Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
George Weigel, O cubo e a catedral: A Europa e a América e a política sem Deus, Lisboa, Alêtheia Editores, 2006.
Nestes tempos tão propensos a fazer da identidade fator de isolamento e discriminação, sugiro ao leitor acercar-se de George Weigel como quem espera ser surpreendido (sendo que o será, com toda a certeza) para além dos pré-conceitos que a sua não omitida identidade de católico possa suscitar. George Weigel está certo de que, nestes tempos dados a neutralidades terraplanadoras, só é possível o diálogo que ocorre no encontro entre as identidades. E faz, por isso, da sua condição de teólogo católico a mais-valia do que diz, situando-se e não escondendo a sua condição de situado para ler o mundo.
É aí que reside a força da sua coluna ‘a diferença católica’ cuja repercussão nacional, nos Estados Unidos, evidencia que a leitura situada e identificada não é um prejuízo, mas uma condição de verdade.
As suas obras respiram esta sua matriz fundamental. Entre elas, ‘Cartas a um jovem católico’ (Tenacitas), a biografia de S. João Paulo II, ‘Testemunho de esperança’ (Bertrand) e ‘O cubo e a catedral’ (Alêtheia) mereceram ampla projeção e repercussão nacional em Portugal. Em 2002, a convite do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, participou na Palestra anual Alexis Tocqueville, com conferência sobre ‘Duas Ideias de Liberdade’, publicada em coletânea da Universidade Católica Editora.
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
Pelo título ‘o cubo e a catedral’ talvez não se imagine a oportunidade deste livro e a sua pertinência para as discussões mais urgentes, no contexto nacional e europeu.
Mas, superada a opacidade de uma ainda equívoca metáfora geométrico-cultural (um cubo e uma catedral o que poderão ter a dizer-nos sobre as nossas opções políticas e as suas repercussões mais prementes?), perceberemos porque levou o autor destas linhas apenas dois dias a percorrer, vorazmente as 150 páginas deste ímpar ensaio (li-o entre 5 e 7 de agosto de 2009) e revisito-o, agora, por nele encontrar vias para uma discussão jamais devidamente feita, em Portugal.
‘O cubo e a catedral’ é um ensaio. Um magnífico ensaio.
O tema?
Não se supondo, este ensaio enfrenta uma interrogação fundamental: o que pode dizer-nos o inverno demográfico sobre o modo como vemos a vida, como vemos o humano que somos?
Implicitamente, este ensaio denuncia as abordagens ‘cosméticas’ que visam combater o inverno demográfico que, no silêncio da noite cultural, se vem abatendo sobre a Europa. A questão fundamental não está em opções conjunturais de incentivo à natalidade que deixam de fora o problema de fundo. A questão fundamental está na interrogação sobre o sentido das vidas e sobre o papel que a dimensão religiosa tem nas decisões mais quotidianas.
Valerá a pena constatar que algo haverá de diferente entre o que acontece na América, que não tem problemas de natalidade, e a Europa, cujo futuro é sombrio, dado deparar-se, há muito, com perdas demográficas profundas (tenha-se em conta que este ensaio é, originalmente, de 2005!).
E o autor enuncia a razão de fundo.
A laicidade americana é distinta da laicidade europeia.
Já Tocqueville, no século XIX, o constatara. George Weigel retoma a tese e aplica-a à matéria em apreço.
Com efeito, Weigel afirma que a laicidade europeia concebeu-se como uma neutralidade do Estado perante a religião que chegou a torna-lo indiferente para com a religião, enquanto, no caso americano, a laicidade sempre foi entendida num registo de respeito pela liberdade religiosa, criando espaço para a diversidade que permitiu que a sociedade e Estado não andassem de costas voltadas cooperassem, positivamente. Dessa cooperação resultou que as opções dos cidadãos fossem respeitadas, repercutindo-se a influência do religioso nas opções políticas. A América não se fez apesar dos cidadãos e das suas opções (entre elas, as religiosas…), enquanto na Europa, por influência de uma laicidade negativa, fortemente afetada pela matriz da revolução francesa, a política fez-se, muitas vezes, apesar das opções dos cidadãos, com custos notórios.
A influência do religioso em matéria de natalidade é visível. O crente acolhe a vida como dom, e não, primeiramente, como uma conquista ou uma autodeterminação e, muito menos, como um estorvo. A perda do sentido religioso da existência, coletivamente falando, repercutiu-se, no entendimento de Weigel, na perda do sentido de acolhimento da vida a nascer.
O cubo e a catedral é, assim, enquanto título, metáfora de duas visões, em que a catedral remete para a visão cuidadora da vida, em registo de dom que se acolhe, por oposição à geometria do Cubo (aludindo ao que foi construído em La Défense, mais alto do que a Catedral de Notre Dame e, por isso, expressando a ‘superioridade’ da geometria ‘libertarista’ defensora de uma liberdade humana distante de Deus…) que sustenta a dispensabilidade do religioso para a conceção das políticas comuns.
Para além de se tratar de um ensaio oportuníssimo para a problematização das visões de laicidade em jogo permanente, até na sociedade portuguesa (‘volta e meia’, emergem, na sociedade, teses laicistas, preconizadoras do silenciamento do religioso…), ‘o cubo e catedral’ desafia a que se vá às questões ‘culturais’ e de cosmovisão para problematizar as verdadeiras razões que explicam o inverno demográfico que assola o território europeu.
Lendo, com atenção, George Weigel não pode senão perceber-se que talvez seja hora de as políticas europeias se fazerem com o contributo das próprias organizações religiosas que, certamente, poderão contribuir para que, recriando as cosmovisões num registo distinto da existência, possam, a médio e longo prazo, auxiliar na reconfiguração de uma matriz capaz de recuperar o sentido da vida como dom acolhido, com significativas consequências coletivas.
Na mesma página que o autor (citações)
‘O «problema europeu», quanto a mim, é fundamentalmente um problema moral, cultural e civilizacional. Sobre ele paira a questão colocada de maneira cortante, se bem que sem intenção, pelos guias turísticos, que alardeiam a superioridade de La Grande Arche sobre Notre-Dame: a questão do cubo, da catedral e do seu significado para a liberdade e futuro da democracia.’ (p. 11)
‘Por que razão certas partes da Europa exibem uma curiosa e até bizarra abordagem à morte? Por que razão tantos franceses preferiram continuar as suas férias de Verão durante a vaga de calor de 2003, deixando os familiares por enterrar e armazenados em câmaras frigoríficas (que ficaram a abarrotar ao fim de pouco tempo)? Por que razão é a morte cada vez mais anónima na Alemanha, sem necrologia nos jornais, cerimónias fúnebres nas igrejas ou fora delas, nada - «como se», tal como disse Richard John Neuhaus, «os mortos não existissem»? Que pensar da companhia sueca Promessa, que anuncia um serviço no qual a cremação é substituída por adubo humano? Os mortos são imersos em nitrogénio líquido até ficarem gelados, são esmagados por meio de ultrassons até ficarem em bocadinhos e, finalmente, são utilizados como fertilizante!’ (p. 21)
‘Estas perguntas não podem ser satisfatoriamente respondidas com base apenas na experiência diferente da Europa do século XX e no que o continente aprendeu com ela. Também não podem ser respondidas com apelos à vergonha. Tem de ser feita uma pergunta mais profunda: Por que razão teve a Europa o século XX que teve? Por que razão um século que começou com previsões confiantes sobre uma humanidade em aperfeiçoamento, a caminho de novas realizações civilizacionais, produziu na Europa, no espaço de quatro décadas, duas guerras mundiais, três sistemas totalitários, uma Guerra Fria que quase se transformou numa catástrofe global, mares de sangue, montanhas de corpos, Auschwitz e o Gulag? Que aconteceu? Porquê?’ (p. 23)
‘Diga-se o que se disser dos Estados Unidos, a sociedade americana não é, certamente, «cristofóbica», ou pós-cristã. A cultura europeia, por seu lado, é largamente cristofóbica; e os europeus descrevem as suas culturas e sociedades como «pós-cristãs».’ (p. 26)
‘O traço comum entre [estes] pensadores tão diferentes é a convicção de que as correntes mais profundas da «história» são espirituais e culturais, não políticas e económicas.’ (p. 29)
‘Na verdade, ao tentar arranjar uma resposta satisfatória para as várias perguntas que fiz acima, incluindo a pergunta crítica a propósito da auto-imolação demográfica europeia, não consigo arranjar resposta melhor do que a sugerida pela análise de Soljenitsine: estes fenómenos são a expressão de uma profunda e duradoura crise moral e civilizacional.’ (p. 32)
‘[O] processo de secularização (cujas origens remotas recuam, pelo menos, até às guerras religiosas do século XVI) teve profundas consequências públicas: levou ao colapso de um horizonte transcendental de bom senso moral na vida pública europeia e ao triunfo daquilo a que Manent chama a «auto-adoração» e o «orgulho fatal» que conduziu à Grande Guerra e suas consequências.’ (p. 45)
‘Durante o debate sobre a Constituição Europeia, Joseph Weiler [que é judeu] também lembrou os secularistas europeus que os «pais fundadores» da União Europeia de hoje foram, todos eles, católicos que viam a integração europeia como um projeto de civilização cristã: Konrad Adenauer, Alcide de Gasperi, Robert Schuman e Jean Monnet.’ (p. 59)
‘A liberdade […] é adquirir gradualmente a capacidade de escolher o bem e de fazer o que se escolhe com perfeição, com excelência.’ (p. 68)
‘Se a teimosia é tudo e a liberdade é simplesmente a «nossa» própria reivindicação (uma reivindicação protegida pela lei desde que «não prejudique ninguém»), então é muito difícil, se não for impossível, perceber por que razão essa liberdade tem qualquer valor para além da expressão da nossa vontade. E este parece-nos ser um alicerce muito frouxo para construir uma civilização democrática capaz de se suster internamente e perante os seus inimigos.
Visto à luz da história das ideias, o debate sobre a invocatio Dei na Constituição Europeia foi um debate entre os proponentes da liberdade por excelência e os proponentes da liberdade da indiferença. Um debate medieval entre dois frades, em pleno século XXI, no cenário da feitura de uma constituição. A liberdade da indiferença parece ter vencido, para já. As consequências, provavelmente, serão consideráveis.’ (p. 72)
‘Se não houver convicções, não pode haver tolerância; apenas indiferença. Se não houver a noção de verdade que faz de nós tolerantes em relação àqueles que têm uma noção diferente da mesma verdade, então só resta cepticismo e relativismo.’ (p. 90)
‘A doutrina social da Igreja ofereceu à Europa a possibilidade de defender a «estrutura moral da liberdade de modo a proteger a cultura e a sociedade europeias da utopia totalitarista da ‘justiça sem liberdade’ e da ‘liberdade sem verdade’, outra utopia que anda de mãos dadas com o falso conceito da tolerância’». Ambas as utopias, lembrou o Papa [João Paulo II] aos seus leitores, «pressagiaram erros e horrores para a humanidade, como tristemente revela a história recente da Europa».’ (p. 101)
‘É possível construir e manter de pé uma comunidade política democrática sem os pontos de referência morais que o Cristianismo tem para oferecer? Poderá haver uma «política sem Deus» - o Deus de Abraão, Isaac, Jacob e Jesus?
Os que ganharam este debate, em 2004, responderiam pela afirmativa: não só pode, como deve. A crise civilizacional e moral europeia sugere, porém, que os vencedores do debate constitucional europeu talvez estejam seriamente enganados.’ (p. 128)
‘Os colegas europeus e americanos com os quais discuti estas questões acham, compreensivelmente, difícil aceitar aquilo que vêem como uma noção demasiado simples, mesmo simplista: a Europa deixou de se reproduzir porque deixou de ir à Igreja. Posta desta maneira pessimista, de facto, a análise é muito simples. É evidente que existem razões económicas, sociológicas, psicológicas e até ideológicas para que os nascimentos estejam abaixo dos níveis mínimos há décadas. No entanto, a falta de capacidade de criar um futuro humano no mais elementar dos sentidos – criar uma geração nova – também é a expressão de um fracasso mais amplo: a falta de autoconfiança. Este fracasso está, sem dúvida, ligado ao colapso da fé no Deus da Bíblia, porque sem Ele (e a Sua morte na praça pública europeia é o que os actores do drama do humanismo ateu procuram e conseguiram até certo ponto) também não existe a Sua primeira ordem: «Crescei e multiplicai-vos».’ (Génesis 1,28).’ (pp. 129-130)