segunda-feira, maio 10, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) | Variações sobre a fé cristã…

 Inicio, com esta reflexão, uma rubrica dedicada ao estabelecimento de pontes entre a fé cristã e a racionalidade contemporânea. Decidi intitulá-la ‘intelligo quia credo’, integrando a longuíssima tradição teológica que se dispõe a compreender para melhor (e mais solidamente) acreditar (intelligo ut credam – compreendo para acreditar) e crer para, desse modo, melhor poder compreender (credo ut intelligam – creio para que possa compreender). A minha formulação recusa a, erroneamente atribuída a Tertuliano, ideia de que ‘credo quia absurdum’ (creio porque é absurdo). Tertuliano não pretendeu afirmar tal ideia que contradiz o seu enorme esforço intelectual de tornar credível, para os seus tão desafiantes tempos (ele que viveu entre finais do século II e inícios do III), mas a sua convicção de que a ressurreição era credível pelo seu carácter surpreendente (como se fosse algo impossível!), gerou a ideia de que defendia que a fé excluía a razão e era tanto mais ‘credível’ quanto mais absurda. Longe disso!

O pressuposto que seguirei, ao longo das minhas reflexões, será, exatamente, o de que fé e razão são, parafraseando João Paulo II em Fides et Ratio, como que duas asas que necessitam uma da outra para que possa assim voar o conhecimento humano.

Afirmo que ‘intelligo quia credo’: compreendo porque acredito. Não afirmo, aqui, um qualquer fideísmo ou uma apologética gratuita, mas antes prenuncio a constatação que venho fazendo de que, sem o horizonte que lhe abre a fé, o ser humano e o que é ser humano ficam em grave crise.

Não apenas uma crise constatável, sociológica e eticamente (talvez a revisão da história pudesse ser suficiente para sustentar a credibilidade dessa convicção), mas uma verificação ainda mais radical e fundamental.

 

O ateu que, por causa da ciência, negou e, depois, reconheceu a existência de Deus

Tomemos, para enunciar a tal crise em que ficamos sem a fé, o que nos mostrou, já em pleno século XXI, o pensamento de Antony Flew, autor que gosto de revisitar.

Fora, durante cerca de cinquenta anos, um dos grandes defensores do que poderíamos designar como ‘ateísmo epistemológico’. Entendo por ‘ateísmo epistemológico’ aquela posição que defende a inexistência de Deus como resultado da verificação de que o saber teológico foi suplantado pelo saber científico, ficando reduzida a cinzas a sua pretensão de verdade.

Essa fora a convicção de Antony Flew, até que, em 2004, a sua honestidade intelectual o levou a reconhecer que errara. Flew constatava, nessa altura, que o simples esforço de fazer ciência supunha, só por si, a possibilidade da existência de Deus. De outro modo, dizia, seria impossível fazer-se ciência. E explicou a sua conclusão.

Quem faz ciência parte de um princípio inabalável (axioma): há inteligibilidade no universo. Se não supuser a existência de inteligibilidade, ninguém fará ciência. Tudo será absurdo e impossível de estudar. Ora, tal pressuposto obriga a perguntar sobre a razão que justificará a existência de inteligibilidade no universo. Flew enuncia duas possibilidades: ou a inteligibilidade é fruto de acasos que se sobrepõem a acasos, numa cadeia quase infinita de casualidades (biliões de biliões de acasos que se concatenam de forma a gerar a inteligibilidade que é a condição para se fazer ciência); ou, então, diz Flew, há que supor que o universo corresponde à inteligibilidade que nele depositou, como condição, uma Origem inteligente e infinita que lhe concedeu, desde o primeiro momento, essa potencialidade de ser inteligível.

Face a estas duas possibilidades, Flew recorda um critério para se optar pela melhor. O critério recolhe-o da própria ciência que define, à luz do princípio designado como ‘navalha d’Ockam’, que a explicação mais simples para um fenómeno é a mais válida. Ora, com este critério, Flew pergunta qual a possibilidade mais simples e mais credível e conclui que supor a existência de uma Origem Inteligente como condição para compreender a inteligibilidade do universo é a hipótese mais plausível.

Com a mesma ciência com que rejeitara a possibilidade da existência de Deus, Flew concluiria, a partir de 2004 (em português, pode ler-se com muito interesse, o seu Deus não existe, editado pela Alêtheia), que essa existência é, afinal, a própria condição de possibilidade da mesma ciência. (Talvez a abrangência do mar o torne tão ‘opaco’ e improvável para o peixe, poderíamos nós concluir…)

 

Também a história do pensamento evidencia a crise do Humano sem Deus

No mesmo sentido que nos leva a concluir o raciocínio de A. Flew, também a história recente da filosofia parece demonstrar-nos a intrínseca relação entre a existência de Deus e a condição humana. Repare-se que, em finais do século XIX, Nietzsche afirmara, no seu livro A gaia ciência, que Deus morrera. (E não se referia à morte de Cristo na Cruz, mas à morte de Deus como Absoluto.) Afirmara-o em nome da liberdade humana; em nome do Homem. Mas, curiosamente, não foi preciso esperar muito mais de meio século para que a própria filosofia, pela pena de Michel de Foucault, viesse afirmar que o homem morrera. Deus morre, em Nietzsche; o Homem morre, em Foucault.

Estas constatações não pretendem ser, como atrás afirmávamos, apologia gratuita, mas interpelação.

Se não aponta para um horizonte transcendente a vida que levamos do berço até à tumba, quem é o ser que leva os andrajos com que se faz essa vida? Mas será, então, - dirão, alguns -, a fé apenas o fruto de uma necessidade de dar sentido à vida que ficará absurda sem a fé? Aceitamos o repto a que tentaremos responder em outros momentos. Fiquemos, agora, pela constatação do horizonte que nos aponta a própria epistemologia (reflexão sobre o que é conhecer e sobre o que podemos conhecer): sem Deus, sem a possibilidade, pelo menos, de que Deus exista, nem ciência poderemos fazer, diz-nos Antony Flew, nem humanos seremos, como tristemente constatou Foucault.


(Artigo publicado em Ecos da Ria)

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