Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Byung-Chul Han, A Agonia de Eros, Lisboa, Relógio d’Agua Editores, 2014.
Cheguei a Byung-Chul Han pela mesma porta pela qual terá entrado a maioria dos seus leitores portugueses: o seu livro ‘a sociedade do cansaço’, que me foi apresentado por um amigo (bibliófilo como eu) e que eu li em 2019. De então para cá, somei onze livros a essa primeira leitura.
Atrai, na sua escrita, a capacidade de ler o mundo em profundidade, sem medos nem receios, nestes tempos dados a cancelamentos.
Atrai, ainda, a capacidade que tem de procurar uma linguagem que diga a todos aquilo que se pode presumir poder nascer das fontes que o inspiram. A sua biografia, que o ‘faz’ nascer em Seul (Coreia do Sul), onde estudou Metalurgia, mostra um homem em busca. Da Metalurgia (estudada na Ásia) parte para a Filosofia, Teologia e Literatura Alemã, apesar de, quando chegado à Alemanha, nada saber da língua.
Percebe-se, na sua escrita e no seu pensamento, a influência dos mundos que calcorreou. Percebe-se a preocupação com as palavras (é um exímio criador de termos e de título – ‘o aroma do tempo’, ‘a salvação do belo’, ‘não-coisas’, ‘infocracia’, etc. dizem muito da sua capacidade de expressar muitíssimo em poucas palavras [como os seus ensaios, que muito dizem em poucas páginas]), influência do seu contacto com a língua alemã, ou a sua preocupação com o que é, para além do que parece, influência de Heidegger sobre o qual fez tese de doutoramento ou, ainda, a sua busca do sentido nas escolhas coletivas, influência da teologia em que se versou, em Munique.
Marcas de água
(o que fica depois de se deixar o livro)
Li ‘A Agonia de Eros’ em dois dias: entre 26 e 28 de agosto de 2022, depois do seu ‘a sociedade da transparência’. Nos meus registos, anotei que, após este, avancei para novo livro de Byung-Chul Han, ‘No enxame’, em que reflete sobre o impacto do digital nas sociedades e nos indivíduos, linha que se cruza com o que reflete em ‘Infocracia’.
Anotei, ao acabar de ler ‘A Agonia de Eros’, o seguinte: ‘o raciocínio é magnífico. Não me centraria tanto, porém, na crítica ao capitalismo (acho que também ele é um fenómeno de outro noúmeno a descobrir’), aludindo aos pontos de coincidência e divergência que me fazem cruzar com o pensamento de Han.
Explicito…
Han é mordaz na constatação de que a sociedade se vem estruturando sobre a ideia da centralidade do indivíduo, conduzindo, com isso, à morte do ‘outro’ ou, como diz Han, neste livro, à ‘erosão do outro’. Neste ponto, aproximamo-nos. Sou um personalista de matriz comunitarista influenciado pela minha nascente cristã e, por isso, revejo-me na ideia da inconcebibilidade de se pensar o eu sem o tu, mas divirjo quando Han atribui a causa disso ao capitalismo que gera a sociedade de consumo. Considero que o capitalismo (e o liberalismo a ele associado) emerge de uma causa anterior que encontra nestes dois – capitalismo e liberalismo – epifenómenos: o egocentrismo congénito à condição humana, desde que se ‘afastou da mão de Deus’.
Salvaguardada esta divergência, recentro a atenção no pensamento e no texto de Han, onde é possível encontrar pérolas de assertividade.
A ideia fundamental de Han é a de que ‘Eros’ expressa a ideia de um amor em que as identidades não se fundem, mas se respeitam, se acolhem, permanecem ‘tus’ dialógicos. ‘O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. […] a sociedade de consumo visa eliminar a alteridade atópica a favor de diferenças consumíveis, heterotópicas. Hoje, em todos os lados, a negatividade desaparece. Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo. […] Em contrapartida, Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (pp. 10-11)
E Han avança no seu raciocínio, levando-nos à constatação de que ‘o amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual. Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’ que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’ e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade.’ (p. 20)
É de ficar sem fôlego perante a clareza e luminosidade destas ideias.
Não se pense, porém, que Han defenda um qualquer angelismo assexuado. Pelo contrário. Consciente da natureza sexuada do ser humano, interroga-se sobre o que ela diz sobre o mesmo ser humano e descobre a profunda tentação de, por ela, o Homem deixar de ser Homem, a pessoa deixar de ser pessoa, para, por ela, a ‘relação’ se degradar em modo de exercício de poder.
Na verdade, consequente com esta leitura, Han é coerente e conduz-nos a reconhecer que, por oposição a esta abordagem genuinamente ‘erótica’ que acolhe o outro, que o recebe e que se entrega, em alteridade não objetual, o ‘porno é os antípodas do Eros. Aniquila a própria sexualidade.’ (p. 35) porque ‘o pornográfico também não tem inerente qualquer decoro, qualquer distância. Precisamente, é pornográfica a falta de tato e de encontro com o outro []. A pornografia, deste modo, aumenta a dose narcísica do eu.’ (p. 52). Há como que uma redução do encontro a um lugar de poder… E é nisto que a tese de Han tem o seu quê de sedutora ao identificar essa ação à tentação capitalista… Mas insisto que, na minha perspetiva, a sua origem é mais profunda; origina-se na tentação que acompanha a humanidade desde sempre: a da autossuficiência que convence de tudo ser para um eu que se agiganta cada vez mais e que de tudo é senhor absoluto.
‘A Agonia de Eros’ é um conjunto de ensaios que desafiam a que se regresse à original visão sobre a sexualidade humana, que […] desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais.’ (p. 24) Uma visão assente na genuína ideia do que seja o amor. ‘A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo.’ […] Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro […]. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (p. 30-31)
Ao ler Han, não pude deixar de recordar um dos mais belos e fecundos textos sobre estas matérias saídos nos últimos tempos. Nele, também se refere algo que Han revisita, vez após vez. Diz-se, ali: ‘[…] o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro «sexo» torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma «coisa» que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo.’ Quem o diz é Joseph Ratzinger, já como Bento XVI, na sua luminosa encíclica ‘Deus Caritas est’ (n.5), onde o amor, nas suas expressões erótica, de amizade e agápica é analisado, para surpresa de tantos, como manifestação da real condição humana, longe de angelismos com que alguns ainda pretendem ver a leitura cristã da sexualidade.
Pela mão de Han, cabe perguntar, então, se sobreviverá o humano à tentação da sua redução a ‘coisa’. Ou, de outro modo, poderá questionar-se se Eros resistirá ao poder de Narciso. Continuará a sexualidade humana a ser lugar de encontro ou reduzir-se-á, progressivamente, à condição de ‘não-lugar’, sendo, apenas, um outro modo de se exercer poder sobre o objeto diante do degradado ‘eu’?
O pensamento de Han permite, por fim, formular uma arriscada interrogação que julgo, contudo, ser legítimo enfrentar e partilhar: uma sociedade que deixou de questionar e até faz a apologia da busca do igual (expresso, em grego, pelo prefixo ‘homo’), estará, ainda, capaz de ousar pensar a sexualidade como o tempo e o lugar da genuína abertura ao outro, diferente do eu?...
Na mesma página que o autor (citações)
‘[…] as teorias sociológicas […] desconhecem que está hoje em ação alguma outra coisa que ataca o amor mais do que a liberdade sem fim ou as possibilidades ilimitadas. Não é somente o excesso de oferta de outros outros que conduz à crise do amor, mas fá-lo também a erosão do outro, que tem lugar em todos os âmbitos da vida e está ligada a um excessivo e ensimesmado narcisismo do mesmo. Com efeito, o desaparecimento do outro é um processo dramático – mas trata-se de um processo que se desenvolve sem que, infelizmente, muitos se deem conta.
O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. Por isso, no inferno do igual, a que a atual sociedade se assemelha cada vez mais, não há qualquer experiência erótica. Esta pressupõe a assimetria e a exterioridade do outro.’ (p. 9-10)
‘Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo.’ (p. 10)
‘O sujeito narcísico-depressivo está exausto e fatigado de si mesmo. É desprovido de mundo e acha-se abandonado pelo outro.’ (p. 11)
‘[…] Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (p. 11)
‘O sujeito do rendimento, como empresário de si mesmo, é sem dúvida livre, na medida em que não está submetido a um outro que o comande e o explore; mas não é de facto livre, porque se explora a si mesmo, por mais que o faça com inteira liberdade.’ (p. 17)
‘A proclamação neoliberal da liberdade manifesta-se, de facto, como um imperativo paradoxal: sê livre. Precipita o sujeito do rendimento na depressão e no esgotamento.’ (p. 18)
‘O amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual.
Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’, que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’, e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade. A ‘distância originária’ impede que o outro seja reificado como um objeto, como uma ‘coisa’. O outro, enquanto objeto sexual, já não é um ‘tu’. Já não é possível qualquer relação com ele. A ‘distância originária’ é portadora do decoro transcendental, que liberta o outro na sua alteridade, e, mais do que isso, o distancia. […] O objeto sexual não tem um ‘rosto’ que constitua a alteridade – essa alteridade do outro que impõe a distância. Hoje, perdem-se cada vez mais a decência, as boas maneiras e também o distanciamento – ou seja: a capacidade de experimentar o outro no confronto com a sua alteridade.’ (p. 20)
‘O futuro é o tempo do outro. A totalização do presente como tempo do igual faz desaparecer essa ausência que situa o outro fora do disponível. […] O amor, na medida em que hoje não significa senão necessidade, satisfação e prazer, é incompatível com a subtração e a demora do outro. A sociedade, como máquina de procura e consumo, suprime o desejo orientado para o ausente, que, enquanto tal, não pode ser encontrado, captado e consumido. Em contrapartida, Eros desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais. ’ (pp. 23-24)
‘O capitalismo elimina por toda a parte a alteridade para tudo submeter ao consumo. O Eros é, por seu turno, uma relação assimétrica com o outro. E interrompe desse modo a relação de troca. Não se pode fazer contabilidade com a alteridade, uma vez que esta não aparece no balanço de dever e haver.’ (p. 24)
‘O homem atual permanece igual a si mesmo e procura no outro somente a confirmação de si mesmo.’ (p. 26)
‘O sentimento e a paixão dão lugar a sentimentos agradáveis e a excitações sem consequências. Na época do quickie, do sexo ocasional e de distensão, também a sexualidade perde toda a negatividade. A total ausência de negatividade faz com que o amor hoje se atrofie como um objeto de consumo e de cálculo hedonista. O desejo do outro é suplantado pelo conforto do igual. Procura-se a agradável e, em última análise, confortável imanência do igual. Ao amor de hoje faltam por completo a transcendência e a transgressão.’ (p. 27)
‘Nem toda a conclusão é violência. Conclui-se a paz. Conclui-se (‘fecha-se’) a amizade. O amor é uma conclusão absoluta porque pressupõe a morte, a renúncia a si mesmo. A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo’. […] O amor como conclusão absoluta passa pela morte. Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro, que foi falsamente elevada a figura principal do pensamento hegeliano. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (pp. 30-31)
‘Na relação de pode e de dominação, afirmo-me e oponho-me ao outro na medida em que o submeto. Em contrapartida, o poder de Eros implica uma impotência em que eu, em vez de me afirmar, me perco no outro ou para o outro, que de novo me alenta […].’ (p. 31)
‘A hipervisibilidade é acompanhada pela desmontagem dos limiares e dos limites. É a meta da sociedade da transparência. O espaço torna-se transparente depois de alisado e achatado. Os limiares e as passagens são zonas cheias de mistérios e de enigmas, onde começa o outro atópico. Juntamente com os limites e os limiares desaparecem também as fantasias relativas ao outro. A fantasia atrofia-se sem a negatividade dos limiares, sem a sua experiência. A crise atual da arte, e também da literatura, pode ser atribuída à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, quer dizer, à agonia de Eros.
As vedações ou muros das fronteiras que hoje se erigem já não excitam a fantasia, porque não geram o outro. Antes, atravessam de um extremo a outro o inferno do igual, que segue somente as leis económicas que separam os ricos dos pobres. É o capital que produz esses novos limites. Mas o dinheiro, em princípio, torna tudo igual. Nivela diferenças essenciais. Os limites como elementos de separação e de exclusão eliminar as fantasias relativas ao outro. Não são limiares ou passagens que conduzam a outro lugar.’ (p. 47)
‘Não deve confundir-se o Eros com o desejo (epithymia). É superior não só ao desejo, mas também ao Thymos. Incita-o a produzir belas ações. O Thymos é o lugar onde pode haver contacto entre Eros e política. Mas a política atual, que, além de desprovida de coragem, se desenvolve por completo sem Eros, atrofia-se e transforma-se em mero trabalho. O neoliberalismo leva a cabo uma despolitização da sociedade, na qual a substituição do Eros pela sexualidade e pela pornografia desempenha uma importante função. A sua base é o desejo (epithymia). Numa sociedade do cansaço, com sujeitos do rendimento isolados em si mesmos, o ânimo também se atrofia por completo. Torna-se impossível uma ação comum, impossível um nós.’ (p. 50)
‘A pornografia […] aumenta a dose narcísica do eu. Em contrapartida, o amor como acontecimento, como ‘cena do dois’, des-habitua e reduz o narcisismo. Produz uma ‘rutura’, uma ‘perfuração’ na ordem do habitual e do igual’. (p. 52)
**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)
*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'