quarta-feira, novembro 12, 2025

Ecos do Jubileu do mundo educativo [30 de outubro a 2 de novembro de 2025]

 

Artigo publicado no Correio do Vouga

Luís Manuel Pereira da Silva*

 

Fomos convocados. Não para um jogo na seleção, mas para celebrar. Francisco convocou-nos e Leão XIV renovou o convite para um ano jubilar, na já sete vezes centenária tradição católica dos jubileus (o primeiro foi convocado por Bonifácio VIII, em 1300) e enraizada na ainda mais profunda tradição bíblica de celebrar os jubileus do perdão, ao som do ‘jobel’, um chifre de carneiro que entoava, pelas serranias, que era hora de perdoar, libertar da servidão e dar descanso aos campos (cfr. Lv 25, 1-28).

‘Peregrinos da esperança’ é a tradução portuguesa do lema latino deste ano jubilar, ‘peregrinantes in spem’. É denso o seu significado original, que se perde na tradução lusitana. O original diz-nos que somos ‘peregrinos na esperança’, bem certo, mas também diz que somos peregrino ‘para a esperança’ (o ‘in spem’ latino, registado numa preposição ‘in’ seguida de ‘acusativo’, tem implícita a ideia de um ‘movimento em direção a…’). A esperança é, não só, uma realidade do presente, que nos habita, aqui e agora, mas é, também, o horizonte para onde vamos.

O cristão sabe que a esperança tem um rosto e um nome: Jesus Cristo. É Ele e a certeza que, com ele, nos vem, de que a morte foi vencida, de que o dia venceu a noite, de que as sombras foram iluminadas pela luz, a autêntica fonte da esperança.

A esperança é, aliás, distinta da utopia que nasce do sujeito humano, como sinal de um desejo profundo, mas que pode não ter consistência real. Assim não é com a esperança. Ela habita o desejo, mas é-lhe transcendente, vem de fora, vem do amanhã para o hoje e assoma à janela do nosso existir como luz de um sol que está bem alto. Não somos os autores da esperança; somos os seus ‘contadores’, os seus narradores, porque com ela construímos a narrativa que podemos ler e dar a ler.

Desta esperança se fez o jubileu do mundo educativo, em que me foi dada a honra e o privilégio de participar, entre os dias 30 de outubro de 2 de novembro, integrado num grupo de 45 peregrinos de todas as dioceses do país, sob o título de ‘constelação SNEC’ (Constelação dos educadores do secretariado nacional da educação cristã).

A metáfora da constelação acompanhou a vivência deste grupo de quem muito se espera, por ser constituído por professores, dirigentes de escolas católicas, autores de manuais e recursos didáticos, etc.

Em torno da ideia de ‘constelação’, criaram-se simbologias que gostaria de sublinhar como síntese da vivência acontecida.

Uma metáfora da e para a educação: a ‘constelação’

A constelação remete, bem certo, para uma primeira ideia que este jubileu sublinhou, de múltiplos modos: a educação é lugar de cultivo do respeito pelo outro, na sua singularidade e diversidade (entre os diversos contextos deste jubileu do mundo educativo, concretizou-se a ‘aldeia educativa’, espaço de apresentação de experiências educativas). Essa diversidade repercute-se na pluralidade de respostas educativas, visíveis na multiplicidade de movimentos e congregações que, ao longo destes 2000 anos, o cristianismo foi fazendo germinar, como resposta aos desafios de cada tempo, lugar e existência pessoal.

A constelação alude, também, à ideia da perenidade e permanência. O céu que hoje vemos é o mesmo céu que viram os homens e mulheres do ano mil, ou do ano de quinhentos, ou do tempo de Jesus Cristo, ou do tempo de Platão ou, mesmo de Hammurabi… O céu permanece, diante da efemeridade do tempo terreno. Em épocas de mudança de época como a que vivemos, falar de ‘constelação’, em contexto educativo, é recordar que da educação se espera que aponte para o que permanece, que ajude a superar os acidentes das conjunturas, promovendo, assim, a autêntica esperança. A educação deve promover o que não caduca, o que permanece, falando, ‘a linguagem do coração’, na terminologia do Papa Francisco, lembrada pelo Dicastério para a Cultura e Educação que promoveu este jubileu.

A ‘constelação’ fala, ainda, da firmeza dos valores. Vemos e precisamos de nos guiar pelas estrelas principais das constelações (por exemplo, pela ‘estrela polar’ que nos aponta o norte) quando é noite. Em pleno dia, dispensamo-las. Nem sequer as vemos, pois uma luz comum (o sol) guia-nos a todos, em simultâneo. Mas, na noite dos nossos dias, precisamos de procurar sinais que nos orientem. Fala disto a ideia de ‘constelação’: na noite dos tempos, precisamos de nos nortear. De outro modo, a noite dará lugar ao relativismo: cada luz quererá impor-se às outras e abafar as mais frágeis. Ou, ainda pior, sobrará a pequena centelha de cada um, frágil lusco-fusco sem capacidade de orientar.

A ideia de ‘constelação’ comporta, igualmente, a ideia de uma unidade que se concretiza por meio de algo que não vemos, não dominamos; alude à ideia de que o que somos se deve mover pelo que não se reduz à ordem material. As forças que agregam as estrelas, compondo-as como ‘constelação’, não as vemos nem as podemos manipular: escapam-nos. O mundo da educação decai e degrada-se, se não aponta para a dimensão espiritual e para a tensão para o transcendente, que habita o Homem. Educação que abafa o grito que ecoa no coração humano deverá inquietar-se e interrogar-se sobre os seus fins, pois longe estará da sua autêntica meta.

Leão XIV aponta quatro pontos cardeais para a educação

Com estes horizontes se realizou o Jubileu do mundo educativo, do qual as palavras de Leão XIV continuam a ressoar, sulcando na pedra que toda a autêntica educação deve realizar-se em torno de quatro pontos cardeais: ‘interioridade, unidade, amor e alegria’.

Palavras proferidas no dia 31 de outubro, pelo Papa Leão XIV, perante os milhares de educadores que enchiam a Praça de S. Pedro. A meu lado, uma irmã dominicana, provinda de Detroit. Americana como o Papa Leão XIV. Feliz por ser americano o Papa.

Leão XIV recordou, com estas palavras, que não há educação sem o apelo ao que permanece (interioridade), sem a busca da verdade (para que converge a ideia de ‘unidade’), sem o ‘coração’ (o ‘coração’, a marca agostiniana no pontificado de Leão) e, bem certo, sem a alegria, esse sinal de que nos encaminhamos para o que Deus pretende.

No dia 1 de novembro, associou-se, à celebração de todos os Santos, a proclamação de S. John Henry Newman como doutor da Igreja. Entre os doutores da Igreja, só se conta um português: Santo António, proclamado doutor por Pio XII, em 1946.

A proclamação de S. John Henry Newman como Doutor da Igreja merece reflexão, pela enorme oportunidade. Antes de mais, pelo sinal histórico: na celebração, estavam presentes representantes da Igreja de Inglaterra. Um importante sinal ecuménico, dado que S. Henry Newman é, ele mesmo, um anglicano convertido ao catolicismo.

Mas importa guardar, também, uma outra constatação de enorme significado para a atualidade, marcada por clivagens e polarizações.

Newman tem, entre as suas mais importantes contribuições para a teologia, a ideia do ‘desenvolvimento do dogma’, ideia que me parece de particular relevância, por, por um lado, sublinhar que a nuclearidade do dogma permanece, perante os riscos de relativismo que, hoje, assomam ao nosso viver, mas também observa que este se desenvolve, tornando-se mais significativo e compreensivo para os diversos tempos, perante os riscos de um fundamentalismo que petrifica a verdade, com o risco de interpretar o dogma como formulações sem vida, formulações sem significado. Dogma que não se torne iluminador do existir humano não cumpre a sua função. Dito de outro modo. A leitura do pensamento de Henry Newman torna-se mais compreensível se articulada com o princípio formulado no Vaticano II, no documento Unitatis Redintegratio, de que há uma ‘hierarquia das verdades’. Nem todas as verdade são igualmente importantes, para a fé cristã, devendo, por isso, fazer-se uma hermenêutica que secundarize o que é secundário e priorize o que é prioritário, sem inverter estas ordens.

A Newman devemos um importante contributo para este caminho.

Num contexto como o do jubileu educativo, esta proclamação de S. Henry Newman como doutor da Igreja é, por isso, densamente relevante. Os tempos precisam desta inteligência da fé, como ‘luz tenra, suave, no meio da noite’ (hino de completas da autoria de S. John Henry Newman).

De errantes a peregrinos…

Fui a Roma, como educador, mas, principalmente, como peregrino. Muitas vezes me recordei do que diz a Nota Pastoral da Conferência Episcopal para a semana nacional da educação cristã de 2024: ‘um peregrino não é um errante’. Um peregrino é, diferentemente do errante, alguém que, mesmo que erre, não fica eternamente no erro, tornando-se um errante. Errar não tem de nos tornar errantes. Um peregrino cai e, com mão na mão que o levanta, continua o caminho.

Um peregrino sabe para onde vai e despoja-se do que o aprisiona, para poder, livremente, caminhar mais ligeiro. Quão significativo é, para a educação, este símbolo que é o ‘ser peregrino’. Ele não é um ‘sem-abrigo’ (quantos vi, na cidade de Roma! E com que incómodo passei por eles, sem saber o que fazer!...), pois é habitado pelo futuro (sob a forma de ‘esperança’) e habita esse mesmo futuro, porque sabe que o que o espera é a Casa do Amor que Deus é.

Como peregrino, atravessei a Portas Santa, essoutro símbolo de que, do lado de dentro, Alguém nos abre a porta e nos espera. Comovi-me, partilhei, esperei e recebi. Essa é a realidade do peregrino. E, como educador, levei no meu coração a história dos inúmeros alunos com quem a minha vida se cruzou, ao longo destes 25 anos (um jubileu, também!) que tenho, enquanto docente. Com eles, as suas dores e angústias, as suas alegrias e esperanças, caminhei, pelas ruas de Roma, e celebrei, na Praça de São Pedro, nos dias 31 e 1, e, na Igreja de Santo António dos Portugueses, a fé que agrega, de todos os cantos do mundo, as diversidades unidas por uma só certeza: errar, na vida, não tem de nos tornar uns errantes, se de Deus aceitarmos o perdão. É esse o sentido profundo da celebração de um Jubileu de denso significado para a educação. Os que, um dia, erraram, não têm de permanecer, para sempre, no erro.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

sexta-feira, novembro 07, 2025

Sabes, leitor... | 23 | Marca de água do livro de Grégor Puppinck, 'A família, os Direitos do Homem e a Vida Eterna'

 


Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O(s) autor(es) e a obra
Grégor Puppinck, A família, os Direitos do Homem e a Vida Eterna, Cascais, Princípia, 2018.

Este já é o terceiro livro de Grégor Puppinck que aqui analiso, depois de ‘Os direitos do homem desnaturado’ (número 22 desta rubrica) e ‘Objeção de consciência e direitos humanos’ (número 19 desta rubrica), todos publicados, em boa hora, pela Editora Principia, com a parceria da Fundação ‘A junção do bem’. A sua lucidez é admirável… Dar eco do seu legado torna-se, por isso, um dever para quem o lê: pela clarividência da sua reflexão, pela honestidade do seu discurso, pela coerência entre a sua escrita e a sua ação. A nossa dívida para com Puppinck, mesmo que desconhecida da maioria, é enorme. Como recorda António Pedro Barbas Homem, o autor do prefácio do livro que, agora, analiso, muito devemos a este doutor em direito e diretor do European Centre for Law and Justice, membro do painel de peritos da OCDE e do Conselho da Europa sobre Liberdade Religiosa, destacando-se o seu contributo para o processo chegado ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem interposto contra o Estado Italiano, em relação à presença de crucifixos nas salas de aula. Graças ao contributo singular de Puppinck, não saiu vencedora uma leitura laicista que teria terraplanado séculos de história e contribuído para um aprofundar do afastamento entre o território público dos Estados e a vida real dos seus povos. Este processo ficou conhecido como ‘Lautsi v. Itália, sendo um de muitos em que o contributo deste eminente jurista impediu decisões nefastas para a vida coletiva…
Mas, como bem recorda nos seus vários livros, o ‘bom combate’ continua…
Este livro poderia ter sido o primeiro dos de Puppinck a merecer análise, aqui. Curiosamente, porém, segui uma ordem que não é a da edição, mas a da descoberta. Cheguei a Puppinck pela mão de Gabriele Kuby. As circunstâncias da discussão nacional (e mesmo internacional) sobre os limites à objeção de consciência levaram-me ao seu livro dedicado a esta matéria. Logo ali percebi e fiquei assombrado com o seu brilhantismo. Parti, por isso, à descoberta do segundo, ‘os direitos do homem desnaturado’, ficando com o desejo de ler este que, agora, analiso, um livro, aliás, premiado.Da leitura dos três livros emerge a consciência de uma desarmante coerência de pensamento que, neste terceiro livro recebe, pela circunstância em que ele surgiu, um ‘plus’ a referir.
Dado tratar-se de uma obra nascida de uma circunstância muito precisa – nasceu como texto de uma intervenção num colóquio sobre família e a Igreja, organizado pela Conferência Episcopal da Eslováquia, no contexto mais amplo do sínodo sobre os «desafios pastorais da família no contexto da evangelização’, - neste livro o autor permite-se explicitar traços que só implicitamente estão presentes nos outros livros.
Na verdade, aqui, Puppinck evidencia o papel ímpar, insubstituível do cristianismo católico para a ‘reparação’ de erros que estão a ser cometidos a coberto de uma leitura individualista dos direitos humanos.
Para tal, Puppinck descreve, com clareza, a génese dos erros que estão diante de todos (a emergência e estabelecimento de uma leitura voluntarista e individualista do ser humano; ao arrepio da leitura humanista e personalista), denunciando as suas consequências e implicações (mesmo as ainda não totalmente visíveis), mas vai mais longe, explicitando o papel que cabe ao catolicismo como garante de que o resvalar individualista não esfrangalhe definitivamente a sociedade.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

No posfácio, da autoria de Mons. Aldo Giordano, enuncia-se o esboço de uma metáfora que nos serve, perfeitamente, para resumir o alcance da abordagem defendida neste livro: a metáfora da noite e do dia.
A natureza do dia poderia definir-se como a de um tempo em que todos se regem, movem, orientam, por uma luz comum. E isso une todos os ‘ensolarados’ em torno de algo que é comum. As dúvidas de uns podem ser esclarecidas por uma ‘fonte’ que é comum a todos. E isso garante a unidade da leitura, a convergência das leituras, mesmo que diversas nos detalhes.
A natureza da noite poderia definir-se, pelo contrário, por ser um tempo em que, pela ausência de uma luz comum, cada um gera ou recolhe a sua própria luz, ofuscando as luzes mais fortes a luz dos mais frágeis… Pela ausência de uma ‘fonte’ de luz comum, as possibilidades de choques, conflitos, imposições, aumentam.
Os direitos humanos foram vertidos, na década de 1940, para um documento que pressupunha uma ‘fonte’ comum: a natureza humana, objetivamente considerada e anterior à vontade de cada um. A participação de todos nessa natureza universalizou os direitos humanos e permitiu reconhecê-los como ‘iguais e inalienáveis’. Como tantas vezes venho recordando, fez deles ‘direitos’, mas, também, ‘deveres’ para todos e cada um.
Progressivamente, porém, foi-se impondo uma leitura duvidosa sobre a dignidade (que se considerava como pressuposta, para uma outra noção que a faz depender da perceção de cada um), assente em axiomas individualistas e voluntaristas: é o sujeito individual que passa a ser a ‘medida de todas as coisas’.
Uma tal ‘revolução’ está a conduzir a uma abordagem dos direitos humanos que os vai afastando, mais e mais, da natureza humana. Como o próprio Puppinck sintetiza, ‘Do ponto de vista individualista, quanto mais antinatural – isto é, contrário à natureza humana – for um direito, mais será visto como uma elevada manifestação da liberdade humana, e mais alto se encontrará na nova hierarquia dos direitos.’(pp. 42-43)
E a família, nisto tudo?
Com o brilhantismo que lhe conhecemos, Puppinck regista que a leitura individualista dos direitos humanos deslocou a abordagem sobre a família daquilo que ela é, uma união que não depende de um só e que carece de proteção pelos bens que ela comporta (entre os quais merecem particular destaque os filhos), para uma outra linha que coloca o centro no indivíduo. Como se ‘alguém pudesse casar sozinho’… Neste novo registo, o centro passaram a ser os direitos dos adultos, deixando em segundo plano os direitos das próprias crianças, dependentes de serem desejadas pelos adultos (assim no aborto, nas barrigas de aluguer, na procriação medicamente assistida, etc…).
È neste contexto que ganha particular premência o papel do catolicismo que, de acordo com o autor, deve resistir à tentação de ‘laicizar’ e neutralizar o discurso explicitamente religioso, evidenciando, pelo contrário, que é a certeza da ‘vida eterna’ (essa nascente comum da luz que a todos iluminará, simultaneamente) que pode fazer regressar a humanidade à realidade, acordando-a das ilusões de autossuficiência que a pós-modernidade (que o autor referencia diversas vezes como sendo um tempo de ilusão da dispensabilidade de Deus). O autor lança, por isso, o desafio a que os cristãos percebam que a estranheza que lhes suscitam as leituras individualistas dos direitos humanos são um convite a que se envolvam na defesa de uma leitura coerente com a originalmente pretendida: a que assenta e pressupõe a realidade, a natureza humana objetiva e prévia, fazendo da liberdade, não um fim em si mesma, mas uma condição para a autêntica libertação das ilusões.
Este não é, porém, um livro escrito exclusivamente para cristãos. É um livro que, honestamente, explicita como o contributo cristão para a autêntica defesa dos direitos humanos pode agregar e reunir, de forma singular e insubstituível, todos os que se reveem numa leitura que respeita o autêntico espírito que assistiu ao renascer da vida depois dos escombros que a II Guerra Mundial deixou. De outro modo, restarão sujeitos fechados sobre si mesmos, sem memória, sem lastro real, sem corpo, puros espíritos monádicos, isolados e, como explicita Puppinck, infelizes apesar da ilusão da felicidade.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘Como sublinha o Autor, «o humanismo ateu levou a sociedade a colocar a sua esperança em si própria; o cristianismo parece, por vezes, ter seguido o mesmo caminho», tendo que pagar o preço das esperanças não realizadas».’ António Pedro Barbas Homem, prefácio, p. 12.

‘Dar testemunho voltou a ser essencial, como no cristianismo primitivo. E é isso que Grégor Puppinck vem fazer e só podemos felicitá-lo, a ele, pela escrita, e a nós, por o podermos ler.’ António Pedro Barbas Homem, prefácio, p. 13

‘Do ponto de vista humano, a situação na Europa é muito má. Encontramo-nos num período de charneira marcado pelo esgotamento da sociedade nascida na década de 1960: esgotamento demográfico, esgotamento económico e esgotamento político, mas também esgotamento espiritual e até ecológico. O projeto político europeu está a ser fortemente posto em causa, incluindo os direitos do homem; o sonho humanista moderno que promoveu este projeto degenerou numa pós-modernidade individualista e niilista.’ (Introdução, p. 17)

‘Nesta situação, em que o indivíduo liberto de si mesmo se encontra perante o seu próprio nada e o absurdo da vida, a Igreja tem um papel profético. E esse papel não consiste em ir ao encontro do mundo na escuridão da pós-modernidade, mas, pelo contrário, em puxar o mundo para cima, revelando-lhe o Céu, a vida eterna.’ (Introdução, p. 18)

‘Na grande Europa do Conselho da Europa (incluindo a Rússia), mais de um terço das gravidezes termina em aborto (num total de 4,5 milhões de abortos por ano, face a 8,5 milhões de nascimentos). Em França, uma gravidez em cada cinco termina em aborto (o correspondente a um total de 220 000 abortos por ano). No futuro próximo, vários Estados assistirão ao declínio da sua população, em consequência da fraca taxa de natalidade.’ (Introdução, p.19)

‘Os dados estatísticos que acabamos de enunciar revelam uma derrocada do casamento e da família, derrocada essa que tem causas múltiplas e complexas; uma das mais importantes poderá ser designada por «revolução individualista». Uma análise do direito, em particular dos direitos do homem, revela a evolução que ocorreu na nossa sociedade; com efeito, os direitos do homem são uma expressão da antropologia dominante no seio de uma sociedade, porque pressupõem uma certa conceção do Homem.’ (p. 21)

‘Os direitos do homem, tal como foram enunciados após a Segunda Guerra Mundial, eram a expressão de uma antropologia fundada na natureza humana, tal como a descrevia a filosofia humanista e personalista. A universalidade desta antropologia natural estava, aliás, na origem da universalidade dos direitos do homem.’ (p. 22)

‘[…] se o direito ao casamento não é um direito subjetivo que pertence à pessoa enquanto indivíduo, como são as liberdades, é porque pertence antes de mais ao casal; ninguém pode casar-se sozinho.’ (p. 23)

‘[…] o direito ao casamento alcança três protagonistas: o homem, a mulher e a sociedade; e visa um bem que é comum aos três; a família e, através dela, a transmissão da vida e do património material e imaterial. Este bem comum é realizado pelos filhos que, consequentemente, ocupam um lugar central da mesma família, sendo protegidos, em particular, por meio do casamento.’ (p. 23)

‘Com a revolução individualista ocidental, a família deixou de ser a célula fundamental da sociedade, posição em que foi substituída pelo indivíduo. […] O indivíduo é distinto da pessoa; o indivíduo é uma pessoa cuja humanidade consiste em definir-se a si mesmo, enquanto a pessoa é um indivíduo cuja humanidade procede da natureza humana. Assim, a pessoa reconhece que é dependente, enquanto indivíduo pretende ser autónomo.’ (p. 25)

‘Se os direitos do homem protegem o que distingue o Homem do animal, os direitos pós-modernos do indivíduo asseguram a prevalência da liberdade do indivíduo em si mesma, abstraindo-se das suas relações com outros indivíduos.’ (p. 29)

‘A separação do biológico (ou natural) do social levou o tribunal Europeu a separar, nomeadamente, o casamento da família, a família da alteridade sexual, a filiação da biologia, a orientação sexual do sexo, a «qualidade de vida» da vida, e ainda a pessoa do ser humano.’ (p. 30)

‘A unidade entre individualismo, subjetivismo e relativismo torna-se então manifesta: os três conspiram para a negação do primado da realidade; é que o primado da realidade é visto como a negação da liberdade individual.’ (p. 35)

‘Atualmente, o respeito pela liberdade individual sobrepõe-se a todos os outros valores, incluindo a vida, o que abre caminho, por exemplo, ao direito ao suicídio assistido.
A atenção central que é concedida à afirmação de si é relevante para a interpretação da noção de dignidade. De facto, se, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, esta última era descrita como inerente à pessoa humana, atualmente é vista mais como reflexiva, ou seja, individual e subjetiva. Passámos, pois, de uma conceção da dignidade fundada na natureza humana- uma dignidade que está presente em cada homem pelo facto de ser homem, e que é exterior ao agir individual – para uma conceção relativa da dignidade, que é determinada pela perceção que cada indivíduo tem de si próprio.’ (pp. 38-39)

‘Cada pessoa é, pois, o juiz da sua dignidade individual, a qual deixa de ser inerente e absoluta, tornando-se subjetiva e relativa, estreitamente relacionada com a «qualidade de vida»; e a sociedade está obrigada a respeitá-la, como estava obrigada a respeitar a antiga dignidade ontológica inerente à pessoa humana.’ (p. 39)

‘Do ponto de vista individualista, quanto mais antinatural – isto é, contrário à natureza humana – for um direito, mais será visto como uma elevada manifestação da liberdade humana, e mais alto se encontrará na nova hierarquia dos direitos. Assim, o direito às uniões entre pessoas do mesmo sexo, o direito ao aborto, o direito ao suicídio assistido e à eutanásia, embora se oponham à Convenção, têm o potencial de se tornar «sobredireitos», dado que são direitos sobre-humanos que exaltam o indivíduo e a sua capacidade de dominar a natureza; na verdade, estes direitos transformaram-se em dogmas.’ (pp. 42-43)

‘O individualismo atomiza a sociedade; visto como uma situação que promove a liberdade, a verdade é que é também uma causa de sofrimento, de pobreza e de isolamento, a ponto de esta liberdade ser, as mais das vezes, um logro. Quantas pessoas se divorciam para serem libres e acabam pobres e solitárias! O individualismo libertário não torna as pessoas felizes e as suas mais recentes conquistas culturais são mórbidas: eutanásia, aborto, direito aos filhos (gestação de substituição), eugenismo, divórcio. Ao distanciar as pessoas dos seus prolongamentos naturais (família, comunidades diversas), e sobrenaturais (religião), este individualismo esvazia as existências, tornando-as absurdas.’ (p. 44)

‘A secularização não afetou apenas as obras sociais católicas (escolas, hospitais, obras de caridade), mas também a sua atitude política. Com efeito, no campo político e moral, o discurso da Igreja foi laicizado, quis ser fundado na razão e na moral natural, com exclusão, a maioria das vezes, de qualquer referência religiosa, quer se tratasse de defender os imigrantes ou de condenar o aborto. A Igreja tentou convencer o mundo sendo mais humanista ou mais racional que ele; deste modo, o conjunto dos católicos passou a evitar dar testemunho explícito da fé, como se tivesse integrado o argumento laico da inadmissibilidade dos argumentos religiosos no debate público.’ (p. 51)

‘A aceitação do Criador leva, necessariamente à aceitação da realidade, voltando a situar o Homem na medida e na perspetiva do seu Criador. Assim sendo, anunciar o Criador, dar a conhecer a ternura do amor que nasce da sua contemplação permite-nos aceder a uma delicada humildade relativamente à sua criação.’ (p. 53)

‘O humanismo ateu levou a sociedade a colocar a sua esperança em si própria; o cristianismo parece, por vezes, ter seguido o mesmo caminho. E tanto o humanismo como o cristianismo pagam o preço das suas esperanças não realizadas. Porque, tal como o cristianismo, também o humanismo é posto em causa pelo individualismo e o relativismo.’ (p. 56)

‘[…] dado que a sociedade ocidental sofre de um excesso de individualismo […] é necessário antes de mais […] voltar a desenvolver as dimensões sobrenaturais e sociais de cada existência individual, dimensões que foram atrofiadas no homem ocidental.’ (p. 56)

‘Sem a perspetiva da vida eterna, uma vida boa consiste na satisfação das próprias pulsões, na realização pessoal, mas sem possibilidade real de conhecimento próprio. Assim, há muitas pessoas que desejam divorciar-se para serem felizes, pessoas para quem permanecer ao lado do cônjuge até à morte equivale a um fracasso, porque, a partir do momento em que a vida conjugal deixa de corresponder às suas expectativas, o esforço de a manter é vão; o divórcio permite-lhes, pois, retomarem a posse de si próprias. É a ausência de perspetiva de vida eterna que torna absurdo o esforço de toda uma vida e justifica a separação dos cônjuges.’ (p. 57)

‘Sem a luz de Deus, o mundo não passa de um conjunto de fenómenos, de um fechamento na escuridão inferior, e a vida mais não é que ilusão fugaz, uma consciência dolorosa no nada.’ (p. 58)

‘O ensino da verdade é a maior das caridades com que a Igreja tem o dever de servir o mundo, a exposição da verdade em toda a sua luz, a fim de que os indivíduos possam sair do impasse escuro da pós-modernidade.’ (p. 59)

‘É o medo de que não haja nada para além de nós que nos faz querer existir desesperadamente; e é o absurdo de tal existência que torna absoluta a nossa vontade individual. Só ela plana sobre as águas.
Mas ver o Céu permite-nos conhecer algo que é maior do que nós – a ordem do universo -, que se deduz do todo e não se constrói a partir de nós. Amar o Céu pelo próprio Céu, preferi-lo a nós por amor à perfeição, reordena-nos para o bem universal e faz-nos participar desse bem, abandonando as outras liberdades à sua vacuidade mentirosa.’ (p. 71)

‘Ser livre para nada é simplesmente desesperante. […] A liberdade não tem condição para se autossalvar. A salvação só pode vir de um Outro. Decidir confiar num Outro, no Pai, que tem a capacidade de realizar a aspiração do divino, ao eterno, à beleza, à verdade, ao amor, é o grande ato de inteligência da liberdade.’ Mons. Aldo Giordano, Posfácio, pp. 76.77)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto recolhida do site editora Princípia

quinta-feira, outubro 30, 2025

Habituámo-nos à morte…

 

Há algo de trágico e dramático em ter-se uma boa resposta, mas não se lhe encontrar pergunta correspondente. Como a chave caída na calçada, à qual só um acaso poderá vir a restituir utilidade, ao encontrar-se de novo a porta em que encaixava e que permitia abrir.

Parece-me residir, aqui, a mais profunda causa da crise das religiões tradicionais. Possuem sábias e demoradas respostas para interrogações entretanto sumidas.

Soma-se, porém, à tragicidade original e essencial daqui decorrente um segundo nível trágico: as perguntas nunca deveriam ter-se sumido, dada a sua natureza de condição necessária à existência do perguntador. Se não pergunta sobre si mesmo e a permanência de si aquele que pergunta, sobre o que perguntará? Bastar-se-á nas perguntas efémeras?

Não é, por isso, apenas trágico para as religiões constatarem que possuem respostas para perguntas que, entretanto, se esfumaram. É-o, principalmente, pela natureza das perguntas sumidas. De outro modo: a verdadeira tragicidade está em que o sujeito humano tenha desistido de se interrogar, tenha desistido de se perguntar sobre si, tenha desistido, afinal, de ser humano.

A história da emergência evolutiva do ser humano pode fazer-se a partir da capacidade de o humano se deixar interpelar pela unicidade e inevitabilidade da morte. No processo evolutivo, sabemos estar perante comunidades humanas porque as vemos associadas a (mesmo que rudimentares) sinais do culto dos mortos. Há humanos onde há a interrogação sobre a ‘questionabilidade’ do morrer. Os animais não têm culto dos mortos. Não se interrogam sobre o que é morrer.

Um olhar fino percebe a concomitância entre a interrogação sobre o morrer e a resposta que é viver. A lenta, mas consolidada história, do reconhecimento da dignidade do que é ser-se humano faz-se do confronto perante a inevitabilidade, unicidade e incontornabilidade da morte, perante a qual se torna necessário assegurar condições de proteção. É que a essas notas com que se afigura a morte soma-se uma última: a irreversibilidade.

O reconhecimento da necessidade de se proteger esse ‘algo’ considerado ‘dignidade humana’ encontra o seu berço neste inconsciente confronto com a impossibilidade de reverter a ação da morte.

Ora, os tempos em que vivemos trazem-nos uma radical novidade que a história da humanidade nunca ousara permitir-se: ‘desdensificou’ (anulou a densidade) a morte.

Hoje, morre-se como se já não se vivesse: sem drama! Acresce a isto um salto para a frente: pretende-se, não só não evitar a morte, mas, inclusive, assegurar que se pode pretendê-la e obtê-la. A morte ficou ao alcance da ‘mão que embala o berço’, do desejo feito direito sussurrado sob a capa da compaixão.

Sucumbem, assim, de uma só tirada, a dramaticidade da morte e a inviolabilidade do viver.

Deveriam incomodar-nos as mortes solitárias, na ordem das centenas, que são levadas à terra, sem a companhia de qualquer familiar. (Ouvir https://rr.pt/fotoreportagem/renascenca-reportagem/2025/10/17/ha-cada-vez-mais-nomes-estrangeiros-imigrantes-sao-quase-um-quarto-dos-funerais-solitarios-em-lisboa/444114/)

Deveriam pôr-nos em sobressalto os números dos suicídios por solidão (https://youtu.be/wKSIN7hIi0Y), nas sociedades do bem-estar e modernas. A modernidade favoreceu a emergência de um modo de nos pensarmos radicalmente solipsista, autossuficiente, visão que venho designando como intrinsecamente ‘inumana’, pois o humano é, por natureza, um ser dependente, nascido sempre de dois, necessitado de mais do que de dois para se saber existente, carente dos outros para ter uma cultura, uma língua, um chão para pisar. Mas uma certa modernidade (não tinha de ser assim! A modernidade esqueceu-se de que a autonomia é a interiorização da lei e não a capacidade de o sujeito ‘criar a lei’) tomou o rumo de nos isolar, negando-nos como ‘pastores do ser’ (Heidegger), como aqueles que recebem o ser que devem proteger e cuidar. Iludimo-nos, pensando-nos originariamente ‘eus’ sem ‘tus’. Mas a génese dos sujeitos é a invertida a esta: primeiro, está o ‘tu’, diante do qual emerge e nasce o ‘eu’.

A morte é, assim, enquanto experiência antecipada no morrer dos outros, ocasião de densa interrogação sobre o viver. No morrer dos outros, reconhecidos como ‘tus’, renascemos como humanos que regressam à fonte de todas as perguntas. Se perdemos a capacidade de nos deixarmos incomodar com o morrer, se tornamos asséptica a morte, não é apenas a morte que deixa de o ser, mas o próprio viver.

É, por isso, urgente ‘desabituarmo-nos’ da morte. Há que devolver-lhe a sua unicidade, a sua dramaticidade, a sua condição de lugar de inquietude. ‘Nenhuma pergunta é proibida’ – assim deverá manter-se, perante a morte, como dizem os dominicanos, na sua academia de Bagdad.

Em cada morrer, em cada morte, cria-se a cova de um berço de um renascimento: regressamos à humanidade, à condição do ser feito de ‘húmus’, frágil, vulnerável, e disso sempre consciente. Não alienado ou distraído de si. Presente a si! Densamente perturbado pela morte para, na resposta da esperança, buscar a quietude nunca acomodada ou sossegada.

Como diz o poeta José Rui Teixeira, no seu ‘Hitoritabi’:

‘Disseram-me que foi uma morte súbita.

A morte é sempre um processo, pensei.

E a esperança lastimou em faúlhas,

do outro lado do arame farpado,

esse modo tão esbranquiçado do frio.

 

                Tenho-me convencido das minhas incertezas.

A fé é uma ferramenta sem descanso.’

quinta-feira, outubro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 17 | Mistério na quinta dos bichos

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



Os olhos fechados… Tudo é realidade que entra pelas narinas.
J. e M. sentem, no rosto, o afago da natureza que se estende diante de si. Sob as pálpebras corridas, cheiram, ao longe, as rumorejantes águas do rio Vouga, lento e demorado. Uma suave brisa embala o lânguido movimento do baloiço onde descansam. Só os dois e o mundo! O mundo e a solidão acompanhada.
Com o vento preguiçoso, os odores do tempo.
Alfazema…
Laranjeira…
Alecrim…
Jasmim…
Os olhos não veem, mas o encanto do tempo assoma-lhes, pelas narinas despertas, ao mais íntimo de si.
Sonham que o mundo é só perfume, sem poder possuir-se em recipiente que contém e retém. Um ondular sem corpo…
Nisto, J. desperta M., dando-lhe para a mão um vaso de barro cru. Pede-lhe que volte a fechar os olhos e aproxime o vaso do seu nariz.
- O que vê o teu nariz?
Perplexa, M. hesita, como se tomada por um súbito pavor. Pareceu-lhe ver, com clareza, um rosto de uma memória já longínqua.
- Não te assustes. – Insistiu J. – Volta a fechar os olhos e vê o que sentes…
M. anuiu.
Fechou, de novo, com força, os olhos, aproximou, do seu rosto, o vaso de barro cru, e deixou-se transportar.
Sentia-se levada por subtis perfumes a que se ligavam vivências de que se esquecera ou que nem sua memória eram. Eram memórias contidas nos cheiros do fluir do tempo. Cada odor era um lugar, uma pessoa, um tempo, uma sombra ou uma luz… O seu ser era só odores! Tudo era cheiros, perfumes ou desprezíveis odores fétidos.
J. apreciava…
As rugas na testa de M. faziam supor momentos nebulosos a que se seguiam longos tempos de testa lisa. Os tempos sucediam-se.
No interior de M., apenas odores.
- Sonhamos poder conter com cheiros o que vivemos, mas o olfato é o mais espiritual dos sentidos. Nada o consegue reter.
J. parecia estar a pensar em alta voz.
E continuou…
- Sempre desejámos prendê-lo, gravá-lo e reproduzi-lo, mas o esquivo sabor do ser esvai-se por entre os dedos… Pelas narinas, para ser mais preciso! Quem o puder, um dia, conter, saberá qual o cheiro do Céu. Mas, até lá, restará este vaso de barro cru.
M. pareceu acordar de um sonho.
- Onde o encontraste?
- Há, aqui perto, uma pequena quinta. Não é bem uma quinta, fechada e retida. É uma escassa língua de terra entre a estrada e o rio. É atravessada por um pequeno curso de água onde dizem ter-se saciado, em tempos longínquos, um afamado ciclista nacional, em prova muito aplaudida. É uma espécie de oásis num deserto de eucaliptos. Resoluta contra o fogo, a vegetação faz-se de árvores já longevas, resistentes a toda a violência e fúria. Assim o decidira o seu dono, renitente em abater as memórias que lhe vinham dos seus antepassados que ali deixaram crescer robustas recordações em formas verdes. Em boa hora o determinara. Naquele escasso recanto, resistia-se. E, sob a folhagem rasteira, verde, sempre verde, fervilha vida em nutritiva terra de que se recolheu o barro com que se fez este vaso. Nele, os odores retêm-se para poderem reproduzir-se. Aprecia!
M. voltou a fechar os olhos. E novas memórias lhe assomaram à mente. Vivas... Muito vivas!
O viver transfigurava-se em odores muito firmes, determinados, quase carnais. Sentia-os como se vivesse cada momento, agora. Agora, mesmo! Odores de tempos vividos, uns por si mesma, outros como memórias de família, tangidas de dores e sofrimentos.
Ao longe (num longe feito tempo, que não espaço…), sente o odor das primeiras chuvas que enchem do sabor a terra as entranhas da alma. Regressa ao lugar que fez a infância dos avós.
Sente um seco odor a pó que a leva a voar até ao lugar onde se vota, em tempos de ditadura, num general que o regime derrubará à lei da bala.
Assaltam-lhe a mente as memórias contadas pelo seu avô.
O odor seco do pó leva-a ao interior da sala de soalho de madeira onde se vota.
Por entre as frinchas do soalho, caem os votos dos opositores, para que a contagem confirme a permanência dos autocratas.
- Sr. Cruz, e se falássemos do fontanário tantas vezes adiado?! – Interroga o representante do regime ao delegado da oposição, levando-o para longe do lugar onde se fazem as contas de uma enviesada eleição.
Esfuma-se a memória e continua a voar pelas ondas do odor…
Sente o cheiro das águas calmas do rio, ladeado de perfumados laranjais.
Deixa-se levar ao tempo de um século passado em que um renomado abade, de nome Santiago, pagou, com oito mil cruzados, a ponte, não distante dali, que continua a unir o que estava separado, como o pretendera o homem da igreja. Pois de que se faz a missão de um eclesiástico senão de unir o que está separado?!
Vai, ainda, ondulando pelos odores das laranjeiras, ao tempo em que um homem, de nome Severi, governava aquelas terras, mal sabendo que do seu nome restaria marca perene na toponímia da região.
Odores! Só odores!
Sente, muito impregnado nas fímbrias da alma, o clamoroso odor de sangue de inocente derramado às mãos de um cruel pai rei ciumento dos amores do filho por uma donzela de nome Inês.
O seu viajar pelos odores leva-a ao mosteiro onde se tumulam os amores subitamente derrotados ao fio da espada. E vê, sob o túmulo da donzela, os rostos dos carrascos sobre que fizeram o escultor repousar o túmulo, como sinal da vitória do bem sobre o mal. Alcobaça perpetuaria, no transepto da sua Igreja monasterial, a imagem de que os cruéis do mundo não sairão vencedores… Mas o odor do sangue inocente é penetrante!
Profundas rugas se cavam sobre os olhos de M. É perturbadora aquela imagem, ainda que esquiva, como os odores que a provocam.
Tão esquivos são os odores! Como se escapam qual almas incontíveis!
Tudo ali, naquele vaso.
J. estava feliz. Sentia, no rosto de M., o fascínio de fruir do milagre a que a humanidade estava impedida de aceder: conter e reproduzir os odores de outros tempos e lugares.
Quando o conseguirá fazer um novo Galileu, já não do sentido a que acedemos pelo olhar, mas do olfato que nos antecede?
J. recolheu, das mãos de M., o vaso.
Logo se lhe abriram, de novo, os olhos.
Brilhava como a visão do transfigurado.
Não pretendia, porém, ali armar nova tenda. Havia que descer à quinta de onde recolhera a terra para fazer aquele miraculoso vaso.
Correram…
Não deram conta de como com eles correra, também, o tempo.
Após curvas, muitas curvas, chegaram à pequena quinta dos bichos. Bem lhes apetecia mudar-lhe o nome. O ‘lugar adâmico’, melhor seria.
Como se daquela fecunda terra se tivesse feito corpo de Adão, reservando-lhe Deus o poder de guardar na sua inacessível memória os cheiros de que se faria a sua vida.
M. parecia ouvir, no rumorejar das águas que desciam em direção ao Vouga, a cadência de um versículo ausente de Génesis: ‘Ficará, como sinal da tua vergonha, a maldição de não poderes tornar acessíveis os perfumes do teu viver.’
J. fez rolar, pelas águas do pequeno ribeiro, o vaso que logo se dissolveu, como se sal para salgar.
Recordava-se de que, pelas narinas, Deus insuflara o Seu espírito…
Nos perfumes do mundo, reavivar-se-ia, para sempre, a memória do primeiro momento. Para sempre inacessível o mundo dos cheiros. Como memória de que o homem se faz de corpo e alma. De um corpo que não consegue conter toda a alma…

 


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

quarta-feira, outubro 08, 2025

O desafio de fazer amanhecer: para tempos de noite…

 

A noite e o dia são portentosas metáforas, densos símbolos da condição ética do ser humano, coletivamente pensado.

O dia é esse tempo em que um sol comum orienta o agir humano. Referências comuns iluminam o caminhar, também ele comum, dos descendentes de Adão, essoutra imagem simbólica da condição frágil que a todos caracteriza.

Na noite dos tempos, porém, apaga-se a luz comum e fica a penumbra ou, mesmo, a densa escuridão. Frágil, como no dia, o homem procura não se deixar abater pelo peso das trevas. E emergem as bruxuleantes centelhas de luz própria. Já não a luz comum, mas as autogeradas fontes de luminosidade. E, na ausência de uma natural luz comum, brotam as robustas luzes nas trevas, que se impõem, como holofotes, aos mais hesitantes e esperançosos de um novo amanhecer, sábios de uma memória que lhes lembra que não são, eles mesmos, a luz. E densifica-se o poder dos que, na sombra, encandeiam os demais e lhes impõem o seu irradiar.

Porque é a terra que gira em torno do sol, unem-se as mãos do que as fazem rodopiar sobre si, de modo a provocar um novo amanhecer.

Ele poderá tardar. Muitas luzes se sumirão sob a incandescência dos fortes, mas a noite não durará para sempre. É preciso é não confundir, entre as sombras, as agitações do vento do caminhar de um Homem. E permanecer peregrinante na esperança.

Os tempos são de noite.

Os nomes com que se queria proteger o Homem renomearam-se e são, agora, a sua fonte de destruição. Dos direitos ditos protegidos da tentação totalitária resta um vago desejo, reconfigurados que estão sob a capa de um individualismo que tornou sol um relampejo solitário de luz.

O homem invertido isolou-se, fechou-se, amarfanhou-se numa ilusão de si, convencido de que o foco que leva na mão o tornou um novo pirilampo. Mas a sua luz não é já a de uma natureza protegida de todos os assaltos. Buscava, no dia, a luz para onde se projetava. Projeta-se, agora, como luz de si mesmo. Oh, vã cegueira de um olhar apagado pela incandescência da própria luz!

Abandonou o seu ser de peregrino. Tornou-se um errante.

Só. Olha em redor e vê-se isolado.

Não vê, afinal. Pressente!

Mas o dia virá…

O dia já veio, aliás.

Numa outra noite… Na aurora dos tempos, a noite dos homens deu lugar ao dia de Deus e a semente da esperança foi escavada na rocha e lançada à terra.

A terra foi tomada em mãos, girando de si sobre si e aguarda a Hora. O dia vencerá, já vencedor que é. E os ‘eus’ já não serão só somados, mas comunionados como pessoas.

Porque ser-se indivíduo não é, ainda, ser si mesmo. Só no outro se é si mesmo. Sem ‘tus’, não há ainda, dia. ‘Tus’ que irmanam, ‘tus’ que são irmãos.

O dia virá… O dia já veio.

Assim o lembrou o sábio rabino Pinchas…

«Rabi Pinchas perguntou aos seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia.

"É momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carneiro?", perguntou um dos discípulos.

"Não", respondeu o rabi.

"É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira de uma figueira?", perguntou o segundo.

"Não, também não é esse momento", replicou o rabi.

"Então é quando chega a manhã?", perguntaram os discípulos.

"Também não. É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão ou nossa irmã", replicou o rabi Pinchas. E concluiu: "Enquanto não o conseguirmos, continua a ser noite".»[1]

 

Na noite dos tempos, sente-se, já, o calor da aurora, meu irmão!




[1] Tomas Halík, A noite do confessor: a fé cristã numa era de incerteza, Prior Velho, Paulinas, 2014, p. 277.

terça-feira, outubro 07, 2025

Sabes, leitor... | 22 | Marca de água do livro de Grégor Puppinck, 'Os Direitos do Homem Desnaturado'

 


Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O(s) autor(es) e a obra
Grégor Puppinck, Os Direitos do Homem Desnaturado, Cascais, Princípia, 2019.

Há pessoas a quem muito devemos, sem lhe conhecermos a autoria do bem que recebemos, mas sabendo que para com alguém temos dívida que nunca saldaremos. Puppinck é um desses homens a quem o mundo muito deve, sem, porém, o saber e, provavelmente, sem nunca lho agradecer, devidamente.

Tal constatação conflui com uma citação de George Elliot que encontrei em filme que vi, poucos dias antes de começar a leitura deste livro que, agora analiso. Diz a poetisa do século XIX (que se ocultava sob este pseudónimo masculino): '...pois as melhorias do mundo dependem em parte de atos que não constam da história; e se as coisas não estão tão más para ti e para mim como poderiam estar, isso deve-se em parte àqueles que viveram fielmente uma vida escondida e que repousam agora em túmulos que ninguém visita.'

Não sei se, um dia, num futuro que se espera muito distante, o túmulo de Puppinck será alvo de romagens e visitas regulares, mas sei que o seu legado disso seria merecedor.

Cheguei às obras deste eminente jurista no decurso da leitura de obra de Gabriele Kuby, que refere este seu ‘os Direitos do Homem Desnaturado’. Li, porém, em primeiro lugar, o seu ‘Objeção de consciência e direitos humanos’, de que já aqui fiz análise, e em que percebi a luminosidade e brilhantismo da sua abordagem, que me deixou o desejo de vir a ler outras obras suas. Esta é a segunda que leio, reconhecendo, nela, igual qualidade.

Puppinck é brilhante. E os pensadores brilhantes levam luz às escuridões que os rodeiam. Os tempos exigem homens assim.

Enquanto diretor do European Centre for Law and Justice, uma ong sediada em Estrasburgo, a ele devemos a condução de muitos processos judiciais que permitiram continuar a proteger os valores fundamentais, de que falam os seus livros. A sua ação tem sido reconhecida, internacionalmente, sendo perito no âmbito dos Direitos Humanos, convidado por diversas organizações e, inclusive, pela Santa Sé, sendo, também, um autor premiado. Em 2016, recebeu o prémio Humanismo Cristão, pelo livro ‘a Família, os Direitos do Homem e a Vida Eterna’, um livro a analisar, futuramente, nesta mesma rubrica.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

Puppinck oferece-nos, com este livro, um bem a revisitar, regularmente.

Nele, cruzam-se profundidade, oportunidade, visão de passado e visão de futuro, alicerçadas numa fina análise do presente. Esta característica (de ordem formal) concretiza-se na leitura (de ordem material) que nos propõe sobre o que estamos a fazer com os direitos humanos.

Para a sua análise, Puppinck vai à história. Sim, à história mais longínqua (enraizada no espírito iluminista e revolucionário – da revolução francesa, particularmente), mas encaminhando-nos para a história mais recente da ‘construção’ da declaração universal dos direitos humanos. Talvez, para muitos dos leitores deste livro, o que nos é contado seja uma autêntica surpresa. Puppinck dá nomes às abordagens. Jacques Maritain, Julian Huxley, Charles Malik, entre outros, passarão, depois da leitura desta obra, a ser ‘representantes’ dos ‘lençóis freáticos’ (a expressão é minha!) em que bebem as duas mais significativas formas de ‘ler’ os direitos humanos: Maritain e Malik, uma leitura personalista; Julian Huxley (irmão de Aldous Huxley, autor de ‘Admirável Mundo Novo’), preconizador de uma leitura materialista e ‘desvinculada’ da natureza.

Como tão bem evidencia Puppinck, ‘havia duas conceções de Homem e da sua dignidade em concorrência. Segundo uma delas, o Homem é filho, é portador de uma natureza e recebe a sua dignidade Deus ou da natureza; de acordo com a outra, o Homem é pai de si próprio e autor da sua dignidade. A oposição entre estas duas abordagens, encarnadas, respetivamente, por Jacques Maritain e Julian Huxley, é radical; estamos perante duas conceções que geram dois movimentos opostos. A dignidade encarnada realiza-se no cumprimento, por cada pessoa, da sua natureza humana, por exemplo, no facto de ter filhos, de os educar adequadamente, de assumir as suas responsabilidades; pelo contrário, a dignidade desencarnada consiste numa libertação ou numa ultrapassagem, por cada pessoa, da sua própria natureza. Resumindo: a dignidade encarnada consiste em ser plenamente criatura, e a dignidade desencarnada em ser criador de si próprio. Segundo se opte por uma ou por outra conceção do Homem, os direitos do Homem seguem direções muito diferentes, sendo expressão, num caso, do direito natural, e no outro, da vontade.’ (p. 53)

Estas duas linhas emergirão e submergirão, na interpretação dos ‘Direitos Humanos’.

Os sinais diante de nós são inquietantes, pois o avolumar da interpretação ‘huxleyana’ tem favorecido uma abordagem dos direitos humanos que os desvinculam da natureza humana, fazendo-os radicar numa interpretação voluntarista do ser humano (a vontade do indivíduo é que é o novo soberano e a fonte da ‘moralidade’ e fundamento dos direitos humanos). A essência da vontade é ser ‘arbitrária’, desencarnada, desenraizada. O ‘Homem’ da linha ‘huxleyana’ é um ser sem memória, sem vínculos corpóreos: o corpo é um apêndice, um acrescento não humano, como se fosse possível pensar-se o indivíduo sem história, sem uma dimensão visível, tocável. O ‘Homem’ da abordagem huxleyana é só ‘anima’, ‘espírito’, não é corpóreo. É, por isso, que a linha huxleyana aceita o ‘aborto’ (o ‘monte de células’ não é humano…), a eutanásia (matar o corpo não é, para um huxleyano, matar o humano), o eugenismo (eliminar o deficiente faz parte de uma ‘libertação’ de um corpo que prende e corrompe a dignidade), as ‘barrigas de aluguer’ (‘importa é progredir, pois as vivências corpóreas não deixam marca’, parecem dizer, em surdina, os huxleyanos), etc.

Puppinck evidencia-nos, com descrições factuais (São inúmeros os processos judiciais que correram no tribunal europeu dos direitos humanos que são aqui recordados. Em muitos deles, participou o próprio autor.), como, decisão após decisão, os tribunais dos direitos humanos, ao arrepio do respeito pela subsidiariedade (que deveria reconhecer, em muitos dos casos, a incompetência das instâncias internacionais para se sobreporem à soberania dos Estados) que tinham sido constituídos para nos protegerem das ideologias que pretendiam manipular-nos e justificar as ofensas contra a dignidade humana, (originariamente compreendida como assente numa natureza definida como unidade de ‘corpo-alma’), têm sido, eles mesmos, os catalisadores de uma ‘evolução’ interpretativa que está a criar um novo ‘tipo de Homem’ merecendo críticas de inúmeros países que ameaçam, inclusive, desvincular-se da sua tutela. (Vale a pena, a título ilustrativo, recordar como diversas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tomadas pelas secções deste Tribunal, e pretendidas como definitivas, vieram a ser anuladas, posteriormente, pelo plenário do Tribunal, muitas vezes, porque os Estados ameaçaram desvincular-se da tutela do Tribunal, ou porque a pressão internacional evidenciou o absurdo da primeira decisão. Entre os casos, o que previa que os Estados fossem proibidos (em decisão de 2009), apesar de decisões nacionais contrárias, de ter símbolos cristãos nas escolas e espaços públicos. O plenário do tribunal reverteu, em 2011, essa decisão, reconhecendo a legitimidade dos Estados, subsidiariamente, decidirem sobre ter ou não tais símbolos, de acordo com a história e especificidade de cada povo e cultura.)

No fundamental, está em causa uma compreensão dos Direitos Humanos que os entende num registo individualista, espiritualista e gnóstico (a corporeidade é, segundo esta perspetiva, desprezível, e deve ser superada), contribuindo para o emergir de um transumanismo que se constitui como o corolário de uma contradição a denunciar: os direitos que se tinham definido como ‘humanos’ (defensores da humanidade e do ser «humano») conduziram, afinal, à ‘desumanização’ e à recusa do humano, através do ‘transumano’.

Os sinais que deverão inquietar-nos, perturbar-nos, acordar-nos, estão diante de todos.

Puppinck, através das inúmeras descrições sobre como se foi criando este ambiente tóxico e sufocante, mas também através das histórias dos sucessos na proteção da autêntica natureza humana, conduz-nos ao reconhecimento de que os cidadãos, reunidos e ativos, podem travar a vertigem que parece ter tomado conta dos que deveriam proteger-nos.

O autor descreve, em muitas das páginas, os ‘bastidores’ das decisões, evidenciando que não estamos diante de um processo irreversível, ‘espontâneo’, impossível de travar, como se se tratasse de algo ‘natural’ e fatalmente esperável. Há ‘rostos’, ‘nomes’, ‘organizações’, intenções determinadas na raiz das mudanças a temos assistido. Muitas delas, já prenunciadas, antes mesmo de estes movimentos terem o poder que hoje têm. Nomes como os de Margaret Sanger (no início do século XX) e Judith Butler (em meados do mesmo século) diziam pretender o que, hoje, está a ser levado por diante por agendas economicamente muito poderosas e mediaticamente muito sustentadas.

Puppinck, com a coragem de quem não teme ser cilindrado pelos que propõem um ‘novo Homem’, denuncia, neste livro, a construção desse utópico futuro, evidenciando que o ideário de um mundo de perfeitos (sem corpo e sem limites) nos conduzirá a uma sociedade onde as reais diversidades (as que nascem de termos origens diversas, culturas diversas, condições diversas, mas que a dignidade torna comuns) se extinguirão, ficando apenas um homem perfeito, tecnologicamente concebido, desumanizado, porque desenraizado.

Como recorda em vários passos do livro, o rei Ubu (personagem de livro de Alfred Jarry) é ridículo, absurdo, e vai nu. Deixou de estar vinculado à sua natureza, tornando-se ‘desnaturado’ (em português, a ambiguidade semântica dá força ao título: o ‘desnaturado’, desvinculado da natureza, é um vadio, um errante, um ser ‘deserdado’ da humanidade… um ‘desnaturado’, enfim!)

Continuarão a existir crianças que denunciem a nudez do rei?

Com Puppinck, poderemos contar… E com os seus leitores?

Na mesma página que o autor (citações)

‘Passados 70 anos da Declaração Universal, os direitos do Homem invadiram o imaginário político e o universo jurídico; e revolucionaram as instituições, quer as nacionais, quer as internacionais, impondo uma moral universal centrada nos direitos individuais por meio da malha cada vez mais apertada duma rede de instituições encarregadas de obrigar todos os seres humanos a respeitá-los. No século XX, os direitos humanos tornaram-se uma filosofia universal que exprime uma conceção do Homem. Este livro procede a uma análise dessa conceção do Homem mediante uma análise dos seus direitos. Para tal, compara a intenção original dos redatores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, patente nos arquivos de 1948, com a interpretação evolutiva que dela foi sendo feita pelas instâncias internacionais.’ (Prefácio, p. 7)

‘[…] o que pretendo partilhar não é tanto uma crítica quanto uma visão da evolução atual e futura do Homem que está presente nos direitos do Homem. Mais precisamente, este livro descreve a passagem dos «direitos do Homem» de 1948 aos «direitos do indivíduo» dos últimos 20 anos, a que se seguiram os «direitos transumanos» atualmente em formação. Essa evolução reflete a evolução da relação entre o Homem e a natureza. Assim, enquanto os direitos do Homem de 1948 refletiam direitos naturais, a afirmação do individualismo gerou novos direitos antinaturais, como os direitos à eutanásia e ao aborto, que levaram, por sua vez, à emergência de direitos transnaturais ou transumanos, que garantem atualmente o poder de redefinir a natureza, como o direito ao eugenismo, o direito aos filhos e o direito a mudar de sexo. A um nível mais profundo, esta evolução dá testemunho de uma grande transformação na conceção da dignidade humana, que tende a ficar reduzida exclusivamente à vontade individual, ou ao espírito, por oposição ao corpo, e que encara a negação da natureza e dos seus condicionamentos como uma libertação e um progresso. Finalmente, este livro mostra de que forma os atuais direitos do Homem acompanham o transumanismo e promovem a ultrapassagem da democracia representativa. Terminada a análise, aquilo que pergunto é que aspetos do Homem merecem ser protegidos, ou seja, em que consiste a nossa humanidade.’ (Prefácio, p. 9)

‘O amplo consenso de que é alvo a noção de dignidade esconde uma discordância de fundo quanto ao significado desta noção. A despeito do seu êxito, a dignidade não deixou de suscitar debates, que são alimentados pela imprecisão da sua definição e da sua justificação, a ponto de haver quem considere que ela não passa de um slogan, por ser um conceito impreciso que visa dissimular a ausência de um fundamento objetivo dos direitos do Homem e que, em última análise, não passa de uma noção «inútil», que seria preferível abandonar em benefício da clareza do direito. Assim, a noção que pretende fundar teoricamente o edifício dos direitos do Homem, e depois o edifício do ideal democrático, continuar a ser contestada não só na sua existência e no seu significado, mas até na sua realidade.’ (p. 36)

‘Havia duas conceções de Homem e da sua dignidade em concorrência. Segundo uma delas, o Homem é filho, é portador de uma natureza e recebe a sua dignidade Deus ou da natureza; de acordo com a outra, o Homem é pai de si próprio e autor da sua dignidade. A oposição entre estas duas abordagens, encarnadas, respetivamente, por Jacques Maritain e Julian Huxley, é radical; estamos perante duas conceções que geram dois movimentos opostos. A dignidade encarnada realiza-se no cumprimento, por cada pessoa, da sua natureza humana, por exemplo, no facto de ter filhos, de os educar adequadamente, de assumir as suas responsabilidades; pelo contrário, a dignidade desencarnada consiste numa libertação ou numa ultrapassagem, por cada pessoa, da sua própria natureza. Resumindo: a dignidade encarnada consiste em ser plenamente criatura, e a dignidade desencarnada em ser criador de si próprio. Segundo se opte por uma ou por outra conceção do Homem, os direitos do Homem seguem direções muito diferentes, sendo expressão, num caso, do direito natural, e no outro, da vontade.’ (p. 53)

‘Durante todo o período das negociações que terminaram com a assinatura, em Londres, a 5 de maio de 1949, do Estatuto Fundador do Conselho da Europa, os Estados discutiam a referência ao cristianismo e à religião no preâmbulo do mesmo. Numa versão inicial do estatuto, inspirada no congresso de Haia, os governos declararam, logo na primeira frase, que fundavam o Conselho da Europa «com a força do comum compromisso dos seus povos com as liberdades individuais garantidas pelas tradições da sua civilização cristã e pelas suas instituições políticas». A referência à «civilização cristã» respondia diretamente ao pedido de Pio XII, mas foi substituída por uma referência aos «valores religiosos e morais», que acabou por ficar reduzida aos simples «valores espirituais e morais que são o património comum dos seus povos». Deste modo, o fundamento da unidade europeia foi desmaterializado, passando de político-religioso, enraizado na história e na geografia, a indefinido. A sugestão de referir «a caridade» e «a dignidade e o valor da pessoa humana» entre os valores fundadores do Conselho da Europa também não vingou. Os únicos valores explicitamente reconhecidos no «Preâmbulo» são, pois, os valores – inteiramente liberais – da liberdade individual, da liberdade política e da preeminência do direito.

Nas Nações Unidas, aconteceu sensivelmente a mesma coisa. Durante a redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, houve vários representantes de países – nomeadamente, os do Brasil e os da Argentina – que solicitaram que ficasse registado no artigo 1.º que «o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus»; pretendiam assim afirmar que a «origem absoluta» do Homem e dos seus direitos não é o Estado, mas Deus, por considerarem que a causa das crises totalitárias pelas quais passavam as sociedades era a perda da ligação a Deus. Além disso, esses países estavam convencidos de que o reconhecimento de Deus refletiria bem melhor os desejos e as esperanças dos povos do que a expressão de uma «filosofia agnóstica estéril», para além de refletir a fé religiosa da maior parte da humanidade. Os seus esforços foram, contudo, contrariados pela viva oposição dos representantes da China e da URSS.’ (pp. 56-57)

‘Na prática […] os direitos do Homem não vogam acima da política; pelo contrário, transformaram-se num campo de batalha ideológico, e o seu conteúdo é tudo menos imutável. […] O desejo de conferir personalidade ao Homem dos direitos do Homem, considerando-o no contexto do seu meio familiar, profissional e religioso, não permitiu corrigir o problema original dos direitos do Homem: serem e continuarem a ser fundamentalmente um instrumento ao serviço dos indivíduos, e contra duto aquilo que lhes resiste. A partir de 1948, o verniz personalista de que tinham sido revestidos vai estalando progressivamente sob a pressão do individualismo: o desejo de afirmação de si é mais forte do que o gosto pela harmonia, e é em nome dos novos direitos do indivíduo que os direitos da pessoa, consagrados em 1948, são hoje contestados. […]’ (pp. 66-67)

‘O que foi que aconteceu aos direitos do Homem, para que povos que viveram tanto tempo oprimidos os rejeitem desta maneira, vendo neles uma nova opressão, um perigo mortal para as suas civilizações? O que aconteceu foi que se tornaram um poder antidemocrático e um solvente da pertença familiar, religiosa, cultural e nacional, uma coleção de (falsos) direitos individuais ao deboche e à morte. Atualmente até a Igreja desconfia deles, tendo recuperado críticas antigas. Os muçulmanos desprezam-nos; pior, ainda, redigiram uma Declaração Islâmica dos Direitos do Homem (1990), fundamentada na lei islâmica, à qual a Liga Árabe foi buscar inspiração para redigir, em 2004, a sua Carta Árabe dos Direitos do Homem. Por sua vez, a Associação das Nações da Ásia e do Sudeste Asiático (ASEAN) seguiu-lhe o exemplo, adotando, em 2012, uma Declaração dos Direitos do Homem da ASEAN. Estas declarações particulares foram criticadas pelo Alto Comissariado para os Direitos do Homem da ONU, pelo facto de serem, pelo menos em parte, contrárias às normas das Nações Unidas. A verdade é que os direitos do Homem não cumpriram as promessas do personalismo; e é natural que assim seja, uma vez que não havia nenhuma autoridade que os obrigasse a isso. Deste modo, o revestimento personalista, que conferia alguma consistência ao Homem dos direitos do Homem, foi erodido pela usura das reivindicações, deixando à vista um ser nu, desencarnado.’ (p. 72)

‘Foi em 1992 que o Tribunal Europeu decidiu alargar a esfera da intimidade para além do «”círculo íntimo” no qual cada um pode conduzir a sua vida pessoal a sua grado», passando a «englobar, em certa medida, o direito de o indivíduo alimentar e desenvolver relações com os seus semelhantes». A vida privada/intimidade passou então a ser a vida privada/liberdade inspirada na privacy americana; deste modo, a vida privada deixou de ser a vida vivida na intimidade familiar (da qual a sociedade está privada), passando a ser a liberdade que cada um tem de agir, em todas as circunstâncias, em conformidade com o seu foro interno, ou seja, a liberdade de ser si próprio. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha dado este passo em 1965, considerando que a proibição da contraceção era um atentado à vida privada. E foi também esta nação alargada de vida privada que permitiu impor, em 1973, a legalização o aborto, na sequência do caso Roe vs. Wade; nessa altura, um juiz americano apresentou uma definição significativa da vida privada: «Facto moral segundo o qual a pessoa pertence a si própria e não aos outros, nem à sociedade considerada no seu todo». Foi, portanto, da afirmação da primazia da pessoa que resultou o alargamento da vida privada em detrimento da sociedade.’ (pp. 80-81)

‘[…] o individualismo vai-se alargando, absorvendo para o foro interno sucessivos elementos do foro externo, e fazendo aumentar a liberdade individual. Este alargamento começou por incidir sobre os primeiros círculos que rodeiam o foro interno, procedendo à privatização da religião, da consciência, do corpo, da família da sexualidade, da procriação, da morte e das relações sociais, até alcançar quase toda a existência.’ (p. 82)

‘Ao longo dos tempos, o direito ignorou sempre os laços sentimentais em benefício dos laços matrimoniais, a fim de melhor poder apoiar estes últimos; ultimamente, porém, optou, de forma idealista, por fazer dos sentimentos o aspeto essencial da consistência da família. De passagem, esta foi também subjetivada, recebendo a designação de «vida familiar». Assim, inicialmente, a convenção protegia a vida familiar entendida como vida da família; atualmente, pode haver vida familiar sem família, uma vez que a expressão «vida familiar» designa apenas o afeto que várias pessoas têm umas pelas outras, e que passou a merecer o reconhecimento e a proteção da sociedade.

Com efeito, a princípio, a vida familiar pressupunha «a existência de uma família» fundada no casamento ou resultante de uma filiação, mesmo que natural; progressivamente, contudo, o tribunal foi-lhe retirando a consistência objetiva, acabando por reconhecer a existência de vida familiar desde que existam «laços pessoais forte» ou «laços pessoais efetivos» entre adultos e crianças, mesmo na ausência de qualquer laços biológicos ou jurídicos, ou entre dois adultos, sejam de que sexo forem, mesmo na ausência de casamento, de filhos ou sequer de coabitação: basta que duas (ou mais) pessoas declarem que mantém uma relação afetiva ou sexual para beneficiarem do reconhecimento e da proteção que é concedida pela sociedade às famílias.’ (pp. 89-90)

‘A vida privada perdeu por completo os limites e a família perdeu a consistência; uma e outra passaram a ser dominadas pelo espírito individual, o espírito da subjetividade. É deste domínio, deste reino do indivíduo, que emergem uma nova legitimidade e um novo soberano, soberano esse que será, por sua vez, fonte de novos direitos.’ (p. 91)

‘A recusa da natureza humana resulta na recusa da moral, pensada como o caminho para a realização da pessoa. Isolada da natureza, a moral transforma-se em moralismo, constituindo um obstáculo social ilegítimo à liberdade individual. O papel dos direitos do Homem é, então, destruir esse obstáculo, que o mesmo é dizer, no fundo, destruir a ontologia realista que deteta uma sabedoria (um nomos) na natureza.’ (p. 101)

‘O Tribunal Europeu perdeu de tal maneira o sentido da moral natural que não admite que esta possa justificar, por si mesma, a proibição de qualquer prática que o mesmo tribunal considere que entra no campo da vida privada. Deste modo, declarou que «as considerações de ordem moral, ou relativas à aceitabilidade social das técnicas em questão, não podem justificar, por si sós, a proibição total deste ou daquele método de procriação assistida, neste caso, a doação de óvulos», porque o desejo de ter um filho releva da vida privada. O tribunal deixou, pois, de aceitar qualquer tipo de interdição moral absoluta no campo da vida privada, e condena sistematicamente os Estados a instaurarem procedimentos que permitam, pelo menos, solicitar uma derrogação. Foi neste quadro que o tribunal condenou a proibição absoluta, por parte da Alemanha, do suicídio assistido.’ (pp. 102-103)

‘O que tem valor já não é tanto a vida, mas a vontade individual.’ (p. 109)

‘Deste modo, e segundo o tribunal, o respeito pelo direito à vida consiste apenas no respeito pela livre vontade das pessoais, que é simultaneamente a origem e a condição do direito ao suicídio. A objetividade do respeito pelo direito à vida é absorvida pela subjetividade da vontade.’ (p. 110)

‘Sendo impossível determinar o começo da vida humana, este torna-se, na perspetiva do tribunal, uma simples «noção», suscetível de uma «pluralidade de opiniões […] entre os diferentes Estados-membros». Significa isto que o começo da vida humana, isto é, aquilo que faz com que um ser seja humano, é subjetivo e relativo. É realmente o cúmulo, um Tribunal dos Direitos Humanos não saber o que é um homem!’ (p. 120)

‘A ideia de que o aborto é uma liberdade afirmou-se, portanto, com a erosão da consciência do valor da vida humana pré-natal e a correlativa afirmação do valor da vontade individual. Mas este duplo movimento é um só, e consiste na opção filosófica fundamental pelo crescente controlo do ser por parte da vontade, numa cultura que perdeu a sua inteligência metafísica, ou seja, a compreensão da identidade e do valor do ser propriamente dito. Esta opção resulta do abandono dos resquícios de metafísica que ainda revestiam de uma certa dignidade a vida humana pré-natal.’ (p. 124)

‘[…] do ponto de vista materialista, a eutanásia e o aborto não matam a pessoa, mas apenas um corpo, e são atos moralmente bons porque o prosseguimento daquela vida seria absurdo, contrário à evolução, e um fardo inútil para a sociedade.’ (p. 127)

‘’Esta oposição entre espírito e corpo consistiu inicialmente na afirmação da independência radical do desejo em relação à identidade sexual; depois, foi levada até à afirmação de uma independência da identidade sexual em relação ao próprio sexo. Deste modo, o desejo e a identidade sexual libertaram-se de todo e qualquer determinismo corpóreo e social, passando a ser objeto exclusivamente da subjetividade individual.’ (p. 130)

‘A ideia do direito a ter filhos foi durante muito tempo uma ideia chocante, porque se opõe à ideia de que um filho é um fruto do amor, um dom da natureza e de Deus. No direito, esta ideia é contrária ao princípio da inalienabilidade da pessoa humana, segundo o qual, desde a abolição da escravatura, deixou de ser possível, em teoria, ter direitos sobre uma pessoa; só se pode ter direitos sobre coisas. Significa isto que reconhecer o direito a ter filhos reduz as crianças a objetos do desejo dos adultos, um pouco como os animais domésticos que se pode comprar; note-se, aliás, que o direito a ter filhos é frequentemente acompanhado por uma transação financeira em benefício das clínicas de procriação medicamente assistida, bem como das agências de maternidade de substituição e de adoção.’ (P. 134)

‘[…] não é raro os governos quererem ser condenados por Estrasburgo, porque isso lhes permite justificar, perante as suas próprias opiniões públicas, a adoção de medidas que são impopulares.’ (p. 139)

‘De todos os casos de maternidade de substituição, o caso Paradiso e Campanelli era o mais escandaloso, e portanto o mais contestável [o tribunal, em primeira instância, tinha condenado a Itália por ter retirado a criança ao casal que tinha pagado 49 mil euros por ela, mas a decisão veio a ser revertida pelo plenário, após contestação.], dado que «a criança foi efetivamente vítima de tráfico de seres humanos: foi encomendada e comprada pelos requerentes».

Finalmente, por 11 votos contra seis, o Tribunal Pleno recusou-se a identificar uma «vida familiar» neste caso, tendo em consideração, em particular, a ausência de relação genética e o breve período de coabitação, e declarou mesmo que a convenção «não protege o simples desejo de fundar uma família». Mais: o tribunal considerou legítimo que essa criança fosse retirada, uma vez que «aceitar que a criança ficasse com os requerentes […] era o mesmo que legalizar a situação por eles criada, em violação de importantes regras do direito italiano». Com esta decisão, o tribunal conferiu aos Estados uma certa capacidade para se recusarem a ratificar as maternidades de substituição praticadas ao arrepio da lei, mas apenas quando não se constata a existência de uma vida familiar entre a criança e os adultos.’ (p. 139)

‘O reconhecimento do direito de aceder às técnicas de eugenismo negativo [impedir de nascer os que possuem malformações] deverá conduzir, no futuro, ao direito ao eugenismo positivo [manipular geneticamente, de modo a impedir a existência total de malformações].’ (p. 191)

‘Percebemos claramente […] que o progresso das biotecnologias está a suscitar desejos cuja realização é depois reclamada como um direito’. (p. 192)

‘O transexualismo é outra manifestação de transumanismo, na medida em que deixou de ser uma patologia, apresentando-se agora como uma liberdade – a «liberdade morfológica» reivindicada conjuntamente pelos militantes LGBTI e pelos transumanistas. Na verdade, a corrente LGBTI está na vanguarda da corrente transumanista, uma vez que é inteiramente motivada pelo ideal de liberdade relativamente ao corpo; deste modo, qualquer progresso de uma serve a outra.’ (p. 193)

 

‘Em 1919, Margaret Sanger, a fundadora do planeamento familiar, explicava que o controlo da natalidade «abre caminho ao eugenismo e preserva a ação deste»; é «a via de entrada para os educadores eugenistas». E tinha razão. Para Huxley, «são amplíssimas as possibilidades que se abrem» se a sociedade conseguir separar a função sexual da função reprodutiva».’ (p. 194)

‘Não é excessivo qualificar este sistema de totalitário, na medida em que impõe o respeito por uma moral cujo conteúdo é definido por ele próprio.’ (p. 209)

‘Em 1948, esses direitos foram definidos com base na natureza humana; atualmente, não existindo uma natureza humana, é o Homem que é definido com base nos direitos; o que significa que estes definem, a um tempo, o sujeito e o conteúdo dos direitos.’ (p. 209)

‘Algumas famílias cristãs que desejavam adotar crianças também deixarem de poder fazê-lo por terem reservas a respeito da homossexualidade. Uma consequência imprevista desta decisão de excluir os cristãos foi que os órfãos deficientes passaram a ter muita dificuldade em encontrar famílias de acolhimento; com efeito, o respeito pelas pessoas deficientes que leva os médicos a não as abortar é o mesmo que leva algumas famílias a acolhê-las.’ (Nota 440, p. 209)

‘[…] os novos direitos transformam-se em sobredireitos, porque são direitos sobre-humanos.’ (p. 219)

‘[…] é possível contrariar a ideologia liberal dominante através de uma mobilização política e religiosa.’ (p. 247)

‘Em janeiro de 2012, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, afirmava no Conselho da Europa que «chegou o momento de colocar algumas perguntas sérias a respeito do funcionamento do tribunal», convidando esta instituição a não «minar a sua própria reputação» com o seu ativismo; e insistia na necessidade de reformar o Tribunal Europeu, para que ele fosse «fiel à sua finalidade original». Três anos depois, o mesmo David Cameron decidiu, juntamente com o Partido Conservador , «cortar os laços entre os tribunais britânicos e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos», dando a última palavra ao Supremo Tribunal do Reino Unido; este passo foi apoiado por altos magistrados britânicos, que censuravam o ativismo antidemocrático do Tribunal Europeu.’ (p. 248)

‘A caridade não se exerce em sonhos de poder nem em discursos; encarna na realidade da existência. Temos de ter a graça de desejá-la por si mesma. Perante as novas desmesuras que ameaçam a nossa humanidade, o que é próprio do Homem, o que deve ser preservado e cultivado, não é o poder desencarnado, mas precisamente o oposto: a caridade encarnada.’ (p. 258)

 


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto recolhida do site editora Princípia

terça-feira, setembro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 16 | Mistério na curva da foz

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



- Deixa-me intrigada que, com dois olhos, um nariz e uma boca, se façam tantos rostos.
- E as relações geométricas entre eles, a cor da pele, as simetrias e assimetrias e outras variáveis? – Atalhou, prontamente, J., desvalorizando a surpresa da irmã. E continuava, como em noite de insónia, a acompanhar cada chegada e cada partida. Aquela tarde de verão nutria de acelerados passageiros a pequena estação em que desembocava a avenida central da cidade. Diante de J. e M., sentados no único banco exterior, uma pequena rotunda homenageava os bombeiros, preenchida de ervas sem flores. A um canto, enrolado sobre si, um homem, cujo odor fétido se sentia ao longe. As barbas cobriam-lhe o peito. Sentia-se o calor que exalava daquela pele. Mas o olhar parecia ausente. Só barbas e o odor… Aquele odor!...
- Bem sei. Mas não deixo de me admirar. Como um ligeiro desvio na maçã do rosto pode fazer de alguém um ‘quase-bonito’ ou, de um outro, uma autêntica Helena de Troia! E quanto se transmite num ligeiro franzir de sobrolho ou no esgar de dor! – Concluiu M., sem alongar a conversa.
O silêncio preencheu os espaços. E o tempo…
Subitamente, o olhar de ambos prendeu-se ao de duas mulheres. Cada um a uma mulher distinta.
Ambas belas. Ambas sofridas, no olhar.
Uma, de olhar negro, sulcos cavados nas redondezas dos olhos, olhava para diante, lenta, sem fixar nada.
- Como diz o povo, parece uma Madalena ainda não reencontrada! – Assim rompeu M. aquele demorado silêncio.
A outra mulher olhava para o mundo com a verdura dos campos. Profunda. Longa. Mas igualmente demorada.
- Credo! Olha-me estes olhos! – J. acotovelou a irmã, que, de imediato, recolheu o braço, em ligeiro movimento de dor. Deslocou o seu olhar da mulher de olhos negros para a que, agora, lhe apontava o irmão.
- Mas tanto sofrimento naquela beleza! – Rematou.
O caminhar daquelas duas mulheres cruzou-se frente ao banco onde estavam os dois irmãos, sem que se tenham sabido contemporâneas. Seguiram o seu rumo, distantes uma da outra, a uma distância que só no olhar daqueles irmãos se anulou.
Não mais se viram.
Mas não mais deixaram de ser vistas, no olhar de J. e M.
… e daquele triste e fétido homem, sentado no canto da estação que se ergueu de um salto, com uma energia que surpreendeu os irmãos. Sentou-se, junto deles.
- Admiram-se de tantos rostos se fazerem com tão pouco? Ah, quantos rostos se fazem com o mesmo rosto! Quantos rostos já tive eu próprio! E que rosto vedes, agora?
A pergunta não parecia mais do que retórica, mas M. e J. ficaram, por momentos, incomodados, como que surpreendidos pela urgência de lhe dar uma resposta.
- Bem… Quer mesmo saber? – Ousou dizer M.
O homem não parecia, porém, interessado em ouvir. Fechou os olhos, como quem busca, nas pálpebras, as letras de um discurso, e avançou.
- Conheço estas duas mulheres de as ver e de lhes reconhecer a história pelo olhar. Ambas mulheres amadas, desejadas e a quem um dia o amor tornou mães.
J. e M. estavam inquietos. Aquela conversa parecia emergir do nada. Se o homem vinha falar de olhares, era porque tinha estado atento à conversa.
Recordaram, rapidamente, todo o conteúdo dos seus diálogos. A ver se alguma coisa os poderia comprometer.
E aquele odor! Incomodava e quase tornava impossível acompanhar, com concentração, as palavras. Pareciam flutuar sobre lixo.
Entredentes, M. tartamudeou:
- Mano, mano, este homem será de confiança? Sabes quem é?
- Lembro-me de o ver sair da casa que dizes ser dos megapixéis, a casa de azulejos pequenos de cores diversas que parece ser uma foto de má qualidade quando ampliada.
- Bem me lembro. Mas mais parece um sem-abrigo…
O homem deteve o seu discurso, esbugalhou os olhos e fixou-os nos irmãos.
Um frio gélido, indiferente ao calor daquela tarde, percorreu cada osso e músculo dos seus corpos. Decidiram-se, num assentimento tácito, não mais o interromper até que considerasse chegada a hora de recolocar o selo sobre o pergaminho do seu discurso.
O homem voltou a fechar os olhos.
- Aqueles negros olhos são de uma mãe que do seu ventre viu nascer um amado filho. Viu-o crescer. Amou-o e viu-o ser amado até que, numa tarde em que boa notícia seria não lhe darem notícias, numa das curvas da foz a morte abrupta por acidente o levou dos seus braços.
- Regressa, todos os dias, mais de vinte anos volvidos, ao sítio de onde o levaram de si para sempre. Ali deposita flores e mantém viva uma luz. Todos os dias. Todos os dias.
O homem deteve-se, por um momento. Assoou-se, comovido, e prosseguiu.
- Por aqui passa, dia após dia. De comboio, desce até à cidade dos canais para daí seguir até às dunas do mar, onde recolhe as flores com que leva beleza ao lugar onde tudo, para ela, se fez feio. Assim, sempre. E para sempre.
As lágrimas desciam, lentas, pelo rosto de M. e J.
O silêncio fez-se demora.
Até que M., limpando o rosto, segredou ao ouvido do homem, cúmplice na dor.
- E a mulher de olhos verdes? De que dores fala aquele olhar?
O homem acomodou-se, no banco, como que finalmente recebido, pousou os cotovelos nos joelhos, repousando o queixo sobre as palmas das mãos. Fixou o olhar na rotunda onde não havia flores. Só plantas, mas nenhuma flor.
- Olhai para o que tendes diante dos vossos olhos. O que vedes?
A pergunta gerou estranheza em J. e M. O homem parecia querer desviar a conversa. Olharam um para o outro…
- Não mais do que uma rotunda e um singelo e justo monumento de homenagem aos bombeiros. – Ousou dizer J.
- Como os rostos falam, também pode ser muito sonoro o silêncio do mundo em que nos fazemos gente. Olhai com mais atenção.
M. arregalou os olhos de espanto, quando lhe pareceu perceber o que aquele homem pretendia mostrar-lhes.
- Vejo plantas que deveriam estar floridas, mas que não o estão.
- Achais que é porque não podem florir? Digo-vos que não. Não florescem porque não as deixam florir. A mulher dos olhos verdes pôde, um dia, florescer. Foi, também ela, amada, até que, num dia que rapidamente se fez noite, uma flor começou a florescer no seu ventre. ‘Desmancha-te!’ – disseram-lhe. ‘Desmancha-te!’. Ainda resistiu, uns dias, mas a malfadada lei que diziam protegê-la por ser mulher, desprotegeu-a de ser mãe. Não conseguiu resistir e foi ao desmancho, como lhe diziam. Nesse dia, a mulher que ela era continuou a sê-lo, mas a mãe que ela fora morreu no filho que as vozes lhe pediam que desmanchasse. Nesse dia, essa mãe morreu com o seu filho. Sonha, todas as noites, nas noites da sua solidão, com o filho que não deixou nascer. Vê-lhe um rosto, sente-lhe o cheiro, ouve-o chorar. Ele assalta-lhe os sonhos como pesadelo e é neste canteiro que ela vem desmanchar a sua perda. Nenhuma flor aqui voltará a brotar enquanto ela não renascer no seu coração.
M. sentiu-se revoltada… Revoltada… Queria gritar contra as vozes – sempre essas vozes, sem rosto nem nome; vozes sem olhar: o vazio! - e contra os que lhe tinham assegurado que, pela força das leis, a estavam a proteger. Mas a frieza das leis deixara-a abandonada à sua solidão. Nunca se perdoara ter impedido aquele filho de ver a luz. Deixara-o, para sempre, na noite, a escuridão da inexistência, o abandono da morte.
M. desejava poder deter-se diante do profundo daquele olhar vencido. Erguê-la da derrota de um dia para, restaurada, a fazer assomar ao olhar de outras mulheres que, como ela, se enrolaram de medo, aturdidas pelas vozes que repetiam, maviosamente: «Vai ao desmancho»! «Livra-te disso!»
Esta revolta cansou-a. Deixou-a perturbada, umbigada no mais profundo de si. Ela mesma, M., sentia que podia ter sido aquele filho rejeitado, recusado, ‘desmanchado’. Tomava conta do seu espírito uma certeza: - Se de um só pode depender-se assim, na fragilidade dos nossos primeiros dias, todos, então, sobrevivemos da nossa própria morte arbitrariamente evitada e vivemos vidas de um luto definitivo.
M. soluçava, à medida que estes pensamentos lhe preenchiam a alma.
Recomposta, exteriorizou uma pergunta com que cruzou o seu olhar com o daquele homem de sujas barbas até ao peito:
- Se sabe tudo isso, porque não diz a estas duas mães que há uma dor comum às duas?
- A dor da perda une-as, mas afasta-as um abismo. Uma era a mãe que queria ser e o fado impediu de continuar a sê-lo; outra foi a mãe que já o sendo desistiu de continuar a sê-lo. Antes de se encontrarem uma com a outra, terão de se encontrar cada uma consigo mesma.
M. adivinhara, nas suas errâncias, esta resposta.
O homem desenrolado de si concluiu:
Mas, - Digo-vos! – há um segredo, neste canteiro. Entre as plantas, cresce uma biloba – era-lhe difícil o nome de ‘ginkgo biloba’! -. Mesmo que sempre a cortem, ela voltará a brotar, vezes sem conta. Até ao dia em que dará fruto, ainda que sem flores.
- Sempre te disse, J., que a graça é o humor do Amor que Deus é. Nos abismos mais estéreis da existência, há sempre lugar para a esperança.
O homem ergueu-se do banco. Deu três passos e voltou-se. Olhou, fixamente, primeiro, o olhar de M., e, depois, o de J. e rematou:
- Muitas são as curvas com que se chega a uma foz. Mas esse não é, ainda, o lugar do fim. Todo o rio leva ao mar.
E subiu, trôpego, pela avenida, deitando um ligeiro olhar sobre o canteiro reverdejante.
M. e J. acompanharam-no, silenciosos, até que o perderam de vista.
Fecharam os olhos.
No ar, um suave perfume de flores!
…e um subtil odor a maresia…


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

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