sábado, janeiro 15, 2022

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | A pedra de Sísifo já repousa

 

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

Regresso a Ítaca e o meu pensamento, o meu sonho, ilumina-se no Éden.

Este tem sido o nosso caminho ao longo deste percurso que atinge, com este texto, a sua décima segunda etapa. Em todas elas, o nosso objetivo foi colocar em diálogo e, eventualmente, em confronto, duas das principais raízes do pensamento ocidental: a influência grega e a marca cristã.

Ítaca é aqui, o sinónimo da viagem de Ulisses de regresso a casa, Ítaca, após a sua participação na guerra de Troia.

Éden é a expressão do sonho com que Deus criou o mundo e à luz do qual toda a criação, na sua fragilidade histórica, deve ser refletida e iluminada.

Neste passo do nosso caminho, centramos a nossa atenção na visão trágica da vida que os gregos nos deixaram como herança que continua a ‘queimar-nos as mãos’. De facto, a visão trágica continua, múltiplas vezes, a ganhar terreno em relação à visão sustentada na esperança, marca indelével do cristianismo no ocidente. Muitos são os que daquela se reivindicam herdeiros, sem dela quererem abdicar, mesmo quando a esperança lhes mostrou fazer sentido.

Nestes tempos de discussão sobre a eutanásia, estas duas visões cruzam-se, de forma radical e quase que inconciliável.

Evoca essa visão trágica da vida o mito de Sísifo.

Sobre Sísifo impende uma maldição lançada por Zeus: a de que arrastará, monte acima, uma enorme pedra que, prestes a ser depositada no alto, volta a rolar, uma e outra vez, monte abaixo. Perante esta visão trágica e esta circularidade e repetitividade do tempo, o cristianismo fez rolar a pedra, com efeito, mas para a deixar, definitivamente, onde deveria permanecer.

São muitas as alusões bíblicas à pedra. O Vocabulário de teologia bíblica, coordenado por Xavier Léon-Dufour (Editora Vozes) recorda que a pedra simbolizava, nas culturas envolventes ao povo bíblico, o poder mágico, proibido em Israel. Esse significado vem, porém, a ser superado pela simbologia que à permanência e durabilidade da pedra se associará como expressão de fidelidade e permanência de Deus fiel à Sua Palavra.

A pedra já não será, então, um sinal negativo (nem mágico, nem trágico), mas o símbolo de que à Palavra caberá a última decisão sobre o rumo vertiginoso e efémero do mundo.

É a esse significado que aludirão as ideias de ‘pedra angular’, da escolha de Cefas como ‘pedra’ da Igreja ou, ainda, a própria referência a Cristo como ‘pedra de tropeço’, numa alusão não trágica (como se o que acontece fosse resultado de uma fatalidade), mas sim voluntária e livre: são os homens que, pelas suas decisões, veem em Cristo motivo de tropeço; não é o resultado de um qualquer poder fatalista ou determinação involuntária.

Em qualquer destas simbologias, há uma marca de liberdade, por um lado, e de sentido, por outro.

A pedra exprime que o Deus da História é vencedor e a Sua Palavra atrai a Si o rumo dessa mesma História. É pela Sua ação que Moisés faz jorrar água do rochedo, da pedra que, no deserto, era seca e árida. Onde há tragédia, onde há circularidade fatal e insuperável, o Deus da História faz emergir o sentido, a Palavra que dá rumo e quebra a circularidade eterna de um fastidioso rumor de abismo.

E o sinal definitivo desse sentido encontramo-lo no rolar de uma pedra que não voltará a deslocar-se: a pedra do sepulcro que, rolada uma vez, se depositou como ‘pedra’ sobre o assunto ‘morte’; a ressurreição é a Palavra que faz repousar, de uma vez por todas, sobre o monte, a pedra roliça de Sísifo.

E, por isso, se parecia ter razão Albert Camus, autor francês de origem argelina que escreveu um livro que se propõe enfrentar e sustentar o absurdo da existência humana, a que deu o título de ‘o mito de sísifo’ e que começa com a afirmação de que “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio” (Albert Camus, O mito de Sísifo, Edição «livros do Brasil», p. 13), a nossa constatação, porém, de que o autor acabou o livro sem levar até ao limite a seriedade filosófica permite-nos perceber que a pedra rolou de uma vez por todas e que podemos, por fim, deixar descansar Sísifo.

O cristianismo não expressa o mero desejo de que assim seja; não é uma teoria, uma discussão. Parte de um evento, de um acontecimento que, começando no tempo da História, se prolonga para além da história. O monte sobre o qual Sísifo fazia rolar a pedra permanecia totalmente na História. E, na História, não pode encontrar-se o sentido definitivo: só eventuais antecipações provisórias do Sentido ou, para utilizar terminologia de W. Pannenberg, manifestações ‘prolépticas’ (antecipadoras) do Último Sentido que nos é concedido por Deus, a Realidade que tudo determina, não como destino sem liberdade, mas, antes como atração que chama e convida.

O verdadeiro e definitivo Sentido está para além da História. E dessa permanência última são sinais as efémeras, mas duráveis, rochas que, ainda assim, se desgastam e pulverizam: elas são símbolo. O Eterno só transparece na História, mas não é a História: ‘já não está aqui’! O que ficam são os sinais antecipadores.

Esta é a linha que separa as duas visões: uma busca o sentido definitivo aqui, na História, mas o que encontra é um eterno circular do tempo que se desfaz e pulveriza; a outra encaminha-se para o além, do qual volta a olhar o tempo, mas sabendo-o o primeiro momento do rumo último para que o agora se encaminha.

Sísifo está só.

Já Aquele que dá sentido está sempre acompanhado, pois, enquanto Amor, é, em si mesmo, encontro e relação.

Sísifo pode, por fim, descansar, se livremente aceitar não se submeter ao poder de um destino trágico.

Aceitarão isso os seus herdeiros?

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