quinta-feira, agosto 15, 2024

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 22 | Orfeu e a descida aos infernos

 

Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ faz-se, neste passo, ao som da lira de Orfeu, instrumento a que, segundo as tradições míticas, ele próprio acrescentou mais duas cordas, perfazendo nove, como o número das musas, filhas de Mnemósine e de Zeus, a quem se atribuía a origem das diversas artes: Calíope, musa da poesia, Clio, musa da história, Érato, musa da lírica coral, Euterpe, musa da flauta e, por isso, da música, Melpómene, musa da tragédia, Polímnia (ou Poliímnia), musa da pantomima, Terpsícore, musa da poesia ligeira e da dança, Talia, musa da comédia e Urânia, musa da astronomia.

E onde nos leva Orfeu?

O mito de Orfeu e Eurídice é dos mais fecundos da história clássica e tantas vezes repercutido nas múltiplas artes, entre as quais merecerá particular destaque a singular ópera (1762) de Gluck, de título homónimo. Mas não apenas da história principal se guardam memórias que se tornaram intemporais. As referências com que o decoraram as penas de Virgílio e Ovídio mantêm-se até hoje. Gil Vicente, no seu auto da barca do Inferno, recorda Caronte e o seu papel na travessia do rio Aqueronte. No Natal do sr. Scrooge, o forreta protagonista da história coloca uma moeda em cada olho do seu finado sócio. Alusões ao que do mito se mantém, na memória coletiva.

Mas de Orfeu não ficou só a curiosidade. Ficou um denso mito de que vale a pena fazer memória e cruzar, neste caminho de regresso a Ítaca sob o sonho do Éden, as interseções e divergências entre a cultura clássica e o cristianismo.

Sigamos, no nosso relato, o que nos contam Pierre Grimal[1] e Luc Ferry[2].

Orfeu está apaixonado por Eurídice, uma ninfa ou filha de Apolo. Esta, fugindo de Aristeu, que a pretendia seduzir, pisa uma serpente que, mortalmente, a pica. Orfeu decide descer aos infernos para a recuperar para a vida. Ali, seduz, com a sua lira de nove cordas, todos os seres, até os mais empedernidos de todos, superando, mesmo, todas as maldições: ‘a roda de Ixíon deixa de girar, a pedra de Sísifo equilibra-se por si própria imobilizando-se, Tântalo esquece a fome e a sede, as Danaides já não tentam encher de água o tonel perfurado’ (Pierre Grimal, p. 341). Consegue convencer Hades e Perséfone que consentem em deixá-los partir, mas com a condição de que Orfeu não se volte para trás, antes de sair dos Infernos.

À boa maneira grega, a maldição atualiza-se, porque a humanidade de Orfeu o faz sucumbir e desrespeitar a condição.

Não nos interessa, aqui, discutir a que se deverá esta tentação última de Orfeu (que já estava perto de cumprir o desejo de sair dos Infernos), e que Luc Ferry atribui a uma insanável coexistência entre o amor e a morte.

Numa perspetiva cristã, não só não há essencial coexistência entre o amor e a morte como a própria tradição repercutiu que o amor supera e transcende a morte, ao colocar, no próprio símbolo dos apóstolos, a referência à descida de Jesus Cristo aos infernos.

A tradução portuguesa do Catecismo da Igreja Católica, reproduzida a partir da edição típica latina, refere que ‘Jesus Cristo […] desceu à mansão dos mortos’, uma tradução atualizada do conceito que, no original, se afirmava, desde a primeira vez em que este credo passou a incluí-la, como ‘descendit ad inferna’, o que poderá à letra, traduzir-se por ‘desceu aos lugares inferiores’, pois assim o pensava a cosmologia de então. O lugar da morte estava na parte inferior do universo. Descia-se para o ‘Hades’, o ‘Sheol’, sendo pensado como o lugar sem memória, aliás, numa evocação da ideia de ‘letes’, o rio cujas águas faziam esquecer, apagar toda a memória (curiosamente, uma das palavras gregas para ‘verdade’ era ‘alêtheia’ que, à letra, significa ‘não perder a memória’).

Faço uma breve deriva para voltarmos a regressar a este ponto.

O símbolo dos apóstolos, proposto como um dos credos a proferir nas eucaristias dominicais (sendo mais frequente, porém, o nicenoconstantinopolitano), foi, como recorda Denzinger, no seu Enchiridion, tido, durante muitos séculos, como um símbolo construído, literalmente, pelos doze apóstolos, tendo cada um deles ditado um dos doze artigos. Os vestígios mais antigos desta ‘lenda’ são de 390, numa carta enviada pelo Sínodo de Milão (presidido por Santo Ambrósio) ao Papa Sirício, sendo o primeiro documento em que se fala de ‘credo apostólico’.

Sabemos, porém, hoje, que não foi assim, sendo que este credo se foi construindo, como processo de amadurecimento eclesial (hoje, diríamos ‘sinodal’), por duas vias. A mais antiga, a romana, terá iniciado em finais do século II, sendo transmitida em grego e latim. A mais recente terá surgido no século VII, no sul da Gália (atual França), tendo sido prontamente acolhida por Roma. Este processo ficou concluído e fechado com a edição do catecismo romando, em 1566 e com o breviário romano, em 1568.

Curiosamente, pode constatar-se que a inclusão do artigo ‘desceu aos infernos’, em símbolos de fé ‘ortodoxos’ (isto é, não heréticos, como acontecia com os arianos ou semiarianos) só ocorre em 404, em ‘expositio’ da autoria de Tyrannius Rufinus[3].

Esta constatação parece-me contradizer a tese de significativa influência do orfismo no cristianismo, como pretendem, por exemplo, Luc Ferry e o próprio Pierre Grimal, podendo-se acrescentar que as divergências entre as duas narrativas abundam.

Orfeu desce aos infernos, fruto de um amor de natureza conjugal. Jesus Cristo desce aos infernos (à mansão dos mortos) como ação de libertação universal.

Do mito de Orfeu e Eurídice permanece um resquício de ‘maldição’: Eurídice regressa uma segunda vez, aos Infernos.

Da descida de Jesus Cristo advém uma definitiva certeza de que os homens são ‘responsáveis pela sua própria sorte […] o seu céu descansa na liberdade [pois] até [a]os condenados deixa o direito de querer a sua condenação’[4].

Deus propõe, na perspetiva cristã, a salvação para todos. A liberdade de a aceitar torná-la-á eficaz.

Esta síntese torna atual a afirmação feita no símbolo dos apóstolos. Na sua morte e, como recorda Hans Küng, em estreita união com a sua ressurreição[5], Jesus opera uma salvação para todos, mas em que a possibilidade da perda e condenação definitiva continua em aberto, não já como uma maldição, na linha do mito de Orfeu, mas como uma decisão de não acolher a salvação.

Mas o Deus Cristão não é o das maldições: é o da redenção e da salvação. É ‘A’ Salvação!


[1] Cfr. Pierre Grimal, Dicionário de mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, pp. 340-342.

[2] Luc Ferry, A sabedoria dos mitos, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2014, pp. 227-234.

[3] Cfr. Heinrich Denzinger e Peter Hünermann, El Magisterio de la Iglesia: Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Barcelona, Herder Editorial, 1999, n. 16.

[4] Cfr. Joseph Ratzinger, Escatología: la muerte yla vida eterna, Barcelona, Herder Editorial, 2008, pp. 233.

[5] Hans Küng afirma que ‘se este artigo da fé se entende simbolicamente vinculado à ressurreição, não tem, pois, porque oferecer dificuldades ao homem de hoje.’ – Hans Küng, Credo: El Símbolo de los Apóstoles explicado al hombre de nuestro tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 1994,, p. 104.


quarta-feira, agosto 07, 2024

Sabes, leitor... | 8 | Marca de água do livro de Michael J. Sandel, 'O que o dinheiro não pode comprar'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Michael J. Sandel, O que o dinheiro não pode comprar: os limites morais dos mercados, Barcarena, Editorial Presença, 2015.

Michael Sandel é professor de filosofia na Universidade de Harvard, e convidado na Universidade de Sorbonne, Paris. Tem a maioria dos seus livros traduzidos em Portugal editados pela Presença. Uma aposta certeira, evidente no facto de que, apesar de se tratar de livros de filosofia, rapidamente são reeditados. Em Portugal, estão traduzidos os seus ‘O Liberalismo e os Limites da Justiça’, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e, pela Presença, ‘Justiça - Fazemos o que Devemos?’, cuja base é, em grande parte, o seu muito procurado curso sobre Justiça, ‘A Tirania do Mérito - O que aconteceu ao bem comum?’ e, mais recentemente, o seu ‘O Descontentamento da Democracia - Por que razão vivemos tempos perigosos e o que temos de fazer para mudar’.
Quando se lê Sandel, rapidamente se percebe a causa do seu sucesso. O seu pensamento é claro, partindo de perguntas que adivinham as inquietações do leitor, expresso numa escrita que parece ser um diálogo com o distante leitor, como se o levasse pela mão até à solução que nos propõe.
Mesmo quando nos apresenta uma solução com que podemos não concordar, como a que formula no seu livro ‘a tirania do mérito’, em que sugere que o sorteio pudesse ser uma solução para evitar a meritocracia que exclui, a sua argumentação é poderosa e envolvente, deixando no leitor honesto a sensação de um profundo respeito, dada a clareza da exposição.
Um pensador a ler e acompanhar…

 

Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)

Para quem me lê, deixo, antes da descrição sobre o que fica da leitura deste livro, uma nota muito ilustrativa do interesse que suscita este livro. Comecei a lê-lo em 24 de setembro de 2016. Acabei de o ler a 2 de outubro, entre os inúmeros afazeres, próprios de qualquer início de ano letivo. A fluidez do pensamento, a transparência da escrita prendera-me. O entusiasmo que me suscitou fez-me comprar, logo após terminar esta leitura, o seu ‘Justiça’, que também li num fôlego.
Sandel é, não só claro, como defensor de uma linha de pensamento com que, como personalista cristão, me identifico. O centro do pensamento de Sandel é claro: há valores que não são redutíveis à lógica da compra e venda. Como que poderíamos sintetizar que, apesar de o dinheiro tudo querer comprar, nem tudo pode ser vendido. Como o próprio Sandel afirma, ‘quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos a decidir, pelo menos de forma implícita, que é apropriado tratá-los como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens são devidamente valorizados desta forma. O exemplo mais óbvio são os seres humanos.’ (p. 19)
A centralidade que coloca na pessoa humana, repercutindo uma matriz com grandes pontos de coincidência com a leitura cristã (ainda que o autor não o explicite, mas sem deixar, porém, de citar, quando necessário, o próprio Magistério pontifício), leva-o a interrogar sobre se ‘queremos uma ‘economia de mercado ou uma sociedade de mercado’ (p. 20), ideia que a nós, portugueses, invoca uma outra interrogação formulada por D. José Policarpo sobre a laicidade do Estado em que recordava que, sendo certo que o Estado é laico (ainda que a Constituição da República nunca utilize este termo), a sociedade não o era. Agora, a questão é entre a economia e o todo da sociedade. E Sandel deixa clara a sua linha. A lógica de mercado deve confinar-se ao que é mundo específico da economia, não deixando que tudo se reduza a lógica de compra e venda.
O filósofo de Harvard defende, por isso, que é preciso assumir a consciência de que todas as ações humanas são suscetíveis de apreciação moral (não há amoralidade prática), o que o leva a concluir que, dada a relevância da política na vida em comum, há que constatar que ‘o problema da política não reside no excesso mas sim na carência de argumentação moral. A nossa política é inflamada porque é essencialmente vaga, vazia de conteúdo moral e espiritual. Não abarca as grandes questões que preocupam as pessoas.’ (p. 23)
Com estes pressupostos, Sandel constrói uma narrativa construída com uma articulação densa e fluentemente conduzida de argumentos e factos que conduzem o leitor ao reconhecimento de que nem tudo é redutível à lógica da compra e venda. Num tempo em que tudo é reduzido à ordem do útil, o discurso de Sandel está em contracorrente, ousando dizer-nos que há valores que estão para além do tangível. ‘[…] assim que vemos como os mercados e o comércio alteram o caráter dos bens em que tocam, temos de perguntar a que esferas os mercados pertencem – e não pertencem. E não podemos responder a esta pergunta sem deliberarmos sobre o significado e o propósito dos bens e os valores que deveriam regê-los.’ (p. 209)
Num tempo tão propenso a ‘cancelamentos’ e silenciamentos, Sandel não tem medo de afirmar que ‘por receio de suscitarmos discórdia, hesitamos em expor as nossas convicções morais e espirituais na praça pública. Mas o facto de nos esquivarmos a estas questões não as faz deixar por decidir. Significa apenas que os mercados as decidirão por nós.’ (p. 209)
A pergunta com que termina é revisitável, no contexto português: ‘queremos uma sociedade onde tudo está à venda? Ou existirão determinados bens morais e cívicos que os mercados não honram nem respeitam e que o dinheiro não pode comprar?’ (p. 210)
Pergunto eu, sem comprometer Sandel: estão à venda os valores fundamentais, dependentes de quem, com poder económico, pode manipular os média e ‘vendê-los bem vendidos’ ou podemos contar com decisores políticos que protegem os valores fundamentais, mesmo quando isso pode custar no mercado eleitoral?
Temas como a proteção da família, da vida humana nos seus extremos, a liberdade religiosa, a proteção do direito da família à liberdade de educação estão em risco no mercado dos valores eleitorais. Sucumbirão ao peso dos diversos ‘mercado’? Ou permanecerão valores (algo que consideramos valer e merecer proteção) distinguindo-se o que vale do que não vale?

Na mesma página que o autor (citações)

‘Hoje, a lógica da compra e venda já não se aplica apenas a bens materiais, mas domina cada vez mais todos os aspetos da vida. Está na altura de perguntarmos se queremos viver desta forma.’ (p. 16)

‘Precisamos de nos perguntar se há algumas coisas que o dinheiro não deve comprar.’ (p. 17)

‘Numa sociedade em que tudo está à venda, a vida é mais difícil para aqueles que têm escassos recursos. Quantas mais forem as coisas que o dinheiro pode comprar, maior importância adquire a riqueza (ou a falta dela). (p. 18)

‘Pagar a crianças para lerem livros pode incentivá-las a ler mais, mas também as ensina a encarar a leitura como uma tarefa e não uma fonte de satisfação intrínseca.’ (p. 19)

‘Os economistas partem muitas vezes do pressuposto de que os mercados são inertes, que não afetam os bens que são transacionados. Mas isso não é verdade. Os mercados deixam a sua marca. Às vezes, os valores de mercado excluem os valores não mercantis que merecem ser protegidos.’ (p. 19)

‘[…] quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos a decidir, pelo menos de forma implícita, que é apropriado tratá-los como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens são devidamente valorizados desta forma. O exemplo mais óbvio são os seres humanos. A escravidão era chocante porque tratava os seres humanos como mercadorias que podiam ser compradas e vendidas em leilão. Um tal tratamento não valoriza devidamente os seres humanos – como pessoas merecedoras de dignidade e respeito e não como instrumentos de obtenção de lucro e objetos de uso.’ (p. 19)

‘[…] uma economia de mercado é uma ferramenta – uma ferramenta valiosa e eficaz – para organizar a atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é uma forma de vida em que os valores de mercado se infiltram em todos os aspetos da atividade humana. É um lugar onde as relações sociais são moldadas à imagem do mercado. […] Queremos uma economia de mercado ou uma sociedade de mercado?’ (p. 20)

‘O problema da política não reside no excesso, mas sim na carência de argumentação moral. A nossa política é inflamada porque é essencialmente vaga, vazia de conteúdo moral e espiritual. Não abarca as grandes questões que preocupam as pessoas.’ (p. 23)

‘À sua própria maneira, a lógica racional do mercado também esvazia a vida pública de argumentação moral. Parte do apelo dos mercados reside no facto de não fazerem juízos de valor sobre as preferências que satisfazem. Não perguntam se algumas formas de valorizar os bens são mais nobres, ou mais dignas, do que outras. Se alguém está disposto a pagar por sexo ou por um rim, e uma pessoa maior e vacinada estiver disposta a vender esse bem ou serviço, a única pergunta que o economista faz é: «Quanto é?» Os mercados não apontam um dedo reprovador. Não discriminam entre preferências admiráveis e abjetas. Cada uma das partes envolvidas no acordo decide por si mesma o valor a atribuir à coisas que estão a ser transacionadas.’ (p. 23)

‘Se concordamos que comprar e vender certos bens os corrompe ou degrada, então acreditamos que algumas formas de valorizar esses bens são mais apropriadas do que outras. Dificilmente faz sentido falar sobre corromper uma atividade – a paternidade, por exemplo, ou a cidadania – a menos que pensemos que determinadas maneiras de se ser pai, ou cidadão, são melhores do que outras.
Juízos morais deste teor subjazem às poucas limitações impostas aos mercados que ainda podemos observar. Não permitimos que os pais vendam os filhos ou que os cidadãos vendam os seus votos. E uma das razões para não o permitirmos é, francamente, de ordem moral: acreditamos que vender essas coisas as valoriza da forma errada e promove más atitudes.’ (p. 24)

‘Muitas vezes associamos a corrupção a lucros obtidos de forma ilícita. Mas a corrupção refere-se a algo mais do que subornos e pagamentos ilícitos. Corromper um bem ou uma prática social é degradá-lo, trata-lo de acordo com uma modalidade de valorização menor do que aquela que seria apropriada.’ (p. 43)

‘[…] de modo a determinarmos se a capacidade reprodutiva de uma mulher deveria ser objeto de uma transação mercantil, temos de perguntar que tipo de bem é esse: deveríamos considerar o nosso corpo como bem que possuímos e podemos usar e disponibilizar como melhor entendermos ou será que alguns usos do nosso corpo equivalem a um ato de autodegradação? Trata-se de uma questão importante e controversa que também surge nos debates sobre a prostituição, as barrigas de aluguer e a compra e venda de óvulos e esperma. Antes de podermos decidir se as relações de mercado são apropriadas para tais domínios da vida, precisamos de compreender que normas deveriam reger as nossas vidas sexuais e reprodutivas.’ (p. 55)

‘Poderá toda a ação humana ser entendida à imagem de um mercado? Economistas, politólogos, juristas e outros profissionais continuam a debater esta questão. Mas o mais surpreendente é a forma como esta imagem se tornou poderosa – não só nos meios académicos, mas também na vida quotidiana. Nas últimas décadas, assistiu-se à transformação das relações sociais à imagem das relações de mercado, num grau verdadeiramente notável. Um dos traços desta transformação é o uso crescente de incentivos monetários para resolver problemas sociais.’ (p. 59)

‘Muitas vezes, os incentivos de mercado corroem ou excluem os incentivos não mercantis.
Um estudo centrado em alguns infantários em Israel demonstra como isto pode acontecer. Os infantários enfrentavam um problema muito comum: às vezes, os pais chegavam tarde para recolherem os filhos. Uma das educadoras tinha de ficar com as crianças até à chegada dos pais retardatários. Para resolver esse problema, os infantários começaram a aplicar uma multa aos pais atrasados. O que acha o leitor que aconteceu? Na verdade, os atrasos na recolha das crianças aumentaram.
Ora, caso se assuma que as pessoas respondem a incentivos, esse é um resultado desconcertante. Esperar-se-ia que as multas reduzissem, e não que aumentassem, a incidência de ressolhas com atraso. O que aconteceu então? A introdução de um pagamento em dinheiro mudou as normas. Antes dessa medida, os pais que chegavam atrasados sentiam-se culpados, pois estavam a sujeitar as educadoras a uma situação incómoda. Mas, após a introdução das multas, os pais passaram a considerar as recolhas atrasadas das crianças um serviço pelo qual estavam dispostos a pagar. Encaravam a multa como se fosse uma taxa. Em vez de abusarem da boa vontade das educadoras, estavam simplesmente a pagar-lhes para trabalharem por mais tempo.’ (pp. 72-73)

‘O que faz com que as multas por excesso de velocidade na Finlândia não possam ser tratadas como taxas não é apenas do facto de variarem de acordo com os rendimentos do infrator. É também o opróbrio moral que lhes subjaz: o juízo moral de que infringir o limite de velocidade é um comportamento errado.’ (p. 74)

‘À medida que os mercados invadem esferas da vida tradicionalmente regidas por normas não mercantis, a noção de que os mercados não tocam nem maculam os bens que transacionam torna-se cada vez mais implausível. Um crescente número de investigações confirma aquilo que o senso comum sugere: os incentivos financeiros e outros mecanismos de mercado podem ter consequências negativas ao excluírem normas não mercantis. Às vezes, oferecer um pagamento para se obter um determinado comportamento pode resultar numa manifestação menos, e não maior, desse comportamento.’ (pp. 119-120)

‘[…] encarar as normas morais e cívicas apenas como formas economicamente rentáveis de motivar as pessoas equivale a ignorar o valor intrínseco dessas normas.’ (p. 125)

‘O altruísmo, a generosidade, a solidariedade e o espírito cívico não são similares a mercadorias que se esgotam com o uso. São mais como músculos que se desenvolver e fortalecem com o exercício. Um dos defeitos de uma sociedade regida pelos mercados é que permite que estas virtudes definem. Para podermos renovar a nossa vida pública, precisamos de as exercer com uma tenacidade cada vez maior.’ (p. 135)

‘[…] para se poder decidir a que esferas da vida a publicidade pertence ou não, não basta debater os direitos de propriedade, por um lado, e a questão da justiça, por outro. Também precisamos de discutir o significado das práticas e dos bens sociais que encarnam. E precisamos de perguntar, em cada caso, se a comercialização dessa prática acabaria por a degradar.’ (p. 195)

‘A publicidade incentiva as pessoas a quererem coisas e a satisfazerem os seus desejos. A educação incentiva as pessoas a refletirem de forma crítica sobre os seus desejos, para os refrear ou sublimar. O propósito da publicidade consiste em recrutar consumidores; a finalidade das escolas públicas consiste em cultivar os cidadãos.’ (p. 207)

‘Queremos uma sociedade onde tudo está à venda? Ou existirão determinados bens morais e cívicos que os mercados não honram nem respeitam e que o dinheiro não pode comprar?’ (p. 210)

 

**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

terça-feira, agosto 06, 2024

Do jogo e do jogar: alegoria de um futuro mais humano

 

A história da relação entre o cristianismo e o jogo não será das mais positivas entre as que dois mil anos de muitos encontros e desencontros poderão contar.

O risco de a homenagem aos vencedores poder resvalar para um qualquer indisfarçável culto do corpo e a marca veterotestamentária de uma vincada recusa do culto idolátrico poderão ter contribuído, de forma profunda, para essa desconfiança.

Por contraste, contudo, poderiam ter-se encontrado, de modo semelhante, iguais motivos de desconfiança para com a comensalidade, mas tal não impediu que o banquete tenha sido, ao longo da história da salvação, uma das mais frequentes metáforas da relação entre Deus e a humanidade; ou para com o lugar do tálamo, desvirtuado, tantas vezes, por infidelidades e violências, sem que tal tenha obstruído a que Cristo pensasse a sua relação com a Igreja como a de um Esposo com a sua Esposa.

Não mereceu igual ‘oportunidade’ o jogo, porém. Uma rápida procura pelos textos bíblicos permitir-nos-á verificar que é palavra ausente da terminologia sagrada. ‘Jogar’ parece não fazer parte da relação entre Deus e o homem. Talvez disso já se tivesse apercebido o judeu (de nascimento) Einstein, ao reconhecer que ‘Deus não joga aos dados’. (Não era a isto que se referia, bem certo, mas à natureza ‘determinística’ e não aleatória da realidade, mas não deixa de ser interessante recordá-lo, nesta circunstância!)

Mas não será de se dar ‘nova oportunidade’ ao jogo?

O fundador do escutismo, Baden-Powell, percebeu-o, no já distante 1907, ao conferir ao jogo uma condição central na pedagogia do movimento por si fundado nessa altura.

Diz a história da recuperação dos jogos olímpicos que o próprio Pierre de Coubertin, que estudou num colégio jesuíta, se inspirou num livro escrito pelo padre dominicano e pedagogo Thomas Arnold para a criação dos jogos olímpicos da era moderna. Percebera o papel do desporto no desenvolvimento da pessoa e na sua integração na vida em sociedade e na compreensão de si mesma. 1500 anos depois, seria pela via da influência cristã que se recuperaria uma longa omissão da história (é preciso, bem certo, compreender a conotação que os jogos olímpicos tinham quando Teodósio os extinguiu, no século IV, sendo associados ao paganismo e ao culto idolátrico e politeísta. As circunstâncias político-sociais ajudam a compreender a determinação em pôr fim ao que simbolizava um passado de que se pretendia partir…).

Constatada, então, a utilidade e nunca suficiente tarefa de recuperar-se dessa história de desconfiança, ousemos fazemos uma ‘ludologia’, uma abordagem do jogo a partir da natureza que dele pode colher-se para a compreensão do humano mais profundo.

A procura do que define o humano e do que o distingue dos demais seres, em particular, dos animais, está, hoje, envolvida em enormes ambiguidades.

Recordo, porém, sempre, quando esta é a matéria em discussão, a constatação de Chesterton: ‘Aquilo que tem de ser explicado não é a semelhança, é a monstruosa escala da dissemelhança. Que o homem é parecido com os animais é, em certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão parecidos, eles sejam tão inconcebivelmente diferentes, isso é que é um choque e um enigma’. (Ortodoxia, Alêtheia, 2008, p. 205)

E, na minha perspetiva, se tivermos de procurar o que, de facto, nos distingue, teremos de o encontrar no que há de comum à sua capacidade de criar linguagem, de partir em busca do eterno, de ousar perdoar, de chorar diante de uma foto ou, simplesmente, de um nome, de criar um ritual e de o repetir, sucessivamente, com significado e comoção.

Entre todas estas ações, há algo em comum: a capacidade de ‘representar’ o ausente. A essa capacidade, que consiste em unir duas partes – uma ausente que se torna presente em algo distinto -, damos o nome de ‘simbologia’ ou, melhor, ao ‘algo’ que torna presente uma realidade ausente chamamos ‘símbolo’. Devemos esta palavra ao grego que, com o verbo ‘simballein’ (sün+ballein), quer dizer ‘lançar junto, em conjunto’, expressando a ideia de unir duas partes que estavam separadas. Curiosamente, o oposto é o verbo ‘dia+ballein’ (que exprime a ideia contrária de ‘atirar em separado’, ‘cindir o que está unido’ (‘quebrar o que está junto’), que deu, em português, o termo ‘diabo’.

Ora, o jogo é, pela sua natureza, uma representação. Torna presente uma realidade ausente. Representa a violência, através de ‘rituais’ que não são violência em si mesmos.

Recordo bem as palavras de um nosso selecionador, Luís Felipe Scolari, quando, no emotivo ‘Euro 2004’, se referia às fases de eliminatórias como sendo de ‘mata-mata’.

No futebol, pode dizer-se que há ‘mata-mata’, pois a ‘morte’ do adversário é puramente simbólica, isto é, está presente mas ausente; ou, melhor, está ausente mas presente, simbolicamente, apenas. O golo que derrota o adversário é ‘como’ lança cravada no seu peito. Mas não lhe é letal. No final, podemos abraçar-nos e ‘beber um copo juntos’.

É esse o poder do símbolo.

É esse o poder do jogo, enquanto realidade criada, única e singularmente, pelos seres humanos.

E é por isso, também, que, quando a violência deixa de ser simbólica e passa a real, o jogo deixa de o ser. (Aliás, confesso que sou um defensor de que não têm natureza de jogo aquelas modalidades em que o objetivo é deixar KO o adversário. A realidade representada deixa de ser re-presentada para passar a ser real. O símbolo extingue-se pela confusão entre o representante e o representado…)

Entusiasmados com estes rudimentos de ludologia, poderíamos arriscar pedir aos homens do poder que sonhem o mundo como um grande jogo e procurem resolver, num real tabuleiro de xadrez, os problemas de território ou de domínio. Se, afinal, ganhar uma guerra é uma questão de estratégia, melhor será o político que mantiver protegido o seu rei do xeque-mate adversário! E com muito menos custos de vidas humanas. Os peões tombados, que ladeiam o tabuleiro, podem voltar a erguer-se para novo jogo, em sucessivas batalhas e xeques-mates.

Não poderá erguer-se, porém, do campo real de batalha, cada soldado tombado e chorado. Porque a guerra não é um jogo!

Sabes, leitor... | 9 | Marca de água do livro de Gabriele Kuby, 'A revolução sexual global'

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