Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'
Luís Manuel Pereira da Silva*
Ulisses está no seu demorado processo de regresso. Há, nele, um profundo desejo de chegar à casa donde partiu há já demasiado tempo. Desejo que o habita e ‘arrasta’ como uma ausência a necessitar de ser preenchida. Sobre ele refletiremos, no último capítulo deste já longo ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’. É um desejo que se expressa como ânsia de «regresso a casa», uma ‘nostalgia’ persistente e omnipresente desde a partida feita desejo de chegada. Nela se unirão ‘regresso’ (a Ítaca) e ‘sonho’ (do Éden).
Mas ainda nos cabe enfrentar o motivo profundo pelo qual temos de voltar a partir de Ítaca, mas desejando regressar, já não a ela, mas ao Éden, que nos toma a alma como saudade e genuína nostalgia.
Ulisses é um herói, bem certo, mas um herói à maneira grega. A visão é trágica, porque, nela, dominam o limite intransponível e a sombra da maldição de nada ser ou eternamente ficar abandonado por em algum momento se ter transgredido o estabelecido.
A tentação desta leitura não está ausente da receção do cristianismo, entre o povo. Mas não é a marca definidora do ser cristão.
Expliquemo-nos…
No espírito grego, não há lugar para a ‘surpresa’, para a ‘graça’, o ‘não previsto e previsível’. Tudo é destino (moira) e determinação do limite (Némesis). O ser humano está determinado a cumprir o traçado que lhe coube em sorte. A transgressão é certeza de custo previsto.
Maria Helena da Rocha Pereira recorda-o ao analisar a história de Medeia que quer de Creonte muito mais do que uma promessa. Quer ‘um juramento formal, com a invocação precisa dos deuses envolvidos no ato, que comprometa de forma irreversível quem o presta, formule as suas obrigações e anteveja os castigos da transgressão’ [1]. Não há lugar para o inesperado. No espírito grego, tudo é previsível, antecipável e quem comete a ousadia da desmesura, submete-se à consequência esperável. Cruzam-se, nesta síntese, dois vetores que, sendo, originalmente, abstrações, se ‘personificam’ em figuras míticas: por um lado, a irrevogabilidade do destino de cada um, na ideia das ‘moiras’ ou, na redação proposta por Pierre Grimal [2], das ‘meras’, o quinhão, a parte que cabe a cada um cumprir (de felicidade e infelicidade); por outro, a ‘vingança dos deuses’, representada na ideia e na figura da Némesis, cuja representação mais famosa é a que se encontra em Ramnunte. Aqui, numa estátua hoje mutilada, representava-se uma deusa com uma arranca de maçã e um figo, e terá sido esculpido por Agoracritus, um aluno de Fídias, por volta de 430 a.C. É curioso que o figo e a maçã sejam elementos ilustrativos desta figura mítica, evocando a simbologia transcultural a eles associada. Como não recordar a interpretação do fruto proibido como sendo uma maçã (apesar de o texto bíblico não suportar essa conclusão) ou a referência à figueira como uma árvore amaldiçoada, talvez em virtude da ‘traiçoeira’ fragilidade da sua madeira, incapaz de suportar, demoradamente, o peso de um homem?
O mesmo Pierre Grimal dá suporte a esta nossa interpretação, ao recordar que as Meras ‘não têm uma lenda propriamente dita. Não são mais que a simbolização de uma conceção do mundo semifilosófica, semi-religiosa’[3], a qual, como fomos evidenciando, ao longo deste ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’, se mostra ora convergente, mas maioritariamente divergente do genuíno espírito cristão.
Neste, com efeito, se foram sobrevivendo, aqui e ali, marcas desta visão trágica e fatalista (de que o predestinacionismo calvinista será uma das maiores expressões), terá de ser reconhecido como tendo contribuído para emergir, no mundo, um outro olhar, em que há espaço para a ‘surpresa’, a ‘novidade’, o ‘gratuito’ (porque dado por ‘graça’), e, por isso, a possibilidade do perdão.
Esta nossa reflexão permite-nos ousar depreender na frequentemente evocada conflitualidade entre cristianismo e ciência um equívoco que nascerá destas duas visões retratadas, ao longo da reflexão feita em ‘regresso a Ítaca…’. O real ‘conflito’ não é entre cristianismo e ciência, mas entre uma visão ‘determinista’ e uma outra em que continua a haver lugar para a liberdade, para o rompimento de toda a previsibilidade e irrevogabilidade.
No limite, na visão grega, até os deuses estão submetidos às Meras. ‘Impessoal, a Mera é tão inflexível como o destino: encarna uma lei que os próprios deuses não podem transgredir sem pôr em perigo a ordem do mundo’[4], sendo que deles pode esperar-se, inclusive a vingança e sérias represálias: ‘tudo o que se eleva acima da sua condição, no bem como no mal, expõe-se a represálias dos deuses’[5].
Numa canção sobejamente conhecida e replicada de título ‘Némesis’, o cantor Clementine recorda que ‘Nemesis is, is the mother of karma’ (‘Nemesis é a mãe do Karma’), replicando uma intuição interessante e nem sempre constatada: de facto, é preciso esperar pelo judeo-cristianismo para encontrar a ideia de perdão que, fora deste registo, está sempre ausente. ‘Karma’ evoca a matriz oriental, explicitada na visão hindu.
Bono Vox, o vocalista dos U2 recorda, numa muito interessante entrevista dada a Michka Assayas, que ‘no centro de todas as religiões há a ideia de Karma. Vê bem, aquilo que fazes volta para ti: olho por olho, dente por dente, ou, na física – nas leis físicas – a cada ação equivale uma igual ou oposta. É claro para mim que o Karma está no centro do Universo. Tenho a certeza absoluta. E ainda assim, aparece igualmente este conceito de Graça para dar a volta a tudo isto «Como colhes, assim terás de semear». A Graça desafia a razão e a lógica. O amor interrompe, se quiseres, as consequências das tuas ações, o que, no meu caso, é, na verdade, muito bom, porque eu fiz muitas coisas estúpidas.[6]’
O leitor atento poderá contestar-me que também a bíblia está cheia de ‘maldições’ e ‘fatalismos’. Mas não deixará de surpreender que o último livro, também ele tantas vezes lido sob um registo de mais um vademecum de maldições, termine com a esperança de que ‘A graça do Senhor Jesus esteja com todos vós.’ (Ap 22,21), depois de assegurar que a esperança definitiva será em relação a um lugar onde ‘E ali nunca mais haverá nada maldito.’ (Ap 22,3)
E erraria quem se agarrasse ao literalismo das frases. Todo o livro é uma ode à esperança, à graça, à surpresa da vitória do amor sobre os determinismos e fatalismos: «Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último; aquele que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo!», sendo que não é despiciendo que se evidencie estarem superados os limites do espírito grego refazendo o discurso grego com um novo alfabeto que, em Cristo, a pura Graça de Deus, encontra o novo ‘alfa’ e ‘omega’ dos novos discursos…
[1] Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p. 368.
[2] Cfr. Pierre Grimal, Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores Refractários, 2020, p. 306.
[3] Pierre Grimal, op. Cit., p. 306.
[4] Pierre Grimal, op. Cit, p. 306.
[5] Cfr., Ibidem, p. 326.
[6] Michka Assayas e Bono Vox, Bono por Bono, Lisboa, Editora Ulisseia, 2005, p. 227.