sábado, maio 21, 2022

É preciso salvar a liberdade…


Pensar é uma autêntica gravidez. Não fosse o conceito do âmbito da ‘conceção’. Pensar é, efetivamente, ‘conceber’ algo.

Há, porém, ideias fecundas e ideias perfeitamente estéreis e que esterilizam tudo em seu redor.

A ideia de liberdade é uma dessas ideias que, pela sua centralidade no contexto da modernidade, corre o risco de, sendo extremamente fecunda, se converter no fator de ‘esterilização’ dos demais conceitos que implica e com que se implica.

Entendamos porquê.

A ideia de ‘liberdade’ é, provavelmente, a mais generosamente referida nos contextos e discussões atuais. É, por isso, fundamental que nos entendamos, em primeiro lugar, sobre o que pretendemos dizer ao evocá-la e, em segundo lugar, que tenhamos a consciência de que, por se tratar de um conceito, é preciso saber quem são os seus ‘pai’ e ‘mãe’ para percebermos a genética do conceito que utilizamos, a fim de entendermos se nos reconhecemos no ‘filho’. Esta síntese implica, ainda, que tenhamos a consciência de que todos os conceitos são conceitos, isto é, não são factos, são formulações que dependem de determinados pressupostos e comportam consequências.

Com estes dados, partamos à descoberta do que estamos a dizer ao evocar a liberdade.

 

Liberdade: ‘fazer o que se quer’?

Espontaneamente, ‘liberdade’ costuma evocar a ideia de se fazer o que se quer. Liberdade máxima parecerá ser, com esta conceção aparentemente espontânea, a inexistência de constrangimentos a fazer o que se quer.

Precisamos de perceber o alcance desta visão para, eventualmente, a podermos criticar e, no limite, superar.

Para a analisar, é preciso compreender a fenomenologia da ação humana, isto é, é preciso perceber como emergem, nos sujeitos humanos, os atos que são, verdadeiramente, humanos e como se distinguem dos que não são humanos.

Para o entender, é preciso consciencializar que todo o ato verdadeiramente humano envolve o homem todo, não apenas parte de si.

Acrescente-se que todo o ato humano envolve as três dimensões do homem: a inteligência, que se manifesta no saber, no conhecer, na busca da verdade (no intelligo, na penetração do olhar ao interior das coisas…); o afeto, que se manifesta nas emoções, no sentir (é o que os clássicos definiam como o modo de acesso às coisas, o deixar-se ‘afetar’ por elas, tornando-nos ‘vulneráveis’ ao outro, aos outros…), e, por fim, a vontade, que se manifesta como ‘querer’.

Não será difícil, após este muito rudimentar esboço da fenomenologia da ação humana identificar, desde já, que a conceção de liberdade que a identifica como possibilidade de fazer o que se quer enferma de um limite anteriormente denunciado: o de se confinar a uma só das três dimensões: neste caso, à vontade (ao querer). Antecipamos, aqui, que esta redução da liberdade à vontade parece ter dois responsáveis: Schopenhauer e Nietzsche que, por vias diferentes, idolatraram a vontade de poder presente no Homem, tudo confinando e conformando a esta, com custos que iremos apreciar, ao longo deste texto.

 

‘A minha liberdade termina onde começa a do outro’?

Ora, uma tal redução, pela natureza própria do que é um conceito, implica tremendas consequências. É como se alguém entrasse numa autoestrada pelo acesso errado. Pode comportar quilómetros de erro e, no limite, uma viagem totalmente desviada do pretendido…

E uma das consequências está na própria escolha dos nossos ilustres autores novecentistas: a opção pela vontade. Esta define-se como ilimitado e de objeto indeterminado. Enquanto a inteligência tem um objeto específico e identificável – a verdade, o que é verdadeiro -, a vontade é, por natureza, imprevisível, só compreensível pelo próprio e insuscetível de antecipar pelos demais. A liberdade, confinada à condição de exercício de vontade, torna-se, assim, um conceito intrinsecamente individualista e solipsista.

Sim, neste contexto e nesta conceção, a liberdade (isto é, as vontades) estorvam-se umas às outras.

Sim, neste modo de entender, tem de se aceitar que ‘a liberdade de cada um acaba onde começa a do outro’, como terá definido Herbert Spencer, pelo que a liberdade de cada um só pode aumentar quando a do outro for limitada ou, no extremo final, quando a do outro desaparecer. Os outros são, então, como reconhecia Sartre, o ‘inferno’.

Um tal entendimento nasce do pressuposto de que a liberdade é exercício de vontade.

Mas, sê-lo-á, de facto?

Reparemos que a redução da liberdade à vontade comporta uma contradição insofismável: o seu exercício que deveria ser humano pode voltar-se contra aquilo que define, verdadeiramente, o que é o humano, isto é, a sua racionalidade. O que nos distingue dos demais seres é a racionalidade. Mas, se a liberdade – tão central e nuclear – é um exercício de vontade, pode prescindir e, no limite, opor-se à racionalidade. Será, ainda, humana uma liberdade assim?

 

Os factos demonstram a pertinência do conceito

Tornam notória esta denúncia os factos, apurados numa leitura fenomenológica.

Veja-se o seguinte exemplo.

Um toxicodependente quer muito, muitíssimo, o estupefaciente que o sossegue. É capaz, inclusive, de roubar; no limite, de matar!

Mas, - perguntemos com verdade – o seu ato de vontade (ato voluntário) é um ato livre? É voluntário, certamente (ele quer! Quer muito!), mas será livre?

A nossa conclusão parece pura retórica. Não o é, de facto.

E porquê?

Por aquilo que acabámos de constatar: o ato é voluntário, mas falta-lhe a iluminação racional para ser, de facto, ato livre.

Um ato livre não é o ato submisso à irracionalidade, à vontade, ao instinto (contrariamente ao que presumiam Nietzsche e Schopenhauer), mas antes o ato que mobiliza os afetos e a vontade ao que a razão lhe aponta como a melhor escolha.

E, com o desabamento da identificação de liberdade com vontade implode, também, o solipsismo de que o conceito aqui denunciado presumia.

Vejamos porquê…

A liberdade é uma condição (podemos vir a realizar atos livres porque somos intrinsecamente indeterminados previamente), é uma possibilidade (podemos ser livres ou não o ser em cada ato), mas é, também, uma realidade, isto é, um ato (se, como vimos, os nossos atos se conformam ao que a razão indica como sendo a melhor escolha. Não podemos deixar de recordar que a palavra liberdade nascerá do termo latino ‘libra’, que se refere à balança de dois braços que devem estar em equilíbrio…).

Seja como condição, seja como possibilidade, a liberdade implica sempre os outros, pois não nascemos de nós e não nos tornamos conscientes de nós por mérito nosso. Tomamos consciência de nós mesmos porque os outros humanos suscitaram em nós o despertar dessa consciência que estava em nós como uma potência que carecia dos outros para se tornar um ato.

 

‘Penso, logo existo’?

Digamo-lo de forma simples.

Contrariamente à presunção de Descartes, não é porque ‘penso que existo’; é, antes, porque os outros existem e se relacionam comigo que eu sei que existo. É porque existes e porque me fazes pensar que eu tomo consciência de que existo e posso, por isso, pensar.

O outro é condição de possibilidade de nós, do eu.

A psicologia, que o seja honestamente, evidencia-o.

Uma criança que fosse abandonada na selva, por volta dos três, quatro anos, poderia sobreviver, biologicamente falando, mas nunca teria consciência de si mesma. São os outros que despertam o eu que está em potência no interior de cada um.

Neste registo, as liberdades não se limitam umas às outras, mas antes projetam-se, promovem-se e só o são, enquanto atos, se despertam e potenciam as outras liberdades.

Não, não é verdade que a minha liberdade acabe onde começa a do outro (talvez, sim, as vontades se estorvem, mas já vimos que isso não é ‘a’ liberdade…); a minha liberdade só o é, de facto, se levar com ela a liberdade dos outros e as fizer serem cada vez mais liberdade.

Lembre-se, a título de ilustração, o que ocorre no mundo da economia.

Recorde-se o que aconteceu, após a II Guerra Mundial: a Europa ficou em cacos… Os Estados Unidos, apesar de serem preconizadores de um liberalismo tantas vezes solipsista, perceberam que não o poderiam ser, após a II Guerra. Se a Europa permanecesse destruída, a economia americana nunca seria pujante. Foi preciso, através do Plano Marshall, potenciar a economia europeia para que, com ela, se projetasse a economia americana.

Num outro âmbito, o da educação, podemos recordar como um pai ou uma mãe não o são mais se ‘esmagarem’ o crescimento do filho. Um pai ou uma mãe são-no na medida em que promovem o desenvolvimento do seu filho. Se não o fizerem, também eles, enquanto pai e mãe, se amarfanham.

É, por isso, fundamental, sair deste conceito solipsista, individualista e voluntarista de liberdade, responsável por um caminho que nos conduzirá a uma sociedade que não será mais do que, como afirma Manuel Braga da Cruz, ‘uma soma de indivíduos sobre um território’.

Há muito que vimos dizendo que se terá de passar de uma lógica de ‘indivíduos’ (que é um conceito quantitativo; somos ‘um’, ‘dois’, ‘três’ indivíduos, sem que tal nos defina, qualitativamente…) para uma lógica de ‘pessoas’, conceito que implica, intrinsecamente, a ideia de relação.

O mundo humano não é feito, primeiramente, de indivíduos, pensados em si mesmos, qual mónadas fechadas. O mundo humano é, primeira, relação, inter-relação, encontros.

Liberdade não é, pois, fazer o que se quer. É a possibilidade, a condição de possibilidade que nos permite escolher o que é melhor. Envolve-nos, totalmente, sob a iluminação da razão, da inteligência. Liberdade é algo intrinsecamente humano. É, aliás, um conceito que, pela natureza da definição aqui encontrada, implicada, essencialmente, a ideia de responsabilidade: responder e responder diante de alguém. Reduzi-la a um exercício da vontade é entregá-la ao sub-humano animal de que nos deveríamos levantar, mas a que muitos parecem querer fazer-nos regressar… É curioso constatar, aliás, que nunca se evocou tanto a liberdade, mas nunca, também, se pretendeu tanto reduzir os atos do indivíduos a causas que ele diz não controlar: a genética, a história pessoal, a sociedade, as circunstâncias, etc… Evoca-se a liberdade, mas num registo de desresponsabilização, o que, mais uma vez, denuncia a contradição do conceito. Ser livre é, intrinsecamente, responsabilizar-se e, por isso, compromete e exige estar em atitude de constante discernimento e não de volubilidade e anomia. Ser livre é, por isso, matéria de humanos integralmente entendidos, é uma conquista nunca terminada.

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