quinta-feira, abril 24, 2014

Porque é que legalizar as «barrigas de aluguer» é um erro?


A assembleia da República prepara-se, com um não solicitado consentimento da sociedade, para legalizar a maternidade de substituição, vulgarmente designada como «barriga de aluguer», situação que estava claramente vedada pela Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, lei que era, no entanto, já extremamente permissiva. Na verdade, esta legislação abrira as portas à possibilidade da procriação heteróloga, isto é, com recurso a gâmetas (óvulos, espermatozoides e, mesmo, embriões) de fora do casal, afigurando-se a muitos, entre os quais me incluo, como errada, na medida em que só por decisão discricionária do legislador se podia determinar quem era o pai ou a mãe, deixando de se ter por referência a natureza. As consequências de uma tal aleatoriedade levantar-se-ão à medida que a lei for atingindo a maioridade e, com ela, os que tiverem nascido em resultado das suas determinações. Que direito prevalecerá quando alguém pretender conhecer o seu pai ou mãe biológicos, a quem foi garantido que permaneceriam anónimos? Quem poderá garantir que os muitos filhos de um determinado dador não lhe virão a reivindicar direitos de herança, por exemplo, ainda que a lei positiva assim o afirme, pois, se os critérios objetivos já foram esquecidos, porque não há de o legislador mudar a lei que fez? E se for garantido o anonimato, que certeza poderá ter alguém de não casar com um seu meio-irmão ou meia-irmã?

O poder não é critério ético

Então, como hoje, estou convencido de que a prudência, que a ética sempre nos pede que tenhamos, não foi tida em conta. Então, como hoje, a realidade demonstra-nos que o poder não é, por si só, critério ético. «Poder fazer algo» não é sinónimo de «ter legitimidade para o fazer». Esta distinção parece estar a sumir-se no pensamento de muitos, para quem as possibilidades técnicas, abertas pela biomedicina, são tomadas como certeza de que, necessariamente, deverão aplicar-se e difundir-se como recursos eticamente legítimos. Então, como hoje, apenas se visou garantir as condições de um exercício erradamente considerado como livre, quando, na verdade, é puro arbítrio incondicionado, esquecendo o pressuposto antropológico de que somos cultura, bem certo, mas, também, natureza.

Tais pressupostos estão, mais uma vez, sumidos da discussão que se está, veladamente, a realizar na assembleia da república. O texto, que se encontra em discussão ou na iminência de ser publicado, falará, como sempre, de que o cenário que se abre com a legislação produzida será apenas uma exceção. Contudo, já em tempos o Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida alertava para o chamado efeito de «plano inclinado», em que tendem a deixar-se resvalar as matérias que concernem à ética da vida. Tudo começa com uma primeira exceção que, rapidamente, se torna a regra. Quem duvida, hoje, por exemplo, de que está implantada, na sociedade portuguesa, uma lógica eugénica, suportada no princípio (dito excecional) de que se pode abortar, até às vinte e quatro semanas em virtude de o filho ser portador de uma qualquer malformação? E tudo começou por ser entendido como exceção. Hoje, porém, a perspetiva é a de que abortar o filho com malformação é a regra. As pressões para tal são muitas. Que o digam os casais a quem foi dada a notícia de que os seus filhos poderiam ser portadores de uma qualquer doença… tratável com a morte!

Crítica da maternidade de substituição: do filho como um direito ao filho como pessoa

No que concerne à maternidade de substituição, o quadro justificativo não é diferente e o cenário que a exceção abrirá também não se distinguirá, no futuro. Hoje, será a exceção; amanhã, a regra para todos os que não pretendam passar pelo incómodo da gravidez, quaisquer que sejam os motivos. Aliás, a tendência é para se sumirem os motivos. Os motivos serão úteis, apenas, até se mudar a lei. Depois, tornar-se-á ilegítimo perguntar por eles, em nome de uma suposta liberdade e respeito pela intimidade.

Acresce a este quadro, que, certamente, estamos a pintar com cores carregadas, o facto de, na discussão sobre a legitimidade da barriga de aluguer tudo ser feito assente num sofisma que importa denunciar. A argumentação que é, habitualmente, sustentada, afirma a legitimidade do seu recurso por compaixão para com os casais que, por qualquer motivo, estão privados da possibilidade de desenvolver uma gravidez. Em si, o argumento da compaixão parece esvaziar qualquer refutação. Contudo, ele nasce de uma presunção errónea que importa, desde já, denunciar. O filho não é um objeto ou um qualquer bem a que se tem direito. É, em si, um outro alguém a quem deve respeitar-se. Assim, em rigor, temos o direito a não ser impedidos de ter filhos, mas não poderá dizer-se que ter filhos é um direito em si mesmo. Estas palavras devem ser bem entendidas, a fim de não serem manipuladas no sentido do que não pretendem dizer. O que afirmam é a anterioridade do filho em si mesmo em relação ao direito a ser pai ou mãe. Só esta leitura pode impedir a objetualização do filho que é, porém, uma abordagem muito difundida. E é neste quadro antropológico que não é admissível a maternidade de substituição (barriga de aluguer). A pergunta a fazer será, então, acerca do dever de proteger cada filho de toda a agressão, incluindo a da rejeição. Não será admissível, a esta luz, aceitar que alguém, suportado pela lei, gere um filho para o abandonar na hora de ele nascer e o entregar a outrem. Gerar para abandonar é contraditório e não deve merecer a tutela do Estado de direito. Tal como não deveriam ser admitidas as situações de orfandade predeterminada legalmente, em que aquilo que se pretende evitar para todas as crianças (ficarem órfãs) é criado para algumas, em nome do exercício do livre arbítrio que se torna inumano. Na verdade, o pressuposto que aqui temos em conta é aquele que muitas vezes ouvi recordar ao grande mestre da bioética, Dr. Jorge Biscaia, que sempre lembrava que ainda mesmo antes que a mãe tivesse consciência de que estava grávida, já o seu corpo respondia aos sinais que o filho lançava ao corpo da mãe. Entre a mãe e o filho gera-se uma relação de intimidade que só tende a crescer com o progredir da gravidez. Esta convicção é confirmada pela corrente fenomenológica que, nas palavras de Merleau-Ponty, verifica que fazemos a experiência do «corpo vivido». Aquilo que vivemos na nossa corporeidade deixa marcas profundas no que somos. E isto desde a primeira hora da nossa existência. A fase da gravidez não é, então, um período obscuro e insignificante. Pelo contrário, é profundamente marcante, pelo que deve merecer toda a proteção e atenção cuidada de quem tem a obrigação de salvaguardar o que é relevante. Entre os que a têm conta-se, certamente, o Estado como entidade que deve fazer prevalecer o que é mais importante sobre a discricionariedade e a arbitrariedade. Estou certo de que, para muitos, esta é uma batalha que já há muito consideram perdida: a da defesa da vida humana frágil e débil, nos seus inícios e no seu fim. Contudo, a história de conquista que foram os últimos 2000 anos demonstra o contrário. Diante da barbárie, foi possível conquistar terreno que, recentemente, parece estar, de novo, a tomar conta da terra cultivada. Mas a colheita só se fará quando a história terminar. E, nessa hora, importará estar do lado certo da história.

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