O Parlamento agendou, para 20 de
fevereiro, a discussão sobre a eutanásia.
A vertigem com que a Assembleia
da República enredou esta matéria, como se se tratasse de uma questão menor,
obriga a que todos nos demos conta do que está em causa.
Em primeiro lugar, é necessário
que tomemos consciência de que a eutanásia é um ato deliberado de antecipação
da morte, realizado por alguém incumbido de cuidar, a pedido daquele sobre quem
recai esse mesmo ato.
Propositadamente, não acrescento
o motivo, nesta breve definição. A razão para esta omissão prende-se com a
constatação que podemos recolher dos países em que, lamentavelmente, esta
prática foi legalizada. O motivo inicialmente invocado era o do sofrimento
insuportável, mas, neste momento, a eutanásia já é praticada a pretexto de se
estar em depressão crónica, por falta de sentido para a vida ou, inclusive, sob
a capa do ‘consentimento presumido’.
É inquietante constatar que a
história está a repetir o erro de outras fases. Também no início do século XX,
se foi instalando a vertigem eugenística que levou dezenas de Estados à
introdução de leis que esterilizaram pessoas em massa, que impediram casamentos
a cidadãos de certas proveniências ou considerados ‘inferiores’, o que criou a
predisposição para o que, de forma hedionda, veio a ocorrer no contexto da II
Guerra Mundial.
Mas a memória é curta. E, a
pretexto de que seja uma decisão legítima da autonomia pessoal, alguns
legisladores pensam corresponder a um desejo humanamente sustentável.
Mas matar nunca poderá
enquadrar-se no registo de um comportamento humanamente aceitável.
Mesmo que a pedido do próprio.
A inviolabilidade da vida humana
decorre da própria dignidade. É o que afirma, com muita clareza, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, no primeiro parágrafo do preâmbulo, quando
proclama que os direitos humanos são ‘inalienáveis’. Literalmente, afirma-se: «Considerando
que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo;» (De acordo com o Diário da República Eletrónico,
consultado em 2 de fevereiro de 2020). A inalienabilidade dos direitos humanos
torna-os insuscetíveis de abdicação pessoal. Nem por decisão minha posso deixar
de beneficiar do seu conteúdo. Ora, se, de acordo com o artigo 3º, ‘Todo o
indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.’, o facto de
se tratar de um direito inalienável constitui-o, no mesmo momento, em dever.
Tenho o dever de proteger o meu próprio direito à vida.
A eutanásia, na medida em que nem
sequer é um ato perpetrado pelo próprio sobre quem o mesmo recai, atenta contra
o direito, seja por quem o executa, seja por quem o solicita, dado que é um
pedido ilegítimo. Pedir a morte, sendo uma manifestação de um desejo, não pode
ser reconhecido como um direito. Deve, antes, ser tomado como um pedido de
ajuda. E era isso que deveria ser facultado por um Estado que se pretende de
Direito. E não pode bastar ou sossegar a ideia de que outros Estados o fazem ou
o acolheram no seu quadro jurídico. Assim acontece, por exemplo, com a pena de
morte, aceite por mais de 90 países. O facto de ser aceite por quase metade dos
países reconhecidos pela ONU não legitima a sua prática.
A eutanásia é um ato muito pouco moderno
A legalização da eutanásia vai no
sentido contrário àquilo que deveria ser o caminho dos países civilizados e
modernos. Pressupõe, aliás, uma visão profundamente individualista da vida,
pouco consentânea com a cada vez mais óbvia interdependência humana e nasce de
pressupostos totalmente errados.
Entre eles, para além do já
denunciado preconceito de que o pedido de morte pudesse corresponder a um
direito humano (nega-os, em vez de os assegurar!), parte de uma suposta
alternativa já sobejamente denunciada por todos os que estão envolvidos nos
cuidados dos que se encontram em fases terminais da vida. A alternativa a que
aqui me refiro é a que pressupõe que quem não tem a possibilidade da eutanásia
não possa senão morrer com enorme dor e sofrimento. De modo algum! A eutanásia
é um ato de efetiva antecipação da morte, sabendo-se que há muitas outras
alternativas que passam por cuidar da dor com medicamentos cada vez mais
eficazes, sendo sabido que, como frequentemente afirmava o saudoso professor
Daniel Serrão, se não se está a conseguir controlar a dor, então, há que
procurar outra equipa médica que nos faça encontrar formas para que tal ocorra.
Um Parlamento deve proteger o seu povo
A eutanásia «é um método fácil de
desistência», como bem recordava Verónica, uma enfermeira portuguesa que, em
2016, testemunhou, numa emissora de rádio, que participara, em Bruxelas, num
ato de eutanásia de uma mulher de 70 anos bem de saúde, mas cansada da vida.
Não podemos deixar que o
Parlamento decida sobre tão grave matéria, só porque tem uma maioria de
deputados. Estarão, deste modo a representar o sentir de um país que sempre se pautou
pela solidariedade? Ou teremos de concluir que a matriz de um povo em que mais
de 70 % dos cidadãos se reconhecem cristãos não passa, já, de um mero desiderato
sem correspondência com a realidade?
Recordo que, como bem observava
um dos presidentes do Tribunal Constitucional de Itália, Gustavo Zagrebelsky,
as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade
de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não
podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta
para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar
sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir.
Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o
poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias
dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso,
autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes
dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias
críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e
suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que
une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites
próprios decorrentes da natureza humana.»
A nossa democracia, com decisões
como a que se propõe assumir o Parlamento, em 20 de fevereiro, corre o risco de
redundar numa democracia cética, abrindo portas ao aparecimento de líderes que
se considerem detentores do poder de tudo decidir.
Terminemos estas notas doridas
com uma constatação. Contrariamente ao que defendem os que pretendem a
legalização da eutanásia, esta ‘despenalização’ não afetará só os poucos que se
diz que a pretendem pedir. Todos os cidadãos passarão a estar sob o peso desta
possibilidade. Todo o cidadão que, em algum momento, sinta que a sua vida já
está a ser peso para os demais, sentirá sobre os ombros a exigência velada de
que peça, o mais brevemente possível, o seu fim, para que deixe de recair sobre
os outros o peso de ter de cuidar de si. É disto que falam os que alertam para
a desumanização que tal lei trará às relações para com os mais frágeis. E tudo
ocorrerá no silêncio de uma cama de hospital, no segredo de um lar de idosos,
nos mais recônditos lugares onde se deveria sentir o acompanhamento cuidadoso.
Sobrará o pedido da antecipação da morte, de um após outro, sem que uns saibam
dos outros. E tudo não será mais do que estatística.
É tão fria a morte!