domingo, novembro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 18 | Mistério na casa da Mata

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



- São mesmo estreitos estes degraus! Não admira que o pai aqui tenha caído, segundo nos conta, nas vésperas da sua primeira comunhão.
- Outros tempos! Se fosse hoje, teríamos memórias fotográficas das inúmeras mazelas com que terá ficado. – Atalhou M. – Mas, desses tempos, só nos ficaram as palavras contadas.
J. e M. percorriam o passado, visitando-o do cimo das estreitas escadas que levam até à primeira leira da casa da Mata, uma humilde casa de aldeia, da cor do salmão, com rés-do-chão e primeiro andar. Como em todas estas simples moradias de camponeses, no andar térreo, havia um modesto lagar, onde, segundo recordavam as memórias repetidas vezes narradas, se chegara a dormir de tanto cansaço.
Uma exterior escada de pedra levava à parte nova da casa, onde se acrescentaram pequenos quartos para visitas, cujo chão era de soalho. Tudo rangia. Como o tempo entre as articulações de um homem.
A água, sempre farta, corria, sem se deter, no pequeno tanque repousado sobre um eternizado lamaçal. Lugar perfeito para um robusto tapete de marias-moles, deleite desejado dos galináceos que por ali cirandavam.
Ao fundo, percorridas algumas leiras e atravessada a estrada, o rio! Lento e demoradamente atento. O rio de todas as memórias, de hoje, do passado e do futuro. Um rio é sempre um reservatório de memórias. Se não das vetustas, das vindouras. Pois não há nascente que não apele a uma foz. Disso se faz um rio.
Do cimo das escadas, ouvia-se, por isso, o som do rio. Não agreste, pois aquele não é o lugar de um leito rápido. Antes o de uma prolongada estadia. O Vouga gosta daquela margem de Pessegueiro e ali se deleita… Era, por isso, um lugar de espera e de misteriosos aconteceres.
O Rio demorava-se e fazia-se sentir como serena voz das esperas. De todas as esperas. As que se viam, mas, principalmente, as que ouviam, sem que as vissem os olhos.
Um tal esperar-se o tempo que se alonga não podia senão ecoar no modo de ser. O modo próprio do ser da Mata.
- Como dizia, tantas vezes, a avó, duas pessoas da Mata podiam sair para a missa sem partilharem, até aos ‘Santos’, uma palavra que fosse. – Gracejou J. – Mas confiavam umas nas outras, como cegos firmes na mão que os leva.
E silenciou-se, enquanto colhia pequenas violetas nascidas na sempre humedecida terra que repousava sobre o muro em que se encostavam aqueles degraus que davam para um pequeno curral.
- Não era ali que estavam os coelhinhos que o pai nos disse que o levara a querer descer, apressadamente, estas estreitas escadas, quando pequeno? – Recordou M., apontando para a porta velha e mal fechada que deixava adivinhar uma longa história de sucessivas ninhadas de láparos.
Uma luz, atravessando as já pronunciadas frestas daquela enrugada porta, fez parar a narrativa de M.
J. continuava distraído, de olhos abertos, a apanhar violetas.
Erguendo-se, como que seduzida por uma voz misteriosa, M. encaminhou-se para o fundo dos degraus.
A medo, de olhos arregalados e cheios de mistério, abriu, pouco decidida, a porta que resistiu à sua parca força.
Nada!
A luz apagou-se.
Regressou ao lugar donde saíra.
- O que te mordeu? – Perguntou, com um certo tom de malícia, J. – Havia coelhos em ninhada?
E voltou a dirigir os olhos para o que estava a fazer.
M. ficou, porém, incomodada. Estava certa de ter visto uma luz. A reação do irmão deixara-a com a certeza da sua incompreensão. Decidiu, por isso, dispensar-se de lhe contar.
Estava, porém, entre estes pensamentos quando voltou a parecer-lhe que algo luminoso parecia emergir do interior daquele sombrio curral.
- J., estás a ver o mesmo que eu?
J. ergueu os seus olhos das violetas e tentou perceber o que M. via.
Era ele, agora, que estava atónito.
De um salto, pôs-se junto à porta, de olhos assombrados. Abriu-a e, tal como acontecera com M., a luz extinguiu-se.
Sem jeito, com mãos e pés trocados, subiu os degraus até junto da irmã.
O seu respirar era tão trôpego como o seu andar.
- Porque se apaga a luz quando abrimos a porta? Assusta-me isto.
Encostaram-se um ao outro, à espera de que mais alguma coisa acontecesse.
Nisto, nova luz emergiu.
M., mais corajosa, decidiu-se a enfrentar aquele mistério.
Compassadamente, aproximou-se da porta. A luz continuava intensa. Abriu, com cuidado, a porta. À medida que a abria, a luz ia diminuindo de intensidade.
Decidiu voltar a fechá-la.
A luz voltou a robustecer-se.
Percebeu que, se abrisse a porta, não conseguiria que a luz se mantivesse acesa.
Fechou, por momentos, os olhos para pensar, voltando costas à porta, a que se encostou.
Sem se aperceber, de olhos cerrados, uma ligeira brisa abriu, vagarosamente, a porta.
A luz mantinha-se acesa. Para J., porém, a luz extinguia-se.
Só para M. se mantinha a luz acesa, que se voltou para o interior do curral.
De olhos fechados, via que a luz iluminava aquele modesto espaço, que ganhava vida.
Um vulto estava sentado a um canto, num pequeno mocho, de queixo repousado sobre um velho cajado.
M. conservava os olhos fechados. Via, assim, toda aquela cena. Do cimo das escadas, J., confundido, nada percebia daqueles eventos. Aquele recanto era, para ele, apenas breu.
O homem, sentado no mocho e de queixo pousado sobre o velho cajado, sussurrou ao ouvido de M.:
- Só de olhos fechados se pode ver a verdade de um homem.
M. abriu os olhos e tudo foi devolvido à escuridão.
Subiu as escadas, até junto do irmão.
M. brilhava. Todo o seu rosto, o seu corpo era luz.
Abraçou o irmão, deu-lhe um suave beijo no rosto e pediu-lhe:
- Olha para mim… Não! De olhos fechados!...


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

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