos; o que significa que estes definem, a um tempo, o sujeito e o conteúdo dos direitos.’ (p. 209)
‘Algumas famílias cristãs que desejavam adotar crianças também deixarem de poder fazê-lo por terem reservas a respeito da homossexualidade. Uma consequência imprevista desta decisão de excluir os cristãos foi que os órfãos deficientes passaram a ter muita dificuldade em encontrar famílias de acolhimento; com efeito, o respeito pelas pessoas deficientes que leva os médicos a não as abortar é o mesmo que leva algumas famílias a acolhê-las.’ (Nota 440, p. 209)
‘[…] os novos direitos transformam-se em sobredireitos, porque são direitos sobre-humanos.’ (p. 219)
‘[…] é possível contrariar a ideologia liberal dominante através de uma mobilização política e religiosa.’ (p. 247)
‘Em janeiro de 2012, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, afirmava no Conselho da Europa que «chegou o momento de colocar algumas perguntas sérias a respeito do funcionamento do tribunal», convidando esta instituição a não «minar a sua própria reputação» com o seu ativismo; e insistia na necessidade de reformar o Tribunal Europeu, para que ele fosse «fiel à sua finalidade original». Três anos depois, o mesmo David Cameron decidiu, juntamente com o Partido Conservador , «cortar os laços entre os tribunais britânicos e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos», dando a última palavra ao Supremo Tribunal do Reino Unido; este passo foi apoiado por altos magistrados britânicos, que censuravam o ativismo antidemocrático do Tribunal Europeu.’ (p. 248)
‘A caridade não se exerce em sonhos de poder nem em discursos; encarna na realidade da existência. Temos de ter a graça de desejá-la por si mesma. Perante as novas desmesuras que ameaçam a nossa humanidade, o que é próprio do Homem, o que deve ser preservado e cultivado, não é o poder desencarnado, mas precisamente o oposto: a caridade encarnada.’ (p. 258)