domingo, maio 24, 2020

Três notas a pretexto do quinto aniversário da Laudato Si’



Em 24 de maio de 2015, o Papa Francisco ‘deu’ ao mundo a sua segunda encíclica (e até agora, última, somando-se-lhe cinco exortações apostólicas), depois de Lumen Fidei, feita ainda a quatro mãos, dado que se sabe ter tido intervenção do Papa emérito, Bento XVI. A esta segunda encíclica o Papa dá um título – Laudato Si’ (Louvado Sejas!) - recuperado do Santo de que tomou o nome, S. Francisco de Assis, autor do célebre ‘cântico das criaturas’, que começa os seus versos utilizando, precisamente, esta expressão ‘louvado sejas, meu Senhor’. O pretexto que nos dá este aniversário (5 anos decorridos) serve-me de motivo para traçar três notas ou sublinhados.
1. Em primeiro lugar, registo a minha convicção de que o futuro guardará a data ‘5’ de cada década como momento a recordar. Já eram guardados os anos ‘1’, invocando a recordação da primeira encíclica dedicada a matérias de doutrina social da Igreja, a Rerum Novarum, publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII. Era recordada a data ‘7’, invocando a publicação da Populorum Progressio, saída da pena de Paulo VI e particularmente famosa pela afirmação de que o progresso ‘deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo’ (n.14). A Laudato si’ dá, certamente, o pretexto para que se recordem os anos ‘5’ de cada década, dado que a temática ‘ecologia’ tinha sido, naturalmente, abordada em diversos documentos, mas nunca com o estatuto que a publicação como tema central de uma encíclica lhe confere.
2. Em segundo lugar, penso merecer registo a constatação da ousadia do Papa em publicar esta encíclica numa época em que proliferam as ecologias. E, face às ditas ecologias radicais, o Papa propõe-se afirmar uma ecologia ‘integral’ que, como recorda no número 11, ‘requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.’ O Papa, ao propor uma ecologia integral, visa, na minha perspetiva, fundamentalmente, três objetivos: deslocar a problemática do comportamento perante o mundo do mero âmbito técnico-científico, colocando-o no âmbito da ética e da moral; suplantar os riscos das ecologias ditas radicais que somem o humano no natural e pretendem nivelar a dignidade humana perante a suposta ‘igual dignidade’ dos restantes seres criados e, em terceiro lugar, olhar o ser humano não apenas como sujeito da ecologia (enquanto ator e protagonista da ação ecológica), mas também como seu próprio objeto. Não haverá ecologia sem a humanidade, o que, em tempos que tantos se propõem considerar a economia como um adversário da ecologia, se torna um tremendo desafio.
3. Em terceiro lugar, o Papa apresenta uma proposta ecológica que suplanta os limites notórios de grande parte das propostas ecologistas difundidas. O Papa vai à raiz da razão pela qual se deve ser cuidador (do ambiente, dos ambientes, do ser humano…): é que a vida é um dom e, por isso, uma missão que nos é confiada. De um dom eu cuido; não maltrato, não estrago, não destruo. Esta visão contrapõe-se à que é, habitualmente, proposta. A ecologia é, hoje, e, com ela, muita educação ambiental, sustentada no medo: medo das catástrofes, medo da abertura do buraco do ozono, medo das alterações climáticas. Medo, medo, medo! E o medo, é sabido, é adversário da liberdade e da verdadeira autonomia. O medo é uma estratégia da heteronomia. Só faço porque temo; quando o medo desaparecer, deixo de fazer. E essa é a verdadeira fragilidade das ecologias deste tipo: assentam no medo, pelo que precisam de o alimentar, pois sabem que, quando este terminar, regressam os comportamentos destruidores.
O Papa sai deste círculo… A sua proposta parte do reconhecimento da condição criatural do mundo e do ser humano: as criaturas devem a sua vida ao Criador e d’Ele recebem a missão de cuidar do que lhes é confiado. Num tal registo, a motivação para cuidar não nasce do medo: nasce do Amor. Ao longo da encíclica, o Papa fala 56 vezes do amor. E esta é a novidade radical desta encíclica perante as ecologias vigentes. Quem ousaria falar de amor ao formular uma proposta ecológica?
Só alguém chamado Francisco, embrenhado da mesma ‘loucura’ e ousadia do outro Francisco que não se coibiu de tratar a morte por ‘irmã’...

quinta-feira, abril 23, 2020

A covid-19 não nos demonstra, apenas, que somos finitos… mostra que somos e-finitos!



Somos seres finitos, marcados pela finitude. Isso é uma evidência.
Mas convivemos mal com ela… Insistimos em tentar escapar-lhe, fugir dela e fazer de conta que ela não nos atinge.
E porquê? Porque é que insistimos em tentar escapar-lhe, resultando dessa fuga uma tristeza profunda que nos debilita e angustia?
Foi na busca de resposta a esta interrogação que se foi consolidando em mim a convicção profunda de que a nossa real assunção do que somos passa pela forma como reconhecemos o lugar da finitude na nossa própria natureza.
Desta busca de resposta nasceu e tem crescido uma convicção que a circunstância de pandemia em que vivemos me fez recuperar e decidir-me a partilhar.
Essa convicção desloca a visão sobre quem somos do reconhecimento de que, simplesmente, somos finitos para um outro e mais profundo reconhecimento: o de que somos e-finitos.
A convicção de que somos e-finitos acompanha-me desde há muitos anos. Repercuti-a, aliás, aquando da investigação que fiz em bioética e no livro «bem-nascido… mal-nascido… Do ‘filho perfeito” perfeito ao filho humano».
O que a e-finitude diz de nós é que não somos, apenas, seres que vivem na finitude, como se ela fosse um apêndice, um elemento estranho à nossa própria identidade. A e-finitude diz-nos seres que vivem ‘a partir da finitude’.
A palavra que define esta nossa condição – e-finitude – construí-a a partir de um prefixo latino ‘e ou ex’ (preposição que rege um ablativo) e que quer dizer ‘de…, a partir de…, do interior de…’. Sermos e-finitos não é constatar que somos, estamos na finitude. É reconhecer muito mais do que isso. É supor que não nos podemos pensar sem ter em conta que vivemos a partir da finitude.
Este simples prefixo obriga a olhar para tudo o que somos de um outro modo.
Não nos podemos pensar, à maneira dos gnósticos (curiosamente, os primeiros grandes combates do cristianismo, que afirmava a condição ‘encarnada’ de Deus e a condição de ‘espírito encarnado’ que era o homem, foram travados contra as correntes gnósticas!), repito, não nos podemos pensar, como os gnósticos, de uma forma pura, incondicionada, e, depois, constatar que temos a finitude a estorvar. Não! Não nos podemos pensar sem supor a finitude. Tudo o que somos deve pressupor que estamos num contexto próprio, marcados pelo limite, sempre. Como é importante isto, por exemplo, para discutir a liberdade humana! Quantos a pensam como se liberdade não fosse uma condição e um exercício sempre condicionados! E como erram, ao supor uma liberdade humana incondicionada!
Curiosamente, na definição do ser humano como ‘e-finito’ está uma visão sobre a teodiceia que é oportuno partilhar.
Primeiro, importa esclarecer que a teodiceia é um âmbito da reflexão teológica que, particularmente, a partir do século XVII, com Leibniz, discute uma difícil articulação entre a fé em Deus Bom e a existência do mal. Leibniz resolvia este ‘dilema’, afirmando que este é o melhor dos mundos…
As circunstâncias de pandemia em que nos encontramos fizeram reaparecer tentativas de articular os dois lados do problema com soluções que, em termos cristãos, são muito questionáveis.
Há um critério, sobre esta matéria, que o livro de Génesis deixa claro: em caso algum pode ser atribuída a Deus a origem do mal. Haverá que encontrá-la em outro ‘lugar’, pois é contraditório reconhecer a bondade divina e atribuir-lhe essa possibilidade.
Nesta matéria, sou devedor da linha de pensamento de Andres Torres Queiruga, um teólogo espanhol com diversas obras que se debruçam sobre esta tão difícil matéria.
Em síntese, Queiruga sustenta que Deus, ao criar, como que se depara com um dilema em que opta pelo lado da salvação. O ‘dilema de Deus‘ é este: Deus não pode criar seres absolutos, sem limite; isso seria contraditório, pois não há dois absolutos. A criatura, a criação, ‘limitaria’ o outro absoluto, Deus. Então, Deus sabe que criará seres finitos, impossivelmente absolutos.
Perante esta certeza, decorrente da natureza de se ser criatura, Deus tem de decidir: ou criar, sabendo que a criatura será, essencialmente, finita, ou, então, simplesmente, desistir e não criar.
A decisão de Deus é pela salvação: salvar do nada o que, sem a ação criadora, nada seria.
Logo, a finitude é condição sine qua non (sem a qual não se pode ser) da criatura. No desejo de Deus, a criatura é pretendida como infinita, mas tal não pode realizar-se, efetivamente, porque a criatura é, sempre, finita. E por sê-lo, intrinsecamente, - digo eu – tem de pensar-se e agir a partir da finitude, como ‘e-finita’.
Uma leitura fina desta perspetiva compreende, rapidamente, que a aceitação da deficiência, da doença, da fragilidade, não é o reconhecimento de algo que nos é estranho: não! É o reconhecimento da igual condição de todos. Como tenho afirmado, a propósito da reflexão feita no livro ‘bem-nascido… mal-nascido…’, a deficiência é condição de todos nós que, em alguns de entre nós, se torna mais visível; mas é a condição de todos.
Aliás, uma das mais prováveis etimologias para a palavra ‘humano’ (outras podem ser invocadas, seguramente!) fá-la derivar de ‘húmus’, repercutindo, como é notório, o sentido da palavra de Génesis para designar a humanidade, na sua origem, ‘Adão’ – ‘aquele que é tirado da terra’.
A longa reflexão cristã sobre quem é o Homem tem sido firme no reconhecimento de que somos débeis, frágeis e na afirmação de que isso nos define. Teremos de nos pensar a partir daí e não apesar disso. A negação da nossa fragilidade é o principal fator de alienação, de negação da humanidade (agora, compreendida como aquela que é feita do ‘húmus’).
A covid-19 tornou evidente como somos frágeis. Atribuir a Deus essa origem é errar o alvo, cometendo uma dupla injustiça: por atribuir a Quem não é devido e por não atribuir ao que é devido. A Deus não deve atribuir-se a causa do mal, mas a fonte para dele se sair. Essa é a via de resposta do Cristianismo para a problemática do mal. De Deus deve esperar-se a salvação e não procurar n’Ele a origem do mal que, antes, emerge da condição e-finita da criatura.
A pergunta não poderá ser, nunca, ‘que mal fiz eu a Deus?’, mas antes, ‘que salvação posso esperar de Deus para esta situação?’.
A covid-19, sendo evidente que resulta da condição finita em que nos realizamos, interpela a que nos reconheçamos na comum condição para dela nos erguermos juntos, aspirando à libertação que é sempre frágil e condicionada.
Quem dera que, neste período de quarentena forçada, se esteja a gerar, como num silencioso útero, a sabedoria que nos ‘devolva’ o reconhecimento de que todos somos irmãos nesta comum condição e-finita, de modo a emergir daqui um outro modo de nos pensarmos juntos! Porque a e-finitude é, necessariamente, uma condição de humildade (o outro rosto daquele que é feito de ‘húmus’).
Quem sabe?...

quinta-feira, março 19, 2020

O individualismo morreu com a Covid-19


O individualismo é uma ilusão. E como, habitualmente, grandes ilusões redundam em maiores desilusões, não se espere melhor fim para esta. Não sem, antes, porém, muitos estragos ter feito pelo caminho.
Esclareçamos o conceito. Deixemo-nos, para tal, levar pela mão de Roque Cabral, que, na enciclopédia de filosofia, Logos, define ‘individualismo’ como ‘grande variedade de atitudes, doutrinas e teorias […] as quais apresentam a nota comum da sobrevalorização do indivíduo‘ e acrescenta que se trata de ‘uma conceção da vida em sociedade [que] resulta de uma inaceitável e mutiladora conceção do homem como ser associal ou antissocial, anterior à sociedade e concebível sem ela; a qual, por sua vez, é concebida como pura soma de indivíduos, sem outra realidade além destes e por eles criada’. (Cfr. Roque Cabral, ‘Individualismo’ in Logos 2, 1408-1409).
As manifestações desta conceção, desta cosmovisão, são múltiplas, da economia à política, da moral ao lazer, etc… No próprio dizermo-nos se expressa esta leitura da existência. Quem nunca ouviu e reproduziu a afirmação de que ‘a minha liberdade termina onde começa a do outro’, sem, porém, se interrogar sobre o real significado de tal proposição? Quando seríamos mais livres? Quando o outro estivesse diminuído na sua ‘liberdade’ e, no limite, quando ele desaparecesse! Nesta afirmação expressa-se o pensamento do seu criador, Herbert Spencer, um dos preconizadores, durante o século XIX, do liberalismo clássico, defensor de um ‘ideal [que] convergia para uma sociedade onde o indivíduo fosse tudo e o Estado nada’ (Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, ‘Herbert Spencer’ in Logos 4, 1279-1288).
Mas, mais do que denunciador de um insuperável antagonismo entre indivíduo e Estado, o individualismo expressa uma visão de que possa conceber-se a existência de cada um de nós sem os demais.
Aliás, um dos muitos pecados da afirmação acima recordada está, precisamente, no entendimento de que as liberdades individuais sejam realidades fechadas sobre si mesmas, concebíveis em antagonismo com os outros. Nada mais errado!
Nenhum de nós pode conceber-se sem os outros (pense-se no fenómeno da própria autoconsciência que é impossível sem o trabalho de a despertar que os outros têm. Nenhuma criança teria, algum dia, consciência de si mesma sem a ação dos outros humanos. Assim, também, no âmbito biológico ou económico ou qualquer outro…). Não nos podemos pensar sem a ação dos outros. O que é, afinal, a cultura senão a partilha do que é cultivado por uns e outros, que recebemos e transmitimos? Não há liberdades fechadas. Não se pode conceber a liberdade sem a interpenetração na liberdade dos outros. Ser livre é realizar-se como humano, é estar em condição de incompletude, escolhendo, sempre, de entre várias possibilidade em aberto, envolvendo, não apenas a vontade (um dos outros erros da conceção de liberdade do individualismo: reduz a liberdade ao voluntarismo, como mera ação da vontade, do querer…), mas também o afeto e, principalmente, a inteligência. A liberdade não é, primeiramente, um ato da vontade: é, antes, ato de um ser racional e intrinsecamente relacional. Não há liberdade onde não houver esta racionalidade e relacionalidade.
E foi isso que a pandemia da Covid-19 veio demonstrar, cabalmente. Não vivemos sós e podemos ter de decidir que, pelo nosso bem e pelo bem dos outros, devamos submeter a nossa vontade ao que lhe impõe a inteligência. E isso é ser livre! Não à maneira individualista, bem certo, mas numa visão humanista e personalista que só pode ser, também, intrinsecamente, comunitarista, que não comunista. Curiosamente, Roque Cabral recorda, na mesma entrada da enciclopédia Logos, que, por influência do anarquismo, o socialismo afirma o papel do Estado, mas também não ficou imune à influência nefasta do individualismo. Poderemos acrescentar que, de forma simétrica, também os movimentos ditos conservadores não souberam imunizar-se contra esta nefanda influência, ao acolherem o liberalismo na economia.
Talvez a universalização de um vírus tão pequeno quanto potente possa despertar deste torpor coletivo que, pela esquerda e pela direita, nos ilude e encaminha para a desilusão.
Nada somos, sozinhos! Um grito no vazio. Mas quem poderá ouvir o nosso clamor?
Que não nos esqueçamos, quando estivermos a decidir, depois de passada a borrasca, que ninguém decide sozinho, que não se vive sozinho, que não se morre sozinho… que somos, sim, um ser relacional, intrinsecamente ‘tus’ diante de outros ‘tus’, em cujo face-a-face se gera o eu que é cada um de nós. Mas é o ‘tu’ que gera a consciência do ‘eu’.
É já cadáver a ilusão de só a nós dizer respeito o que nos ocorre ou de ser 'lá da conta deles' o que acontece com os outros.
Até quando, porém, continuará a sentir-se o seu odor fétido de ente apodrecido?
Como pudemos andar tão solitariamente distraídos?

quarta-feira, fevereiro 12, 2020

Eutanásia | Sim, do catolicismo espera-se muito!


Num momento em que se dava como certo nada haver a fazer perante a reunião de condições contabilísticas parlamentares para legalizar a eutanásia, a Igreja Católica, através da Conferência Episcopal Portuguesa, veio manifestar o seu apoio aos que promovem uma iniciativa popular de referendo, após a coincidente manifestação pontifícia de oposição à legalização da eutanásia, expressa na mensagem para o dia do doente, celebrado neste mesmo dia 11 de fevereiro.
Já anteriormente alguns bispos, entre os quais D. António Moiteiro, Bispo de Aveiro, tinham assumido, no espaço público, posição de defesa inabalável do dever de cuidar sempre da vida humana.
Adivinhando-se este somar de posições católicas promotoras da inviolabilidade da vida, foram-se ouvindo vozes com o estafado (não) argumento da ilegitimidade da Igreja para se pronunciar sobre tal matéria.
Não nos deteremos na contra-argumentação teórica, dado que vamos vendo que os ouvidos, nestas horas, parecem ensurdecidos.
Propomo-nos, antes, evidenciar como esta posição inabalável de defesa da dignidade de toda a vida humana foi fundamental, numa outra fase da história em que se assistiu a semelhante vertigem avassaladora que foi tomando conta dos países ocidentais.
Também nessa hora, a voz católica se distinguiu pela sua segurança e foi garantia de defesa da vida humana perante aquilo que, pouco mais tarde, a história veio a demonstrar ter sido um erro em que se enredaram os países ditos desenvolvidos, em nome do argumento do progresso e do caminho legitimado por uma certa forma de ler a ciência e um humanismo que servia de disfarce a totalitarismos.
Referimo-nos à vertigem eugenística que tomou grande parte dos países do mundo, em particular, no contexto ocidental, período que descrevemos no livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’.
De finais do século XIX até à II Guerra Mundial, o mundo assistiu ao engrandecer da ‘onda eugenística’. Sob o pretexto de que a ciência nos concedia instrumentos para identificarmos os mais débeis de entre os humanos e de que havia que replicar, no âmbito social, aquilo que a mesma ciência nos evidenciava que acontecia na natureza, isto é, a seleção natural que ‘protegia’ os mais fortes e ‘abandonava’ os mais débeis, era preciso replicar, no âmbito jurídico, o mesmo raciocínio. Importa recordar, a título ilustrativo, que o criador da palavra ‘eugenismo’, Francis Galton, era primo de Darwin, propondo-se transpor para o âmbito social o que este identificara no âmbito natural. Afirmava, no seu livro ‘Inquiries into the human faculty’, que a ‘eugenia era «bom nascimento», entendendo-a como «a ciência para melhorar a espécie humana, dando às raças e estirpes de melhor sangue uma maior probabilidade de dominar rapidamente os menos dotados». (Segundo Leone|Privitera|Cunha - Dicionário de Bioética)
A ideia estava criada. Havia que dar tempo. E o tempo e a ideia avassaladora de que isso era progresso fizeram o seu caminho!
Como recorda Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).
Uma nota curiosa, porém, é a que registam os dois autores citados.
Ambos recordam que, nos países católicos, estas legislações não foram aceites (ver Pichot, p. 47; Ridley, p. 301), chegando Ridley a afirmar, com clareza que, ‘em países onde a influência da Igreja Católica era forte não existiram leis eugénicas’. (p. 301)
A história, a grande História, veio a demonstrar, com a II Guerra Mundial, que o eugenismo tinha sido um erro. Havia que recuperar o princípio da intocabilidade da vida humana.
A Igreja, como bem recorda D. António Moiteiro, na sua nota pastoral sobre a eutanásia, publicada em 2 de fevereiro de 2020, continuará a ser o ‘porto seguro’ para toda a vida humana.
Esta inviolabilidade que, em alguns momentos da sua História, a própria Igreja nem sempre honrou, soube a mesma Igreja aprender a proteger com os seus próprios erros. E porque soube aprender, pede aos demais que aprendam com ela.
Uma humildade que alguns teimam em não querer adotar.
Mas muito se espera da Igreja Católica. Isso se espera, hoje, em Portugal, quando se discute a possibilidade de legalizar a morte a pedido, ao arrepio do respeito pela inalienabilidade do direito à vida.
Como bem é recordado pelos honestos de entre nós, esta não é matéria de natureza religiosa, sendo, porém, que dos crentes se espera que sejam particularmente atentos. Conscientes, ainda assim, do que afirmava Norberto Bobbio, um descrente mas honesto pensador e político, quando se discutia, em Itália, a possibilidade da legalização do aborto: ‘não se pode deixar aos crentes o monopólio da vida humana’. Mas se o quiserem fazer, garantimos que honraremos essa confiança.
Porque muito se espera dos católicos quando se trata de respeito pelos mais frágeis de entre os humanos!

domingo, fevereiro 02, 2020

A EUTANÁSIA NÃO RESPEITA OS DIREITOS HUMANOS | É TÃO FRIA A MORTE!


O Parlamento agendou, para 20 de fevereiro, a discussão sobre a eutanásia.
A vertigem com que a Assembleia da República enredou esta matéria, como se se tratasse de uma questão menor, obriga a que todos nos demos conta do que está em causa.
Em primeiro lugar, é necessário que tomemos consciência de que a eutanásia é um ato deliberado de antecipação da morte, realizado por alguém incumbido de cuidar, a pedido daquele sobre quem recai esse mesmo ato.
Propositadamente, não acrescento o motivo, nesta breve definição. A razão para esta omissão prende-se com a constatação que podemos recolher dos países em que, lamentavelmente, esta prática foi legalizada. O motivo inicialmente invocado era o do sofrimento insuportável, mas, neste momento, a eutanásia já é praticada a pretexto de se estar em depressão crónica, por falta de sentido para a vida ou, inclusive, sob a capa do ‘consentimento presumido’.
É inquietante constatar que a história está a repetir o erro de outras fases. Também no início do século XX, se foi instalando a vertigem eugenística que levou dezenas de Estados à introdução de leis que esterilizaram pessoas em massa, que impediram casamentos a cidadãos de certas proveniências ou considerados ‘inferiores’, o que criou a predisposição para o que, de forma hedionda, veio a ocorrer no contexto da II Guerra Mundial.
Mas a memória é curta. E, a pretexto de que seja uma decisão legítima da autonomia pessoal, alguns legisladores pensam corresponder a um desejo humanamente sustentável.
Mas matar nunca poderá enquadrar-se no registo de um comportamento humanamente aceitável.
Mesmo que a pedido do próprio.
A inviolabilidade da vida humana decorre da própria dignidade. É o que afirma, com muita clareza, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no primeiro parágrafo do preâmbulo, quando proclama que os direitos humanos são ‘inalienáveis’. Literalmente, afirma-se: «Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;» (De acordo com o Diário da República Eletrónico, consultado em 2 de fevereiro de 2020). A inalienabilidade dos direitos humanos torna-os insuscetíveis de abdicação pessoal. Nem por decisão minha posso deixar de beneficiar do seu conteúdo. Ora, se, de acordo com o artigo 3º, ‘Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.’, o facto de se tratar de um direito inalienável constitui-o, no mesmo momento, em dever. Tenho o dever de proteger o meu próprio direito à vida.
A eutanásia, na medida em que nem sequer é um ato perpetrado pelo próprio sobre quem o mesmo recai, atenta contra o direito, seja por quem o executa, seja por quem o solicita, dado que é um pedido ilegítimo. Pedir a morte, sendo uma manifestação de um desejo, não pode ser reconhecido como um direito. Deve, antes, ser tomado como um pedido de ajuda. E era isso que deveria ser facultado por um Estado que se pretende de Direito. E não pode bastar ou sossegar a ideia de que outros Estados o fazem ou o acolheram no seu quadro jurídico. Assim acontece, por exemplo, com a pena de morte, aceite por mais de 90 países. O facto de ser aceite por quase metade dos países reconhecidos pela ONU não legitima a sua prática.

A eutanásia é um ato muito pouco moderno
A legalização da eutanásia vai no sentido contrário àquilo que deveria ser o caminho dos países civilizados e modernos. Pressupõe, aliás, uma visão profundamente individualista da vida, pouco consentânea com a cada vez mais óbvia interdependência humana e nasce de pressupostos totalmente errados.
Entre eles, para além do já denunciado preconceito de que o pedido de morte pudesse corresponder a um direito humano (nega-os, em vez de os assegurar!), parte de uma suposta alternativa já sobejamente denunciada por todos os que estão envolvidos nos cuidados dos que se encontram em fases terminais da vida. A alternativa a que aqui me refiro é a que pressupõe que quem não tem a possibilidade da eutanásia não possa senão morrer com enorme dor e sofrimento. De modo algum! A eutanásia é um ato de efetiva antecipação da morte, sabendo-se que há muitas outras alternativas que passam por cuidar da dor com medicamentos cada vez mais eficazes, sendo sabido que, como frequentemente afirmava o saudoso professor Daniel Serrão, se não se está a conseguir controlar a dor, então, há que procurar outra equipa médica que nos faça encontrar formas para que tal ocorra.

Um Parlamento deve proteger o seu povo
A eutanásia «é um método fácil de desistência», como bem recordava Verónica, uma enfermeira portuguesa que, em 2016, testemunhou, numa emissora de rádio, que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia de uma mulher de 70 anos bem de saúde, mas cansada da vida.
Não podemos deixar que o Parlamento decida sobre tão grave matéria, só porque tem uma maioria de deputados. Estarão, deste modo a representar o sentir de um país que sempre se pautou pela solidariedade? Ou teremos de concluir que a matriz de um povo em que mais de 70 % dos cidadãos se reconhecem cristãos não passa, já, de um mero desiderato sem correspondência com a realidade?
Recordo que, como bem observava um dos presidentes do Tribunal Constitucional de Itália, Gustavo Zagrebelsky, as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.»
A nossa democracia, com decisões como a que se propõe assumir o Parlamento, em 20 de fevereiro, corre o risco de redundar numa democracia cética, abrindo portas ao aparecimento de líderes que se considerem detentores do poder de tudo decidir.
Terminemos estas notas doridas com uma constatação. Contrariamente ao que defendem os que pretendem a legalização da eutanásia, esta ‘despenalização’ não afetará só os poucos que se diz que a pretendem pedir. Todos os cidadãos passarão a estar sob o peso desta possibilidade. Todo o cidadão que, em algum momento, sinta que a sua vida já está a ser peso para os demais, sentirá sobre os ombros a exigência velada de que peça, o mais brevemente possível, o seu fim, para que deixe de recair sobre os outros o peso de ter de cuidar de si. É disto que falam os que alertam para a desumanização que tal lei trará às relações para com os mais frágeis. E tudo ocorrerá no silêncio de uma cama de hospital, no segredo de um lar de idosos, nos mais recônditos lugares onde se deveria sentir o acompanhamento cuidadoso. Sobrará o pedido da antecipação da morte, de um após outro, sem que uns saibam dos outros. E tudo não será mais do que estatística.
É tão fria a morte!

sábado, janeiro 11, 2020

O rei vai nu… E querem amordaçar a criança que o denuncia!


Começo por partilhar uma inconfidência. Ponderei muito sobre se deveria publicar este texto. Confesso ter resistido a algum medo, mas, após prolongada indecisão, decidi-me pela sua publicação, em nome da verdade e da liberdade. Não lutámos pela liberdade (que liberdade, enfim?) para sucumbirmos aos que a dizem defender. Por isso, o texto viu a luz do dia…
Proponho-me problematizar os ditos direitos LGBTi+, num tempo tão marcado pela irreflexão e pela vertigem que a todos parece avassalar.

Nenhuma violência sobre inocentes pode ser aceite!
Importa começar por deixar muito claro que repudio qualquer forma de violência. Qualquer forma de violência é manifestação de incapacidade de diálogo, de reflexão, de abertura à discussão crítica, sendo exercício de prepotência sobre o outro. A violência sobre o outro inocente deve merecer toda a contestação e recusa.
Inclui-se nesta minha recusa a que for motivada pelas escolhas pessoais de qualquer natureza.
Bem certo que o princípio enunciado não implica a impossibilidade da discussão sobre as escolhas. Aceitar a pessoa não implica, necessariamente, aderir às suas escolhas. Esta é uma distinção para mim muito clara, desde sempre. Acolher a pessoa não tem de implicar acolher todas as suas opiniões e escolhas. Pelo contrário.
Ter bem claro que o dever de acolher toda a pessoa não implica aceitar todos os seus comportamentos e escolhas é um princípio basilar de todo o Estado de Direito. É a esta luz que se sustenta, por exemplo, que o crime não apaga a dignidade do humano que é criminoso.
Definidos pressupostos para mim incontestáveis, passo à segunda parte desta reflexão.

Todos os desejos são direitos?
Considero que, na discussão sobre os direitos ditos ‘LGBTI+’, há, para além de uma indefinição sobre aquilo de que estamos a falar (Parece-me que, muitas vezes, estamos a envolver a recusa legitimíssima da violência sobre os que se definem como LGBTI+ num emaranhado que pretende chegar a outros fins, tomando como violência a simples discussão honesta e racional), um pressuposto que ouso denunciar. Há, na afirmação sobre direitos LGBTI+, uma demasiado rápida identificação entre desejos e direitos. Dizendo de modo simples… Nem todos os desejos são, necessariamente, direitos. O meu forte desejo de possuir algo que pertence a outro não me constitui, só por si, em seu proprietário. Há que reunir condições para que o meu desejo se configure num direito. E a condição fundamental, como veremos, adiante, é respeitar a justiça.
O caso mais evidente de confusão entre desejos e direitos é o que se refere ao ‘direito ao filho’, por parte das uniões homossexuais.
Antes de avançarmos na discussão, importa tomar consciência de que, no caso português, as uniões homossexuais representam menos de 2% do total dos casamentos realizados. Segundo números do Pordata, em 2018, de um total de 34.637 casamentos, só 607 foram uniões homossexuais, representando menos de 2%, sendo que já estamos longe do universo de 103.125 casamentos realizados em 1975. Estamos, por isso, a falar de uma minoria efetivamente com grande poder reivindicativo e de influência.

Há um direito ao filho?
Regressemos à questão do ‘direito ao filho’.
Importa começar por perguntar se há um direito a ter filhos.
A resposta, honesta e situada no âmbito de um Direito puro, preocupado com o rigor racional, não pode ser senão que ‘não há um direito a ter filhos’. Os filhos não são um direito. Se o fossem, seriam reduzidos à condição de um bem que se possui e que decorreria de um direito anterior a eles próprios. Na verdade, colocar o problema assim inverte a natureza do filho como pessoa e como ser portador de uma dignidade inviolável. Pelo contrário, o filho é anterior ao próprio Direito (ius), que se configura como uma estrutura tutelar que o protege. Dizendo de outro modo. O filho existe e é porque existe que é necessário que o Direito o proteja. Ele existe e constitui-se como um dever para os pais que têm o direito – isso sim – de não serem impedidos de gerar os seus filhos.
Repare-se como tudo fica invertido.
A esta luz, a factualidade do ser que emerge da relação, o filho, é anterior ao direito de o possuir. E é por isso que todo o Direito internacional sublinha que toda a reflexão a fazer sobre os filhos deve acautelar o ‘superior interesse da criança’. O centro é o filho.
De forma límpida, poderemos dizer que o filho acontece e o Direito protege-o.
Se fosse de outro modo, se o filho fosse um direito dos pais, então, teria de se concluir que era inconstitucional ter de pagar qualquer tratamento para poder ter filhos. E o Estado teria de garantir todas as condições para que todos pudessem ter filhos.
Ninguém arriscou alguma vez afirmar tal coisa. E porquê? Porque, intuitivamente, todos percebemos que os filhos não são um direito. São anteriores ao direito de os ‘possuirmos’, pois tal torná-los-ia ‘coisas’.

O que é a justiça? E o que é justo? Toda a lei é justa?
Juntemos a esta reflexão um outro dado relevante.
Como deveremos definir o que é justo, o que é a justiça?
Sim, porque toda a lei deve procurar servir a justiça, sob pena de, ao reconhecer como sendo um direito algo que não o é, estar a cometer uma injustiça.
Recolhamos a definição clássica de justiça proposta por Ulpiano (jurista romano do século II-III d.C.). Uma definição clássica trazida à discussão no âmbito do Direito. ‘A justiça é a vontade firme e constante de atribuir a cada um o que lhe é devido’.
Ora, aplicando à união homossexual esta definição, cabe perguntar se é devido, a uma união incapaz de gerar, um bem que já vimos que não se pode considerar ‘coisificável’, e por isso, atribuível a alguém. A resposta a tal pergunta não pode ser senão que não é devido, pelas duas razões já enunciadas: por um lado, o filho não é um direito de alguém (emerge, de forma natural, de uma relação que reúne as condições para que ele seja gerado) e, por outro, só por uma arbitrariedade do legislador é que esse bem que, afinal, não é um direito atribuível, pode ser considerado ‘devido’ a uma união que, sem essa arbitrariedade, nunca o possuiria.
O legislador, ao atribuir a alguém (neste caso, a uma união em que o filho não pode jamais acontecer, de forma natural), arbitrariamente, um direito que não é devido, comete uma injustiça. E, talvez, por esta sensação de injustiça, tantos continuem a contestar o reconhecimento do estatuto de ‘casamento’ à união homossexual, por, ao casamento se associar a possibilidade dos filhos, cenário só possível por via deste ‘artificialismo jurídico’ acima descrito.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e o ‘casamento homossexual’
Importa afirmar, ainda, que a minha reflexão não está mal acompanhada. (Sugiro, para quem queira consubstanciar melhor uma leitura estruturada sobre esta matéria, a leitura do livro de Gabriele Kuby, «Revolução sexual global», recentemente publicado pela Editora Principia.)
Em 16 de março de 2010, o constitucionalista Jorge Miranda sustentava que o reconhecimento da união homossexual como casamento era desconforme à Constituição. Uma conclusão que vai no mesmo sentido de decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Como já recordei em outros artigos, «este Tribunal veio, em 9 de junho de 2016, afirmar, inequivocamente, que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem não reconhece que o casamento homossexual seja um direito humano e, por isso, não obriga nenhum Estado a abrir o direito ao casamento a um casal homossexual. É, ainda, mais interessante esta deliberação porque confirma anteriores decisões que vão no mesmo sentido, de 24 de junho de 2010, de 16 de julho de 2014 e de 21 de julho de 2015, sendo que a deliberação de junho de 2016, reconhecida como definitiva em 9 de setembro, teve a aprovação dos 47 juízes que compõem a Câmara que assumiu tal posição.» Para algum leitor mais curioso, deixo aqui o link para que possa confirmar a verdade destas afirmações: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436.
No mesmo sentido, para quem possa, ainda, entender que esta minha posição é destituída de cabimento, bastará ler com atenção o que afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 16º, quando fala sobre esta matéria, de acordo com a tradução constante do Diário da República Eletrónico (lido em 3 de janeiro de 2020):
«1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.
2.O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos.
3.A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.»
Valerá a pena perguntar o que quer dizer este documento quando afirma ‘o homem e a mulher têm o direito de casar’? Ou o que quer afirmar-se quando se diz que ‘a família é o elemento natural’?
Muitos dirão que a declaração já é de 1948 e que está datada.
Assim também poderá dizer-se em relação aos direitos de autor, por exemplo, num tempo de internet. E, porém, não só não se contesta o direito como se criam diretivas muito apertadas para o proteger.
Que interesses servem, então, este combate cego contra a família?
Porque se quer considerar que quem defende a família natural é conservador ou radical?
Como foi possível que tão poucos conseguissem mudar o que devia ser óbvio para todos?

Estado de Direito ou Estado de quem tem o poder?
Deixem-me trazer um pouco de emoção a um texto tão racionalmente organizado.
Todos nos emocionamos com quem fica órfão. Como não?
Que não tem, entre os seus amigos, entre os seus mais próximos, alguém que perdeu o pai, ou que perdeu a mãe ou, ainda mais dramaticamente, ambos?
O pai ou a mãe ausentes deixaram uma marca inapagável. Sobreviveu-se, mas a ausência permaneceu marcada.
A aceitação jurídica da adoção de um filho por uma união homossexual é um decreto de orfandade legitimada pela lei. E isso o Estado nunca deveria acolher, em nome do superior interesse da criança. Porquê dar-lhe apenas uma parte quando pode ter o todo?
Importa distinguir…
Que os adultos queiram unir-se numa união com direitos salvaguardados deverá merecer análise e ser tutelado pelo direito. Daqui não deveria, porém, ter-se pretendido equiparar a outra união da qual decorre a descendência e que, em seu nome e para seu benefício (da descendência), deve ter condições diversas.
Fora disto, o Estado de Direito transforma-se num Estado Arbitrário. O primeiro passo para os totalitarismos.
Quem não sente, já, o seu suave odor?

sábado, dezembro 07, 2019

O rasgão



Causa-me perplexidade ver a facilidade com que nos estamos a habituar à ideia de que nos é legítimo destruir os nossos só porque são nossos. Uns, de facto, outros, de direito.
De facto…
É inacreditável como se vêm avolumando as notícias de que as relações que deveriam ser de amor estão envolvidas em violência. Porquê?
É inacreditável como abandonamos e rejeitamos os mais frágeis de entre nós, seja na fase do berço, seja já adultos, fazendo desta uma sociedade que se satisfaz em proclamar princípios, mas que os contradiz, a cada instante.
Mas não deixa de ser igualmente inquietante ver como deixámos que se tornasse legítimo destruir os nossos, no plano do direito.
De direito…
Deixámos que se instalasse, de direito, a violência de uma mãe sobre o seu filho ainda não nascido. Deixámos, legitimando, aplaudindo e chegando a rejeitar os que ousam retomar a inquietude que nunca nos deveria ter abandonado.
Como podemos, depois de legitimar tal violência, ficar surpreendidos que haja outros sinais de violência quando permitimos e acolhemos como boa a violência naquele que é o último porto seguro da nossa existência: o do colo da mãe?
E, agora, depois de termos legitimado tal violência, propomo-nos dar mais um passo.
Já não nos bastava ter legitimado a violência da mãe sobre o filho. Faltava-nos legitimar a violência do filho sobre a mãe.
O Parlamento prepara-se para a legitimar, legalizando a eutanásia. De mansinho, bem certo. Já assim fora, em 1984 e nos referendos de 1998 e 2007. Os mais de 185 mil abortos entretanto realizados demonstram que a exceção se tornou banalidade.
Como, depois, poderemos ficar surpreendidos que se agudizem os sinais da violência numa sociedade que a assume como um direito?
E muitos defendem tal direito em nome de um suposto avanço. Como se não tivéssemos, ao longo da história, já percorrido tais caminhos que a vitória da civilização e da humanidade sobre a incivilização e a desumanidade tinha deixado para trás. (Não posso deixar de recordar, neste contexto, o que já repetidas vezes fui recuperando, em alguns dos meus textos: o Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.)
O que fazemos, agora, não é andar para diante: é regressar a lugares onde pensávamos já não querer voltar.
Também os gregos já abandonaram os seus idosos e abortaram e rejeitaram os seus débeis (Hipócrates, que viveu entre 460 e 370 a.C., afirmava, no seu célebre juramento: ‘não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva’, o que permite concluir ser uma prática então existente que Hipócrates repudia); o mesmo se passava entre os povos do centro da Europa que venceram os romanos ou no Oriente longínquo e em tantas e tantas tribos daqui e dali. Mas a civilização marcadamente personalista e humanizada foi vencendo tais práticas e realizando o ideal do respeito inviolável pela pessoa humana.
O que se está, portanto, a pretender, não é avançar, mas retroceder. E se fosse um passo em frente seria semelhante ao de alguém que, vestindo um especial fato domingueiro, se apercebesse de que este ficara preso a um pequeno prego. Se der um passo adiante, tal significará abrir um rasgão provavelmente irreparável. Constatando tal obstáculo, melhor será dar um passo atrás que assegure que se desprendem as vestes de tal entrave. Avançar significará consolidar o rasgão e decretar o fim da tão amada veste.
Estamos aqui! O rasgão está a abrir-se, de forma cada vez mais profunda. Haveria que dar o passo atrás (que, como vimos, seria o verdadeiro progresso rumo à humanização da sociedade, contrariando o que muitos pretendem dizer, ao rotular de posição conservadora ou passadista!) para garantir que não se rompe, em definitivo, a solidez do nosso tecido (social). Mas insiste-se na indiferença para com o risco associado ao prego a que se prendeu o nosso fato.
Até quando continuará a abrir-se o rasgão? Até quando resistirá o tecido tão penosamente elaborado em demorado tear?


quarta-feira, novembro 20, 2019

SESSÃO DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO ‘BEM-NASCIDO… MAL-NASCIDO…’ | LIVRO ANALISA A CONDIÇÃO HUMANA E A ÉTICA A PARTIR DA DEFICIÊNCIA


Realiza-se, no dia 3 de dezembro de 2019, no Centro Universitário Fé e Cultura (Aveiro), às 21.30h., sessão de apresentação do livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’, da autoria de Luís Manuel Pereira da Silva (notas biográficas abaixo).
A sessão iniciará com momento musical de grande simbologia, dado que será interpretada, por Bernardo Gomes, uma obra de Francesco Landini, um compositor cego do século XIV. Com este momento, pretende o autor homenagear os verdadeiros protagonistas deste ensaio: a deficiência e as pessoas que se encontram particularmente marcadas por esta condição. Também a data escolhida para a realização desta sessão – 3 de dezembro, dia internacional das pessoas com deficiência – está marcada por esta simbologia.
A obra será apresentada por Walter Osswald (Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Medicina do Porto e autor do prefácio), João Manuel Duque (Diretor do Centro Regional da Universidade Católica – Braga e autor do posfácio) e António Jorge Ferreira (editor da Tempo Novo Editora).

Opções simbólicas da capa e título
O autor de «Bem-nascido… Mal-nascido…», ao optar pela grafia ‘deficiente’ de «mal-nascido» (em vez de «malnascido»), propõe-se, por um lado, destacar ‘mal’, criando contraponto com ‘bem’, e antecipa, com esta opção, o conteúdo sobre o qual se reflete, neste ensaio: a condição imperfeita da humanidade, tão vulnerável às decisões dos que, perante a fragilidade, cedem à sedução do paradigma eugénico. «Bem-nascido… Mal-nascido…» reflete sobre a tão desejada mas sempre impossível perfeição e os reais filhos marcados pela omnipresente imperfeição, imperfeição discretamente denunciada, também, nas aspas ‘deficientes’ que envolvem ‘filho perfeito”.
A força simbólica do malmequer que se desfolha, aplicada à condição da deficiência nas sociedades atuais, é tão impressiva que a nenhum leitor atento deixará de comover e inquietar.

Breve apresentação do livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’
A obra agora editada parte da reflexão realizada no contexto do Mestrado em Bioética, concretizado no Instituto de Bioética da UCP – Porto, com acrescentos posteriores que conferem particular atualidade às ideias aqui apresentadas. É, ainda, uma obra em que o autor cria: cria ideias novas e novos termos, procurando, deste modo, desbravar novas vias para uma bioética de matriz personalista.
Muitas são as interrogações a que se propõe responder este livro:
‘O que diz sobre nós a deficiência? O que diz sobre quem somos a nossa atitude ética perante a pessoa com deficiência? Porque é difícil encontrar consensos em ética? Assistimos ao emergir de um paradigma eugénico? Que retórica adota a comunicação social sobre a deficiência e o que nos dizem os seus silêncios e a suas opções de destaque? Temos uma legislação com marcas de eugenismo? E o que nos diz a história sobre os riscos de um vertigem eugenística, consequência do efeito de ‘rampa deslizante’? Que ideia de liberdade pressupomos quando nos permitimos eliminar os mais frágeis de entre nós?’
Esta é uma obra que enfrenta, com coragem e de forma ‘brilhante e […] irrefutável’ (prefácio), os desafios que a deficiência coloca à condição humana, reconhecendo naquela a marca da nossa própria humanização, ou, como bem recorda João Manuel Duque, no posfácio, ‘a verdade e a grandeza da humanidade reside, precisamente, no reconhecimento livre das suas limitações, que significam a experiência da vulnerabilidade.’
De forma lapidar, Walter Osswald, no prefácio, descreve esta obra como uma ‘bela contribuição […]: ao ganho ético que a sua leitura nos proporciona, dado o seu caráter verdadeiramente inovador, adiciona-se o prazer de nos familiarizarmos com um texto solidamente construído e literariamente sedutor.’
Esta edição é solidária, revertendo um euro da venda de cada livro para duas instituições: APCDI (Associação Pro-Cidadão Deficiente integrado – Pessegueiro do Vouga) e ADAV-Aveiro (Associação de Defesa e Apoio da Vida).

Breve biografia do autor (mais notas abaixo)
Licenciado em Teologia (UCP), Mestre em Bioética (UCP), Professor de EMRC. Preside à comissão diocesana da cultura de Aveiro. Participa em conferências, debates e outras iniciativas, dedicadas a matérias de educação, teologia e bioética. Publica, regularmente, artigos de opinião em revistas e jornais, debruçando-se sobre as matérias em que se especializou. É casado com Cláudia Macedo e pai do João José e da Maria Marta.

Publicou, em 2004, «Teologia, ciência e verdade – condições para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg».
É um dos autores convidados para a obra coletiva, Portugal Católico, com artigo sobre A Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas. Livro coordenado por José Eduardo Franco e José Carlos Seabra Pereira, com edição do Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Coordenou, entre 2007 e 2011, a equipa que elaborou os manuais (de que é coautor) do ensino secundário de EMRC, editados pela Fundação SNEC:




O autor
Biografia
Luís Manuel Pereira da Silva nasceu na região de Champagne, em França, na cidade de Epernay, tendo vivido a sua infância em Pessegueiro do Vouga.
Frequentou os Seminários de Santa Joana Princesa, em Aveiro, e da Sagrada Família, em Coimbra, de que guarda marcantes e gratas memórias.
Licenciou-se em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa (UCP), com tese sobre o estatuto epistemológico da Teologia segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg. (17 valores)
Obteve, no Instituto de Bioética da UCP, pós-graduação e mestrado em Bioética, avaliados com menção de «Summa Cum Laude» (19 valores).
É professor de EMRC no Agrupamento de Escolas de Albergaria-a-Velha e foi, durante 10 anos, professor em Sever do Vouga.
Foi membro da direção do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro (2008-2014), coordenando tertúlias, simpósios, exposições, ciclos de cinema, participando na criação do prémio «Póvoa dos Reis – cientista e padre», entre outras iniciativas. Foi docente e formador neste Instituto de Ciências Religiosas e professor convidado no Instituto Superior de Estudos Teológicos (Coimbra), em 2005-2006. Integra o corpo docente do Centro de Formação D. António Marcelino, lecionando no Curso Básico teológico-pastoral.
É autor de manuais escolares de EMRC, a convite do Secretariado Nacional da Educação Cristã.
É sócio fundador da ADAV-Aveiro (Associação de Defesa e Apoio da Vida), a que preside, desde 2009, tendo coordenado a edição do livro «A vida conta… branco no preto».
Preside, desde dezembro de 2015, à Comissão Diocesana da Cultura – Aveiro. Integrou a equipa nacional da Acção Católica Rural. É coordenador do pólo de Aveiro do Centro de Estudos de Bioética. Foi membro da Comissão Diocesana «Justiça e Paz», entre 2005 e 2009. Foi, em 2002, delegado juvenil nacional ao Simpósio dos Bispos Europeus, realizado em Roma.
Tem recebido prémios, enquanto professor, entre os quais, o prémio nacional «Escola Ativa», atribuído pela Associação Bandeira Azul Europeia, enquanto coordenador, na Escola Secundária de Sever do Vouga, do projeto «Jovens Repórteres para o Ambiente»; o prémio distrital «Escola Alerta», atribuído pelo Instituto Nacional para a Reabilitação, pela coordenação de projeto escolar inovador na área da integração de pessoas portadoras de deficiência; «Bíblia Moov Jovem», atribuído, pela Sociedade Bíblica, aos filmes «Emilagrando» (2017) e «Noé – acque di Dio» (2018), enquanto coordenador do projeto com o professor Paulo Calhau.
Participa em conferências, debates e outras iniciativas, dedicadas a matérias de educação, teologia e bioética. Publica, regularmente, artigos de opinião em revistas e jornais, debruçando-se sobre as matérias em que se especializou.
É casado com Cláudia Macedo e pai do João José e da Maria Marta.

Bibliografia
Publicou, em 2004, «Teologia, ciência e verdade – condições para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg».
É um dos autores convidados para a obra coletiva, Portugal Católico, com artigo sobre A Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas. Livro coordenador por José Eduardo Franco e José Carlos Seabra Pereira, com edição do Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Coordenou, entre 2007 e 2011, a equipa que elaborou os manuais (de que é coautor) do ensino secundário de EMRC, editados pela Fundação SNEC:
- Política, ética e Religião;
- Valores e ética Cristã;
- Os novos movimentos religiosos;
- Igualdade de oportunidades;
- Amor e sexualidade;
- A Arte cristã;
- A civilização do amor;
- A dignidade do trabalho;
- A comunidade dos crentes em Cristo.
Em 2014, redigiu, em coautoria, quatro novas unidades letivas, editadas pela Fundação SNEC:
- Política, ética e Religião;
- Valores e ética Cristã;
- A civilização do amor;
- Ética e economia.
Coordenou e prefaciou a edição do livro «A vida conta… branco no preto», em 2005, publicado pela editora Tempo Novo.
Foi coordenador, enquanto presidente da Comissão Diocesana da Cultura, da edição da peça de teatro «Fracassos da Corte», obra do século XVII, desaparecida e inédita em português, dedicada a Santa Joana Princesa. Publicação da editora Tempo Novo, em maio de 2017.
Foi diretor da revista de teologia Dabar e fundou a revista Signum, tendo sido o seu primeiro diretor. Integrou o conselho redatorial da revista Práxis. Integra o conselho redatorial da revista «Igreja Aveirense», onde tem artigos publicados. Coordena as publicações no site da Comissão Diocesana da Cultura, http://diocese-aveiro.pt/cultura/
Tem mais de cem artigos publicados nas revistas Dabar, Signum, Theologica, Práxis, Ensaios de Bioética, Estudos Teológicos, Mundo Rural, etc., e nos jornais Terras do Vouga, Correio do Vouga, entre outros, repercutindo parte destas reflexões no seu blogue www.teologicus.blogspot.com.
É coautor do guião de animadores Faz-te ao caminho (para animadores de grupos juvenis da ACR – Acção Católica Rural) – 2004-2005, e do guião de animadores Sonhar e desenhar um mundo melhor (para animadores de grupos infantis da ACR – Acção Católica Rural) – 2005-2006.
É tradutor do livro Xavier Basurko - Para viver o Domingo, editado pela Gráfica de Coimbra, em 2001, e do livro A Família na Doutrina Social da Igreja, edição do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro.


sexta-feira, outubro 25, 2019

A vertigem eugenística | ‘Respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se pudéssemos, não terias nascido!’



Esta é a história de uma criança sem rosto, mas com nome: Rodrigo. A ela associa-se o drama da impossibilidade de se preparar o nascimento de uma criança marcada pela deficiência porque, por uma suposta (ainda não demonstrada) negligência médica, a informação sobre a real condição deste Rodrigo foi omitida.
Esperava eu que fosse disto que se estivesse a falar: da preparação para o nascimento de uma criança marcada pela deficiência.
Mas a insistência noutra tecla permitiu-me despertar do sonho em que estava.
O que se discutia não era a gravidade da negligência que tornou impossível preparar, com cuidado, e envolvendo a família e a sociedade, o nascimento de uma criança a quem deveria proporcionar-se o máximo de conforto, aconchego e cuidado para que pudesse nascer com amor e, se a tal estivesse destinada pela natureza, morrer acompanhada.
Mas despertei deste sonho.
O que se discutia era que a informação sobre o estado da criança teria sido importante para determinar o seu fim.
Despertei de um sonho para acordar num pesadelo.
Não é esta a mesma sociedade que (muito bem!) se mobiliza em prol da equiparação dos atletas paraolímpicos aos demais atletas, não é a mesma que discute a inclusão da deficiência nas nossas escolas, que inclui em governos pessoas portadoras de deficiência porque ela não deve ser fator de discriminação?!
Mas, ao ouvido, esta mesma sociedade sussurra, maviosamente: ‘respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se fosse por nós, não terias nascido’!
Assusta esta vertigem eugenística, disponível, de forma subtil e progressiva, para aceitar uma sociedade de perfeitos, de puros. Uma sociedade como a que, entre o início do século XX e a II Guerra Mundial, criou a cultura favorável ao que veio a acontecer, às mãos dos grandes eugenistas da história, cujo nome nos deveria bastar para não repetir tamanhas atrocidades.
O que deveria estar a discutir-se, para além da obrigação da verdade da informação, era se é justa uma lei que prevê que, por se ser malformado, se pode ser impedido de nascer. Esta é uma lei, aliás, que gera conflitos como o que se verificou, na França, a propósito do celebérrimo caso ‘Perruche’, iniciado por ocasião do nascimento, em 1982, de uma criança da família Perruche com malformações não detetadas durante a gravidez, a qual pediu indemnização por ter sido impedida de ser abortada. Após muitas disputas, avanços e recuos, em 2002, foi promulgada a Lei nº 2002-303, de 4 de março de 2002, que sustenta que não existe um direito a não nascer.
Mas é bom sublinhar que o conflito nasceu no momento em que se permitiu que a legislação (a francesa como a portuguesa) desblindasse a proteção da vida humana, permitindo a sua eliminação por motivo de deficiência.
Esta deveria ser uma matéria a retomar, não para, como pretendem alguns, alargar os prazos para além das 24 semanas atualmente legisladas, mas para nos interrogarmos em conjunto sobre se, de facto, pretendemos ser consequentes com o nosso princípio de que a inclusão da pessoa portadora com deficiência é para ser efetiva e não uma hipócrita sensibilidade momentânea. A sermos consequentes, perante a pessoa com deficiência, não podemos considerar que a sua situação é um problema das famílias de que elas fazem parte, mas um dever para todos nós. Quanto se concede do orçamento de Estado para o efetivo apoio destas famílias? Quanto consagramos dos espaços de lazer para o acolhimento destas famílias? Para quando a definição de famílias de cuidado capazes de apoiar, em proximidade, as que integram pessoas portadoras de deficiência? Onde estão as equipas de apoio às famílias a quem é comunicada a notícia de que a sua criança vai (ou pode vir a) ser portadora de uma deficiência, equipas que deveriam ajudar a acolher e a encontrar esperança quando tudo pode parecer nebuloso? Quem garante que não se fica só perante esta notícia, mas, pelo contrário, se é acompanhado e auxiliado a acolher a vida, qualquer que seja a sua condição? São tantas as interrogações que deveríamos colocar-nos para nos pormos em busca das melhores soluções para que a deficiência fosse uma presença efetiva e acolhida na nossa sociedade!
 Na capacidade que uma sociedade tem de integrar os seus mais frágeis é que se evidencia a sua capacidade de humanização e a sua densidade civilizacional.
De outro modo, estaremos prontos a gritar a plenos pulmões que esta é uma sociedade não inclusiva quando, ao ouvido, sussurramos aos ouvidos daqueles que dizemos proteger que a sua vida está a mais.
De que lado queremos estar? É que o lado da deficiência é o lado de todos os humanos, pois, de algum modo, todos somos imperfeitos. Nos portadores de deficiência, a nossa comum imperfeição é, porém, mais visível, e, por isso, mais incómoda. Não nos queremos reconhecer frágeis na sua fragilidade.


quarta-feira, outubro 02, 2019

E se a um cidadão correspondesse mesmo um voto? Um exercício teórico… para tornar a realidade mais justa!


O nosso sistema eleitoral apresenta fragilidades significativas (para ser eufemístico!). De acordo com o sistema atualmente vigente, o voto dos cidadãos não tem valor igual em todos os círculos eleitorais. É, aliás, evidente que o voto de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal ou Aveiro é claramente mais relevante do que o voto de Portalegre, Bragança, Beja, Guarda ou Évora.
Mas, supostamente, os cidadãos destes últimos distritos são tão portugueses como os restantes.
Com efeito, o sistema eleitoral português prevê que se calcule, antes de eleições, qual o número de deputados a eleger por círculo, sendo feito esse cálculo com base no número de eleitores recenseados.
Tal situação tem um motivo associado à perspetiva de que cada deputado represente o eleitorado que o elegeu.
Se tal fosse efetivo, poderíamos aceitar esta solução como um mal menor.
Contudo, depois do célebre caso do ‘orçamento do queijo limiano’, em 2001 e 2002, em que um deputado eleito pelo círculo de Viana do Castelo viabilizou o orçamento de um governo minoritário, a troco de investimento na sua região, o que lhe valeu a expulsão do seu partido e acesa discussão, no país, sobre a legitimidade da sua ação, ficou claro que os círculos eleitorais não representavam qualquer valia acrescida para os cidadãos, constituindo-se, pelo contrário, num eventual fator de injustiça (em termos de sistema eleitoral) que deveria merecer acesa discussão por parte dos portugueses. Senão, vejamos.
O sistema eleitoral em vigor permite, entre outras coisas, maiorias absolutas sem que se tenha uma maioria absoluta de votos. Basta que se tenha a sorte (ou desenvolvido estratégia matemática para tal) de se ser mais votado nos círculos onde mais deputados são eleitos.
Por absurdo, pode ocorrer que tenha maioria no parlamento um partido que seja, por exemplo, o menos votado, ainda que a probabilidade seja baixa.
Tomemos um exemplo.
Aveiro, que apresenta, segundo mapa publicado em 1 de março de 2019, 645.212 eleitores, constitui-se como um círculo eleitoral onde serão escolhidos 16 deputados. Bragança, que tem 142603 eleitores, elege 3 deputados.
Imaginemos, por absurdo, que o dia de eleições se apresenta, por terras de Aveiro, tentadoramente quente e apetecível para uma visita à praia. Imagine-se, ainda, que tal favorece uma abstenção que ronde os 80%. Vão votar, em Aveiro, nesse dia, 129 mil eleitores. Bragança, por oposição, não bafejada pelo mar, tem chuva todo o dia e consegue ter uma participação quase absoluta. Os votantes rondam os 130 mil.
Bragança e os seus 130 mil elegem 3 deputados, enquanto Aveiro, com os seus 129 mil, elege 16 deputados.
Imagine-se este cenário aplicado na relação entre os círculos mais populosos - Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro que elegem, juntos, 141 deputados - em contraste com Portalegre, Bragança, Beja Évora e Guarda, que elegem, em conjunto, 14 deputados.
Imagine-se que a abstenção é avassaladora, nos primeiros cinco, e quase nula, nos últimos. A relação entre estes fatores poderá criar um cenário em que partidos menos votados, no total, mas cujos votos recaem sobre os cinco primeiros círculos, conseguem uma maioria parlamentar que, afinal, não corresponde à maioria dos votos dos participantes nas eleições.
Face a esta constatação, depreende-se, antes de mais, que importa ter coragem para enfrentar esta questão que é de justiça e procurar soluções. A justiça e a verdade deveriam prevalecer sobre o tacticismo e os interesses instalados. A não ser assim, quando os cidadãos se convencerem de que o sistema é injusto, será o próprio regime a ser questionado. Importa, por isso, ser prudente e previdente, a fim de evitar os danos mais gravosos por não se ter tido coragem para ir procurando soluções adequadas.
Uma das primeiras alterações a ponderar era de pequena monta e mais não é do que uma alteração de procedimento. Em vez de se calcular o número de deputados a eleger com base no número de eleitores (potenciais) deveria calcular-se aquele número com base na participação real dos votantes. Só no fim das eleições e depois de apurar a abstenção e o número total de votantes é que se apuraria qual o número correspondente a cada círculo, com base no número efetivo de votantes em cada um deles.
Tal teria uma consequência efetiva e muito provável: a diminuição da abstenção, pois os cidadãos perceberiam, no imediato, que a sua não participação afetaria a sua representação nacional. Quantos menos votantes num círculo, menor o número de deputados na assembleia da República.
Outra consequência seria a maior valorização, em tempo de campanha, dos círculos com menos votantes, pois importaria mobilizar todos os eleitores pois, até ao momento das eleições, não passariam de potenciais votantes. Seria necessária a sua mobilização para que se tornassem ‘votantes’ e não apenas potenciais ‘votantes’, como agora acontece.
Uma terceira consequência verificar-se-ia nas escolhas dos membros das listas que deixariam de corresponder a uma estratégia de escolha dos círculos mais expressivos para redundar num reconhecimento da igual e justa condição de todos os círculos.
Tudo isto em resultado de uma pequena alteração que ainda não chega à de fundo que é haver um sistema eleitoral em que não há desperdício de votos. Tal é praticamente impossível num sistema em que a eleição ocorre por círculos eleitorais. Só através de listas nacionais seria possível superar este problema.
E, nesse caso, seria de ponderar uma solução. A lista seria nacional, mas articulada com os círculos eleitorais em que, como resultado da participação eleitoral, se tornaria obrigatório que determinado partido repercutisse no número de deputados a compor a sua bancada uma percentagem correspondente às votações, por cada círculo. Este modelo juntaria o melhor de dois mundos: a certeza de que não se perderiam votos (todos eram contados e distribuídos, a nível nacional), mas repercutindo-se, de seguida, a votação obtida em cada círculo, por partido, na sua representação, em termos de bancada. Para exemplificar: se um partido obtivesse votação nacional que permitisse, por exemplo, eleger 5 deputados, eles teriam de provir dos círculos onde a sua votação correspondesse, em termos relativos, à sua maior representatividade.
Soma-se, a esta preocupação com a justiça eleitoral e efetiva repercussão do desejo expresso pelos votantes, uma outra que venho defendendo, há uns 10 anos (veja-se este artigo publicado em fevereiro de 2011: http://teologicus.blogspot.com/2011/02/tres-sugestoes-para-democratizar.html): a relevância do voto expresso pelos que participam nas eleições, manifestando-se não representados por qualquer dos partidos submetidos a sufrágio e que anulam ou deixam o seu voto em branco. Defendo, desde então, que as bancadas devem ficar vazias, até ao limite constitucional dos 180 deputados, limite abaixo do qual se imporia a obrigação de realização de novas eleições.
É também matéria a discutir, pois deverá considerar-se muito distinta a opção de quem se abstém (pode ter razões ou total falta delas!) em relação à de quem participa mas anula ou deixa em branco o seu voto. É uma manifestação de vontade e opinião que deveria repercutir-se no hemiciclo.
Este pode não ser mais do que um exercício teórico, mas que parte da real situação em que se toma a decisão sobre quem nos deverá governar, pelo que aos cidadãos também caberá ter uma palavra em tão decisiva matéria.

Sabes, leitor... | 21 | Marca de água do livro de Teresa de Melo Ribeiro, José Ribeiro e Castro e Isilda Pegado (coordenação), 'My body, my life: no debate sobre o aborto'

  Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas Parceria: Federação Po...