terça-feira, agosto 27, 2019

O mito da mudança sempre ditosa



A sociedade portuguesa vive sob o peso de um mito que nos tem levado a adotar medidas que a história demonstrará não serem acertadas sendo que, nas próprias circunstâncias, já havia elementos para concluir que o caminho não era por ali. O peso desse mito é, porém, tão opressivo que a ousadia de alertar para a sua influência é logo arredada, sob a suspeita de se estar perante mais um indivíduo padecente de uma qualquer teoria da conspiração.
Mas o mito existe e é eficaz.
Esse mito pode definir-se como a «convicção da permanente bondade de toda a mudança». Aliás, é frequente ouvir-se que ‘mudar é sempre bom’.
Uma certa forma de relatar a história parece dar razão aos que defendem que esse não é um mito, mas uma constatação a aceitar sem reticências. A força impressiva do relato de como se foram conquistando terrenos ao inculto território do desrespeito dos direitos humanos parece somar razões a essa convicção.
Há, porém, que ler com atenção a história. Nem toda a mudança foi sempre no sentido da humanização e da realização máxima das possibilidades da humanidade. Um dos casos mais exemplares de como o caminho nem sempre foi de conquista e de que o ‘progresso’ nem sempre significou crescimento da humanidade é o que se esconde por detrás das decisões políticas eugénicas, nos inícios do século XX, em nome da ciência e da aplicação das possibilidades que as descobertas da genética colocavam na mão dos decisores políticos. Essa é uma história poucas vezes contada, mas que importa fazer emergir à memória viva para que, antes das mudanças, se tenha a coragem de formular a pergunta sobre se crescemos como humanos ao tomar determinada decisão.
O eugenismo não foi, contrariamente ao que se pretende fazer crer, um exclusivo do nazismo. A prática infame deste regime totalitário foi sendo ‘preparada’ por todo o mundo através de um real efeito de «rampa deslizante» que começa com o inebriamento perante as conquistas que a descoberta da seleção natural (em meados do século XIX) proporcionava quanto ao conhecimento sobre como funcionava a evolução das espécies até às descobertas de como manipulando a genética se poderia melhorar determinada espécie. Perante o fascínio legítimo que a ciência ia proporcionando, logo foram emergindo cenários de oportunidade quanto à sua aplicação à humanidade. E o que poderia haver de melhor do que tornar a humanidade perfeita, num momento em que, afinal, já podíamos dispor de meios técnicos para isso? Este tinha sido o momento certo para constatar o que a ética personalista recorda, permanentemente: a da não coincidência entre ‘poder fazer’ e a ‘legitimidade ética para o fazer’ (‘dever fazer’). Quando se perde esta noção, tudo se torna resvaladiço.
Somou-se a isto um outro dado. A relativização do conceito de dignidade.
É curioso constatar, com André Pichot, no seu livro ‘o eugenismo: geneticistas apanhados pela filantropia’, que o eugenismo quase não se manifestou, neste período de final do século XIX até meados do século XX, em países católicos, dado o reconhecimento de que a dignidade humana confere caráter de inviolabilidade a todos e cada ser humano. Nos países anglo-saxónicos, de influência liberal mais acentuada, o eugenismo ganhou terreno significativo, como é particularmente contado por Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos’
Como conta este autor, no referido livro, que replico em ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’ (livro editado pela Tempo Novo), «em 1901, o Estado do Indiana, nos Estados Unidos da América, aprovou a primeira lei de esterilização obrigatória dos deficientes mentais, criminosos e violadores. Entre 1910 e 1935, trinta Estados da União apresentavam, no seu quadro jurídico, leis de esterilização obrigatória. A lei da restrição da imigração (Immigration Restriction Act) de 1924 limitava a entrada nos Estados Unidos de sujeitos provenientes do Leste ou do Sul da Europa por serem considerados «biologicamente inferiores», enquanto favorecia a admissão de pessoas provenientes do Norte e Oeste da Europa. Não se confinando a este período, houve Estados que mantiveram leis e políticas de atuação eugénica até períodos muito próximos de nós. Destaquemos o caso do Estado da Virgínia que manteve, até à década de 70 do século XX, práticas de esterilização compulsiva de doentes mentais, contribuindo, deste modo, para as cerca de 100000 pessoas que terão sido esterilizadas, nos Estados Unidos da América, invocando-se razões como as que invocara o Juiz Oliver Wendell Holmes, no processo «Buck versus Bell», de que resultou a esterilização de Carrie, que vivia com a respetiva progenitora e era, então, mãe de uma menina de 7 meses: «três gerações de imbecis são suficientes». […] «A América, o bastião da liberdade individual, esterilizou mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais com base em mais de 30 leis estaduais e federais aprovadas entre 1910 e 1935. Mas, embora a América fosse a pioneira, seguiram-se outros países. A Suécia esterilizou 60000. O Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia e a Islândia colocaram leis de esterilização coerciva nos seus livros e utilizaram-nas.» (Cfr. Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300).
Esta vertigem eugenística influenciou grande parte do mundo de então, «não lhe resistindo países como o Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia, a Islândia ou a Suécia, para além, naturalmente, da Alemanha Nazi que, em apenas dezoito meses, gaseou 70000 doentes psiquiátricos entretanto já esterilizados. (Cfr. estas e outras informações em Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300-301, e em Vidal, Marciano – Moral de Actitudes, II-I parte: Moral de la persona y bioetica teologica. Madrid: Editorial Perpétuo Socorro, 19918, pp.698-704).
Esta é uma história negra que deveria fazer-nos pensar. Mudar nem sempre é bom! Particularmente quando a mudança belisca a intocabilidade da dignidade humana.
Também a forma como os Estados ocidentais adotaram, de 1973 para cá, leis pró-abortistas é outra narrativa que a História demonstrará ser uma réplica do que já ocorrera, no início do século XX com as leis eugénicas. Mas a memória é curta.
O mito de que quem se opõe ou obriga a pensar perante estas mudanças é ‘Velho do Restelo’ entrou profundamente na mentalidade portuguesa, mas deveria ser articulado com um outro mito: o de Cassandra. Cassandra é uma figura da mitologia clássica que padece de uma maldição. Tem a capacidade de antecipar o futuro, mas está amaldiçoada com o impedimento de que os outros acreditem nela. Quando alerta os troianos para os perigos do Cavalo de Troia que os gregos lhes colocaram junto às muralhas, as suas palavras soam vãs e são rejeitadas pelos seus concidadãos que fazem com que os gregos entrem dentro da sua fortaleza através da armadilha por eles próprios montada. Quando os troianos dão conta de que Cassandra dizia verdade, já é tarde e os gregos tomam conta da cidade.
Não defendo a imutabilidade e o imobilismo, mas a abordagem crítica de todas as possibilidades, sem censuras nem preconceitos (os mais recorrentes, hoje, socorrem-se de epítetos como os de ‘conservadores’, ‘ultraconservadores’ ou outros termos de igual pendor) em particular porque toda a decisão e ação implica uma leitura ética. E, contrariamente ao que costuma pensar-se, nada há de mais progressista do que a ética, pois, perante uma possibilidade imediata de solução, a ética interroga sobre se, no futuro, essa opção se constituiu como uma resposta positiva ou se mais negativa do que a solução que pretendia ser, no momento imediato.
Veja-se o que significarão, no futuro, as aparentemente bondosas barrigas de aluguer, os filhos da reprodução heteróloga (com gâmetas de fora do casal), a educação num registo de ideologia de género que expressa uma falta de amor por si mesmo e pelo outro tal como é desde a sua origem, educando para a confusão e a indiferença, defendendo-se o absoluto da autodeterminação solipsista… veja-se o que significará cada uma destas opções quando cada um se sentir só, isolado, e num registo de conflitualidade progressiva. Aquilo que parecia ser bondosa solução afigurar-se-á como promotor de novos e mais entranhados conflitos. Nessa hora, já ninguém lembrará a voz de Cassandra, nem ali estarão já os que defenderam a bondade das decisões avulsas tomadas outrora.
Estes tempos exigem tempo, exigem ponderação. Decidir no meio da tempestade nunca foi sinal de sensatez. E estamos em tempos de tempestade. Há que ter a sensatez de não seguir rumos que se afigurem irreversíveis e sem retorno.
Mas quem quer ouvir Cassandra?

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