sábado, junho 07, 2025

Sabes, leitor... | 18 | Marca de água do livro de Gabriele Kuby, 'A geração abandonada'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Gabriele Kuby, A geração abandonada, Cascais, Princípia Editora, 2021.

Gabriele Kuby é o que designo como uma ‘autora-pirilampo’. Caracteriza os ‘autores-pirilampos’ a capacidade de manterem intensa uma luz que lhes é própria mesmo em tempos de densa escuridão. E, como os pirilampos, são escassos e correm o risco da extinção: a poluição dos tempos e lugares colocam em perigo a sua existência.
Distintamente, porém, dos coleópteros a que também se dá o nome de ‘vaga-lume’, estão muito conscientes da fragilidade em que assenta a sua existência.
Gabriele Kuby bem o sabe. Está claramente consciente de que os tempos decadentes (e, por isso, de treva) em que vivemos se inebriam com a sua vacuidade e ufanam-se dela, sendo arrogantes e vigorosos. E, por isso, não teme, mas sabe como rugem as vozes que a querem silenciar.
Kuby bem sabe de que linhas se fazem os tecidos dos teares de hoje, pois também ela, enquanto socióloga, moveu as peças que enredam as lãs do novelo e constroem os hábitos com que, hoje, se veste a humanidade.
Mas em bom tempo dali se afastou e hoje, após uma tardia conversão ao catolicismo, no final da década de noventa, tornou-se uma voz que desperta do torpor coletivo que parece ter tomado conta do mundo, em particular do ocidente.
Os seus livros, de que se destaca o seu ‘a revolução sexual global’, secundando por este ‘a geração abandonada’, poderiam ter a forma de um relógio de mesa-de-cabeceira, pois inquietam e acordam consciências.
Neste tempo, em que as retóricas tornaram comum e vulgar o que é exceção e pretendem excecional o que é comum, a voz de Gabriele Kuby incomoda, porque nos coloca diante da verdade dos factos.
Kuby é corajosa. Sabemos (e ela também o sabe) como ousar questionar as agendas do ‘politicamente correto’, do ‘wokismo’, é colocar-se a jeito de ser cancelado. Mas, como já vamos ouvindo algumas vozes recordar, se lutámos pela liberdade, foi para nos subjugarmos a quem nos quer impor uma ideologia que nega o real e se propõe reconstruí-lo sobre constructos mentais artificiais? Kuby não aceita essa subjugação.
Ousa questionar, voltar à raiz das coisas, aos alicerces da realidade humana.
Desmascara as farsas e arrisca propor caminhos, em nome de uma autêntica liberdade, de uma genuína compaixão, de uma efetiva solidariedade humana.
Como se, perante os taipais com que se pretende disfarçar os efeitos de um tsunami, escolha a autenticidade dos escombros para, diante deles, reconstruir um sólido futuro. Os taipais não passarão, para Kuby, de um verniz que oculta o caos que é preciso olhar de frente para que se possa construir uma realidade robusta.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

Gabriele Kuby mostra, neste livro, grande inteligência. Bem sabemos, porém, que os seus ‘não leitores’ dirão dela, apenas os chavões habituais, assentes nos inúmeros preconceitos de quem não quer ousar parar para refletir. A vertigem de andar para diante, sem que saibam onde fica esse ‘adiante’, é que os move. Kuby propõe-se questionar se temos andado para diante ou se, pelo contrário, em nome do avançar, do progredir, nos temos desumanizado, cindido e dividido cada vez mais.
A resposta a esta questão fundamental encontramo-la no início e no final do livro.
Nas últimas páginas, encontramos a síntese de todo o caminho feito: ‘O mundo em que vivemos – aquele em que as crianças nascem – pulverizou e expôs a arbitrariedade das decisões humanas. O que devia estar unido foi separado: o corpo da alma, o homem da mulher, a sexualidade da fertilidade, a procriação da sexualidade, a crianças dos seus pais biológicos. Não terá chegado a altura de juntarmos novamente o que deve estar junto – corpo e alma, homem e mulher, sexualidade e fertilidade, pais e filhos?’ (p. 266)
Diante desta constatação se define a linha estruturante do livro: denunciar o que tem dividido o ser humano que somos, a realidade humana em que nos fazemos, propondo modos de superar essas cisões. No seu livro, a nossa autora percorre temas como o aborto, a educação sexual no contexto escolar, a equiparação dos múltiplos modelos de agregação de pessoas à estrutura familiar, as barrigas de aluguer, a procriação tecnicamente realizada, o impacto da pornografia no crescimento das novas gerações, as consequências das políticas de facilitação do divórcio, as estratégias de manipulação da opinião pública ao serviço da promoção da teoria de género, etc. O seu prisma é o de uma autora de contexto alemão, mas um leitor português sentirá que, lá como cá, as linhas repetem-se…
Os dados que recolhe (todas as suas afirmações estão blindadas, pois está consciente de quanto os adversários da sua tese farão para as descredibilizar) arrepiam. Demonstram como, em nome do individualismo que nos vem isolando cada vez mais, estamos a tornar esta geração um joguete nas mãos de adultos autocentrados e que perderam o sentido da dedicação e do sacrifício pelos mais novos. Importa a satisfação pessoal, mesmo que ela custe o direito a ter pai e mãe ou a ser criança, ou a ser amado, ou a ser respeitado no direito a saber donde se vem, ou, ou, ou…
As páginas deste livro lacrimejam: vertem as lágrimas não derramadas, de tão secos os sacos lacrimais de todas as vítimas de ideologias que rompem o que é humanamente desejável – o direito a nascer-se num quadro de amor, segurança e estabilidade.
Kuby retoma questões a que é preciso regressar como na primeira hora em que se tomou de assalto a convicção de que eram incontornável seguir a resposta então adotada: como poderá pensar-se o aborto como um direito quando em causa está a vida de um desprotegido humano? Como poderá deixar-se sobrepor o direito dos pais à felicidade no amor sem acautelar o direito dos filhos à felicidade de viverem a segurança de uma família originariamente constituída? Como poderá pretender-se assegurar um putativo direito a ter filhos quando, originariamente, deveria, sim, reconhecer-se um direito dos filhos a encontrarem nos seus pais biológicos o amor e o cuidado? Como poderá pretender-se que se, tecnicamente, é possível gerar um filho assim será de se fazer, sem acautelar as condições ético-morais em que a possibilidade técnica deverá ser concretizada? Poder fazer é sinónimo de ser legítimo?
Kuby ousa olhar para as consequências do que foram sendo decisões vertiginosas, tantas vezes tomadas em contextos de pressão mediática e estrategicamente bem estruturadas para que não se tivesse tempo de pensar.
E olha-as sob o prisma da grande vítima de todas estas decisões ditas ‘progressistas’: as crianças, os filhos! Eles são, com efeito, a geração abandonada de quem se deixou compadecer Kuby e que nos convida a que nos associemos à sua compaixão.
Contra os que nos querem vender a ideia de que os compassivos são os que querem mudar as leis em nome de abstratas inclusões, Gabriele Kuby fala de uma genuína compaixão que sofre as dores reais das crianças reais, filhas e filhos reais de famílias reais. Fala da realidade que leis inumanas, sustentadas no individualismo e num entendimento solipsista da liberdade, fragilizaram e fragmentaram. E, de forma corajosa e grávida de esperança, Gabriele Kuby desafia como que à recuperação da paciência do ourives que trabalha a filigrana: os cacos já se quebraram em pedaços próximos da pulverização, mas, paulatinamente, será possível reunir o que se quebrou. Este livro é um passo importante para que tal se torne possível. Assim seja acompanhada a sua publicação com profusa leitura. Os muitos leitores de Kuby poderão tornar-se, eles mesmos, ‘leitores-pirilampos’. E a escuridão clareará…

Na mesma página que o autor (citações)

‘Na nossa sociedade, as crianças são vistas em grande medida como um fardo. E ter e educar crianças não é, de facto, um conto infantil. É tarefa séria da vida. Vêm no mesmo pacote grandes alegrias e grandes sacrifícios. Durante a grande prosperidade, foi contada uma mentira a toda uma geração: que o divertimento é o sentido da vida, e que esse divertimento vem sem sacrifício ou sofrimento. De um momento para o outro, dar à luz destrói esta mentida. Eis nas nossas mãos um pequenino embrulho de humanidade, completamente indefeso, totalmente dependente de amor e cuidados.’ (p. 18)

‘Numa sociedade que coloca as necessidades dos adultos no centro, as crianças não se saem muito bem.
• As crianças são evitadas.
• As crianças são mortas antes do nascimento se forem indesejadas.
• As crianças são produzidas em laboratório se forem desejadas.
• As crianças são enganadas sobre a sua linhagem.
• As crianças são congelas como embriões e usadas para investigação.
• As crianças crescem em úteros de aluguer.
• As crianças são compradas e educadas por casais do mesmo sexo.
• As crianças são entregues nas mãos de estranhos desde a infância.
• As crianças são sexualizadas logo desde o jardim-de-infância.
• As crianças são confundidas sobre a sua identidade sexual.
• As crianças são doutrinadas sexualmente desde a escola primária.
• As crianças são encorajadas a «mudar» de género.
• As crianças são expostas aos smartphones.
• As crianças são expostas à pornografia.
• Imensas crianças são vítimas de abuso sexual.
• As crianças ficam órfãs pelo divórcio.
• As crianças têm de crescer em famílias destroçadas.
• As crianças ficam tristes.
• As crianças ficam doentes.
• As crianças são «dopadas» com Ritalina.
• As crianças são despojadas da sua infância.
As crianças são o nosso futuro. As crianças são humanas. As crianças têm dignidade – logo desde o início.
Vamos devolver a infância às crianças, e o futuro novamente a todos.’ (pp. 20-21)

‘O ato de procriação dá prazer quer a animais, quer a seres humanos. O homem e a mulher são atraídos um pelo outro com uma força que pode ultrapassar a vontade e a razão, para constituírem uma união biológica. Mas existe uma grande diferença entre animais e pessoas: nos animais, essa força irresistível surge durante um ciclo anual de reprodução. Nas pessoas, a atração sexual é independente de um instinto imperativo de procriação. Isto dá liberdade para o amor esfusiante, a alegria do desejo, os dramas de partir o coração ente amor e desejo, e os abismos da perversão.’ (p. 26)

‘Como pode a humanidade – não, não é a humanidade, são os influenciadores das tendências ideológicas – comprar a ideia de que a maternidade é um mero incidente para as mulheres, algo que se pode esquecer sem mais, e sacrificar no altar da carreira e da liberdade sexual?’ (p. 30)

‘Se as mães forem respeitadas, também os seus filhos serão respeitados. Mas esta alegação é apenas motivo de troça e ridículo entre as feministas sem filhos que lutam pelo direito ao aborto. Na Alemanha, 67% das jornalistas não têm filhos. Não admira que peguem nos megafones feministas. Elas nunca foram desafiadas por filhos para deixarem de estar autocentradas. Isso não se aprende no redemoinho dos escritórios editoriais, mas no processo de afinação do casamento e da responsabilidade parental.’ (p. 31)

‘Vivemos numa época em que a liberdade individual se tornou a virtude mais importante. Queremos reinar sobre a vida e a morte, e consideramos que isso é absolutamente indispensável para a nossa liberdade. Sou eu quem decide se e quando tenho um filho – e quando não tenho. Os meus direitos e necessidades estão primeiro lugar. Não há nenhum ser mais importante do que eu.’ (p. 33)

‘A missão de vida da americana Margaret Sanger (1879-1966) foi controlar a fertilidade feminina. A sua motivação era evitar que as classes baixas – especialmente a negra – se reproduzissem, porque a sua taxa de natalidade era mais alta do que a da classe alta branca.
A isso, à ideia de tomar medidas ao nível biológico para «melhorar» a raça humana, chama-se eugenia. Legalizar a contraceção e o aborto foi a missão de vida de Margaret Sanger. Em 1921, Sanger fundou a American Birth Control League, que em 1942 passou a denominar-se International Planned Parenthood Federation (IPPF).
Hoje em dia, Margaret Sanger seria afastada e legalmente punida pelo seu racismo. Mas os seus métodos e o seu desrespeito pela dignidade humana foram adotados pela IPPF, uma organização internacional que tenta reduzir a população mundial através do aborto de milhões de crianças. ’ (pp. 39-40)

‘O sofrimento da conceção indesejada pode ser devastador. Uma mulher nesse sofrimento precisa de ajuda, e pode encontrá-la.
Numa cultura de um individualismo extremo, em que tudo gira em torno dos direitos e desejos das pessoas, há uma tentação desmesurada para procurar uma saída: «Livra-te simplesmente dele, é só um punhado de células, o seguro de saúde paga as despesas, depois de uns dias tudo terminou e a vida pode continuar normalmente.
A sério?
Eis as estatísticas: todos os anos, em todo o mundo, mais de 50 milhões de mulheres decidem matar uma criança no seu útero. Na Alemanha, segundo Gabinete Federal de Estatística, 101000 mulheres fizeram-no em 2018.’ (p. 50)

‘A 28 de maio de 1993, o Tribunal Constitucional Federal declarou […] que:
«O embrião desenvolve-se enquanto pessoa, não para ser uma pessoa.»’ (p. 53)

‘A sentença que prescreve que o aborto é «ilegal mas isento de consequências» esvazia o Estado de Direito.’ (p. 55)

‘Com racionalizações bonitas mas sofisticadas, os tribunais de todo o mundo justificam o abandono da obrigação absoluta do Estado de proteger as vidas dos seus cidadãos.’ (p. 56)

‘A ferramenta mais importante para a confusão mental e moral é a distorção sistemática da linguagem para manipular a consciencialização das pessoas.
Um exemplo disso é a palavra «igualdade». Entre que pessoas é que o aborto promove a igualdade? Entre a mulher e o homem, que não pode dar à luz? A criança seguramente não obtém a igualdade porque a vida humana lhe foi retirada.
E «aborto» - que palavra tão estranha! Opera como um tranquilizante mental para mascarar a realidade de uma criança ser morta no útero. Algo é «removido», a gravidez é «interrompida» como se pudesse recomeçar, ou é «terminada», rápida, indolor e sem consequências – ou assim se faz acreditar à mulher.
A cessação da gravidez é apenas uma meia-verdade. Ela cessa porque termina violentamente a vida da criança.
O «tecido da gravidez» ou o «punhado de células» é descartado. Para os pais que querem um filho, o «punhado de células» é desde o início um direito ao filho. Eles celebram quando o teste de gravidez é positivo. Radiantes de felicidade, contam à família e aos amigos que vem a caminho uma criança. E observam extasiados as reações dos irmãos mais velhos do bebé, quando recebem a notícia – há dúzias de vídeos no Youtube a dar conta disso. Eles mostram entusiasticamente a primeira imagem da ecografia do seu bebé: E até poderão colocá-la na porta do frigorífico, onde os filhos possam ver todos os dias o novo irmão. Nunca lhes ocorre falar de «tecido da gravidez». E como é intenso o sofrimento de toda a gente quando esse bebé se perde por um aborto espontâneo!
A organização na Alemanha que mata estes bebés no útero a troco de lucro, com apoio governamental, chama-se Pro Familia, apesar de na verdade, destruir as famílias.’ (pp. 58-59)

‘Na psicologia da comunicação, esta técnica denomina-se «reenquadrar». Quando algo é colocado num novo enquadramento, as pessoas avaliam-no de forma diferente. O que é negativo parece subitamente positivo. Por exemplo, um ato que pese na consciência de alguém com culpa é colocado no enquadramento do «direito à autodeterminação» e da «escolha autónoma». Mas isso só dura até o ato ser realizado. O que acontece a seguir é o que foi bem descrito por Goethe no seu livro Os anos de Aprendizagem de Wilhem Meister: «Despeja-se a culpa na desafortunada pessoa e a seguir deixa-se que ela sofra a dor». Isto caracteriza a síndrome pós-aborto (SPA), a grave consequência do aborto.’ (pp. 59-60)

‘Com a descoberta da fertilização in vitro, tornou-se tecnicamente possível e legalmente permitido roubar voluntária e intencionalmente o parentesco a uma pessoa.’ (p. 73)

‘A mulher, ou o casal, que recorra aos métodos de reprodução artificial embarca no que pode ser uma viagem de um ano numa montanha-russa de esperança, ansiedade, humilhação, alegria e medo, que em quatro de cada cinco casos acaba numa desilusão profunda.’ (p. 79)

‘Para crianças TRA [tecnologia reprodutiva artificial], o risco de esquizofrenia e de psicose era 27% mais elevado, de ansiedade e outras perturbações neuróticas como a anorexia, 37% mais elevado, de perturbações comportamentais, como PHDA, 40%, e de perturbações do desenvolvimento mental, como o autismo, 22%, quando comparadas com crianças geradas por meios naturais.’ (p. 84)

‘Uma criança gerada numa barriga de aluguer cresce sozinha e não é amada num útero alugado. Anteriormente, o útero duma mulher era um local idílico e seguro, que imprimia no coração humano um irreprimível anseio por uma unidade perfeita. Para a criança gerada por uma barriga de aluguer, o útero é uma masmorra escura em que não entra um único raio de amor ou de antecipação, porque a mãe sabe que tem de entregar a criança a estranhos imediatamente após o nascimento. Ela tem de se formar a não ter qualquer relacionamento com a criança que freme dentro dela. Tem de refrear a alegre afeição, porque ela se transformaria inevitavelmente numa grande dor depois do nascimento.’ (p. 87)

‘A Índia, que em tempos foi a fábrica de bebés do mundo, com 3000 clínicas de reprodução, baniu a maternidade comercial através de barrigas de aluguer em 2019, e a Tailândia em 2015. Mas o negócio é florescente na Ucrânia e na República Checa.’ (p. 89)

‘Nenhuma pessoa tem direito a um filho; o filho é que tem direito aos seus pais biológicos.’ (p. 94)

‘As mulheres podem agradecer à «libertação das mulheres» o facto de apenas valerem o que o seu emprego lhes paga. Cuidar de crianças não conta como trabalho. A mulher que o faz não recebe nenhum reconhecimento, nenhuma ajuda financeira, e nenhuma pensão de reforma adequada, mesmo estando a fazer o trabalho mais importante de todos. Não só ela dá a vida a crianças que vão financiar as pensões duma população cada vez mais envelhecida, como dela dependem o futuro de toda a sociedade, a sua mera existência, o desenvolvimento das duas capacidades e a sua personalidade.’ (p. 113)

‘Cada resistência à doutrinação sexual das crianças em idade escolar é abafada pelos meios de comunicação social, ou atribuída ao mundo obscuro dos resistentes que perderam o comboio do pós-modernismo.’ (p. 164)

‘A assunção fundamental da nova educação sexual é a ideia de que uma criança é um ser humano que desde o início tem direito à atividade sexual e a experiência de luxúria tal como os adultos têm. Qualquer que seja o documento sobre educação sexual abrangente […] em que se pegue, todos defendem o mesmo: uma nova pessoa sexualizada sem identidade de género ou identidade familiar. Essa pessoa pode mudar de género. Ele/ela/diverso reduz a sexualidade à luxúria física, desconhece limites morais para a atividade sexual, evita a procriação através da contraceção e do aborto, e encara o casamento de um homem com uma mulher como uma relíquia do tempo patriarcal.’ (p. 164)

‘A International Planned Parenthood Federation tem 151 organizações filias e representações em 180 países, e por isso imenso poder para implementar os seus programas em todo o mundo.’ (p. 169)

‘A «liberdade de escolha» de matar um bebé no útero da mãe é apresentada às mulheres e aos jovens com outra expressão codificada: «saúde e serviços reprodutivos». No obscuro jargão da ONU e da EU, o acesso universal aos contracetivos, o aborto e a educação sexual nas escolas são globalmente apresentados como «os níveis mais elevados de cuidados de saúde». Mas as promessas revelam-se novamente ciladas em prol das estratégias dos revolucionários sexuais, que fazem o oposto do prometido.
Sexo seguro é algo que não existe. O sexo promíscuo levou a uma epidemia de doenças sexualmente transmissíveis – um quarto de todas as adolescentes americanas sexualmente ativas já as contraiu. A gravidez também não pode ser evitada a 100% como um efeito secundário, indesejável do sexo, mas produz novos clientes para a indústria abortiva.’ (p. 169-170)

‘Os educadores sexuais normalmente chegam de fora e dão a impressão de serem «especialistas», mais competentes portanto do que os professores ou os pais. Simultaneamente, apresentam-se aos estudantes como amigos, pessoas de confiança e defensoras contra pais severos e as suas ideias morais fora de moda. Eles desviam as crianças e os adolescentes, cujo desejo sexual foi prematuramente estimulado, para os seus objetivos contrarrevolucionários. Eis os seus métodos:
• Descrever a sexualidade permissiva como normal e generalizada: «Toda a gente o faz»;
• Criar pressão no grupo de crianças da mesma idade;
• Destruir o sentido do pudor brincando com pénis de plástico, vaginas de peluche, preservativos, verbalizar processos sexuais em toda a turma, bem como papéis sexualmente orientados e exercícios físicos;
• Descrever pormenorizadamente o comportamento sexual, por palavras, imagens e filmes;
• Descrever as doenças sexualmente transmissíveis juntamente com a gravidez, como efeitos indesejados do sexo;
• Não mencionar o casamento e a família;
• Descrever estruturas familiares degeneradas como iguais;
• Educação paritária: treinar e utilizar adolescentes da mesma idade para a educação sexual.
Que ninguém se deixe enganar pela propaganda que se refere a esta educação sexual como moderna, esclarecida, «científica» e amiga dos jovens, e aos seus oponentes como resistentes fundamentalistas.’ (p. 171)

‘As elites políticas dos países ocidentais estão a promover a dissolução da identidade de género: o Presidente americano Barack Obama disparou o foguete da fase seguinte do LGBTIQ no dia seguinte ao da legalização do «casamento» entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal, a 26 de junho de 2015. E deu início à «batalha das casas de banho» ao ordenar às escolas que permitissem aos alunos transsexuais a utilização da casa de banho ou do vestiário que preferissem. Isto significava que um rapaz que alegasse ser uma rapariga podia meter-se no chuveiro com as raparigas, por decreto presidencial.’ (p. 173)

‘Antes e depois da transformação, a taxa de suicídio para as pessoas transgénero é oito vezes mais alta do que para a média da população – 41% versus 5%.’ (p. 175)

‘Como é possível que no período de apenas uns anos a destruição da própria identidade de género duma pessoa – com consequências graves para toda a vida – se tenha tornado uma moda entre os jovens, e seja apoiada pelo Governo e pelos meios de comunicação social? Como é possível que nem os tribunais nem as autoridades médicas tenham intervindo, e evitado os graves prejuízos para as crianças?
Num manual de 65 páginas redigido por uma das maires firmas de advogados do mundo, juntamente com a Fundação Thomson Reuters (comunicação social) e uma organização da juventude LGBTIQ, foram delineadas estratégias e táticas para alterar a consciência das massas, os direitos dos pais à educação dos filhos, e a legislação. O documento intitula-se Only Adults? Good Practises in Legal Gender Recognition of Youth.
Um grande obstáculo ao direito à livre escolha do género pelas crianças e pelos jovens são os direitos dos pais que recusem o seu consentimento. O manual explica táticas experimentadas para os grupos de lobbying evitarem o surgimento de resistência, e a forma de implementar leis antes que a opinião pública saiba sequer que elas existem:
Ajam mais depressa do que o Governo e publiquem propostas legislativas progressistas antes que o Governo o faça;
Escondam a vossa campanha atrás da cortina de fumo doutra campanha que tenha aceitação em geral. Por exemplo: direitos transgéneros para as crianças no âmbito da campanha a favor dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo;
Evitem relatórios na comunicação social; em vez disso, façam lobby junto dos políticos.
Se o debate entre os grupos de interesse em causa for substituído por estratégias de manipulação sofisticadas, e os políticos e os juízes estiverem dispostos a ler pela mesma cartinha, então a democracia será esvaziada de dentro para fora até que, finalmente, deixe de existir direito à diferença de opinião ou de atuação.’ (pp. 177-178)

‘«se não lhe pedem para pagar o produto, você é o produto.»’ (p. 208)

‘O divórcio despedaça as fundações.’ (p. 222)

‘Porque é que a nossa sociedade só considera a «felicidade» dos pais, e não os sofrimentos dos filhos?’ (p. 222)

‘Porque é que a sociedade não vê mal nenhum no facto de os pais esperarem que os seus filhos aguentem tudo isto, e exigirem que eles o aceitem sem se queixar? Viver doravante com apenas um progenitor; trocar de casa de duas em duas semanas; ser o pneu sobressalente numa família patchwork; ter de aceitar o novo parceiro da mãe ou a nova parceira do pais mesmo quando isso lhe rasga o coração…
A resposta é tão simples como dissimulada: para que o problema da culpa nunca seja levantado. Muitos estados norte-americanos eliminaram o princípio do divórcio culposo por volta de 1970. Na Alemanha, basta que um casal viva separado durante um ano; depois disso, um dos parceiros pode obter o divórcio mesmo contra a vontade do outro.’ (p. 223)

‘Se olharmos para o contexto da família nos grupos de risco, a imagem é ainda mais drástica. A grande maioria dessas crianças e desses adolescentes em sofrimento vem de famílias sem pai:
63% de suicídios juvenis;
76% de abandono escolar;
74% de gravidez na adolescência;
90% de fugas de casa e de crianças sem casa;
70% de adolescentes em estabelecimentos estatais;
85% de jovens a partilharem casa;
75% de jovens em centros de reabilitação do consumo de drogas;
88% de crianças e adolescentes com problemas de inserção.’ (p. 238)

‘A família é anterior ao Estado. O Estado depende da família, e não o contrário.’ (p. 248)

‘Qualquer família saudável é luz e sal no mundo. Qualquer jovem saudável é uma pedra viva para o futuro.’ (p. 251)

‘O mundo em que vivemos – aquele em que as crianças nascem – pulverizou e expôs a arbitrariedade das decisões humanas. O que devia estar unido foi separado: o corpo da alma, o homem da mulher, a sexualidade da fertilidade, a procriação da sexualidade, a crianças dos seus pais biológicos. Não terá chegado a altura de juntarmos novamente o que deve estar junto – corpo e alma, homem e mulher, sexualidade e fertilidade, pais e filhos?’ (p. 266)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

 

quarta-feira, junho 04, 2025

Os muitos trabalhos de Leão

  

Introdução

Esta reflexão não pretende ser um ponto de chegada. Será, antes, pela intenção com que a realizei, um ponto de partida para muitas outras reflexões que os leitores queiram prosseguir, tomando por referência, eventualmente, o que aqui faço.

Este texto nasce de uma constatação pessoal. Quando me foi enviada a notícia de que estava eleito um novo Papa e que já escolhera, para nome, Leão, logo comentei, quando me perguntaram ‘porquê Leão XIV?’, o que vim a verter para texto: ‘Um Papa da Doutrina Social da Igreja, na linha de Leão XIII’, ‘Papa atento ao mundo e aos problemas dos operários’.

As posteriores explicações de Leão XIV confirmaram esta imediata intuição, acrescentando-lhe a nota de que estará atento à nova ‘revolução em curso’, a revolução provocada pela inteligência artificial.

Quando, depois desta intuição que pouco tem de surpreendente para quem conhece um pouco da história mais recente da Doutrina Social da Igreja, me propus interrogar a História para saber mais sobre os outros Papas que tinham escolhido o nome de ‘Leão’, à constatação da condição de ‘Magno’ de Leão, que partilha o título com apenas um outro Papa, S. Gregório, o Magno (3 de setembro de 590 a 12 de março de 604), somei a verificação de que os pontificados de alguns dos anteriores 13 Leões tinham estado associados a momentos marcantes da história da Igreja com significativas repercussões, ainda hoje.

Propus-me, então, realizar esta breve procura que destaca alguns ‘sinais’ (positivos e, nesse caso, a prosseguir; ou, então, ‘sombrios’ e, nesse caso, a superar) que nos deixam os anteriores pontificados leoninos.

Para tal, segui quatro fontes: (a) Michael Walsh, Dicionário de Papas[1], (b) Manuel Santos Júnior, Os Pontífices[2] e (c) Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras[3], confirmando, por fim, os dados em (d) www.vatican.va. Refiro estes dados em primeiro lugar*.

No segundo conjunto de informações, a cidade indica o local de nascimento, as datas referem-se ao período do pontificado.

Após uma breve síntese dos dados mais objetivos, farei a reflexão ‘significativa’, sublinhando o que considero serem os mais reptos que, da época que a nossa analepse revisita, emergem para os nossos tempos.

 1- Breves informações

 

Três constatações iniciais:

- Dos 13 Papas que, até Leão XIV, tinham escolhido o nome de Leão, apenas um, Leão IX, não tem origem na península itálica.

- Cinco de entre os Papas de nome ‘Leão’ foram canonizados: Leão I, o Magno, Leão II, Leão III, Leão IV e Leão IX.

- Um dos Papas de nome Leão, Leão VIII, era leigo e teve de ser ordenado para poder assumir a missão de Papa.

 

S. Leão I Magno

[*45.º Papa] [Nasceu em Tuscia | Pontificado: 29 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461]

 (Roma [Manuel Júnior refere Volterra]| 440-461 | 19 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461 | 21 anos de pontificado) Segundo Manuel Júnior, tipifica o modelo de sumo pontífice, sendo tomado como exemplo, nos séculos posteriores.

 

S. Leão II

[*80.º Papa] [Nasceu na Sicília | Pontificado: janeiro de 681; 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683]

(Sicília | 682-683 | 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683 |11 meses de pontificado) Segundo Manuel Júnior, introduziu a água benta nos ritos litúrgicos.

 

S. Leão III

[*96.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 26/27 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816]

(Roma | 795-816 | 26 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816 [Segundo Morais Silva, morreu a 11 de junho de 816] | 21 anos de pontificado)

 

S. Leão IV

[*103.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 10 de maio de 847 a 17 de julho de 855]

(Roma | 847-855 | 10 de abril de 847 a 17 de julho de 855 | 8 anos de pontificado) – Segundo Manuel Júnior, foi o primeiro a escrever o ano do seu pontificado nos documentos; refere, ainda, que edificou a ‘cidade leonina’, uma fortificação em redor do Vaticano.

Leão V

[*118.º Papa] [Nasceu em Ardea, sul de Roma | Pontificado: Julho de 903 a setembro de 903]

(Ardea [Sul de Roma?] Agosto e Setembro de 903 [deposto por Cristóforo (b)/Cristóvão (a)] | morreu em 904 | Segundo Walsh, o seu pontificado durou cerca de um mês; Morais da Silva fala em três meses.)

Leão VI

[*123.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: Maio/junho de 928 a dezembro de 928 ou janeiro de 929]

(Roma | junho de 928 a janeiro de 929; Manuel Júnior só refere 928, o que parece confirmar-se com a informação recolhida de Morais da Silva que refere que morreu em dezembro de 928 | 7 meses de pontificado)

Leão VII

[*126.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: janeiro de 926 a 13 de julho de 939]

(Roma | 3 de janeiro de 936 a 13 de julho de 939 | 3 anos de pontificado)

 

 

Leão VIII

[*131.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 4/6 de dezembro de 963 a março de 965]

(Roma |4 de dezembro de 963 a fevereiro de 964 [deposto] | morreu a 1 de março de 965 / Manuel Júnior refere ‘963-965’ | cerca de dois meses de pontificado, entre João XII, que fora eleito com apenas 18 anos, e Bento V, aclamado pelo povo contra a vontade do imperador Otão I). Segundo Morais da Silva, era leigo, tendo recebido, no mesmo dia, os diversos graus da ordem.

 

S. Leão IX

[*152.º Papa] [Nasceu na Alsácia | Pontificado: 2/12 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054: Nome de nascimento: Brunone dos Condes de Egisheim]

(Egisheim [Alsácia] | 2 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054 | 5 anos de pontificado)

 

Leão X

[*217.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 11/19 de março de 1513 a 1 de dezembro de 1521: Nome de nascimento: Giovanni de' Medici]

(Florença | 11 de março de 1513 a 1 dezembro de 1521 | 8 anos de pontificado)

 

Leão XI

[*232.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 1/10 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605: Nome de nascimento: Alessandro de' Medici]

(Florença | 1 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605 | morreu por queda de um cavalo; 27 dias de pontificado)

 

Leão XII

[*252.º Papa] [Nasceu em Monticelli di Genga (Fabriano) | Pontificado: 28 de setembro / 5 de outubro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829: Nome de nascimento: Annibale della Genga]

(Castello della Genga [perto de Spoleto] | 28 de setembro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829 | cerca de 6 anos de pontificado)

 

Leão XIII

[*256.º Papa] [Nasceu em Carpineto Romano| Pontificado: 20 de fevereiro/3 de março de 1878 a 20 de julho de 1903: Nome de nascimento: Vincenzo Gioacchino Pecci]

(Carpineto Romano | 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903; Morais da Silva refere 20 de junho| 25 anos de pontificado)

 

2 - ‘Brilhos e trevas’ – os hercúleos trabalhos de ‘Leão’

(Uma nota prévia: evoco a figura mítica de Hércules, transfigurando o mito, que descreve, entre as doze missões (ou trabalhos) de Hércules, precisamente vencer um leão. Aqui, será Leão o protagonista e vencedor…)

2.1. – A luta contra os ‘Átilas’ e os desafios ecuménicos

A reflexão a que, agora, me proponho, nasceu da constatação de que, aos pontificados de Papas de nome Leão, a História permite-nos associar momentos particularmente significativos para os nossos tempos.

Entre estes, destaco, de imediato, três.

Para a relevância do primeiro, evoco a circunstância de vivermos tempos com marcas de beligerância e animosidade (latente e patente: o mundo vive situações de conflito armado em mais de 40 pontos do planeta). Mediaticamente, tem merecido particular destaque o conflito na Ucrânia, resultante de uma invasão de território soberano por um vizinho gigante. A situação pode ser iluminada pelo ocorrido no tempo do pontificado de Leão I, Magno, que, segundo a lenda, terá conseguido travar os avanços, em 452, sobre Roma do sanguinário Átila, ‘o flagelo de Deus’, à frente dos Hunos. Ontem, como hoje, talvez Leão possa fazer deste um legado vivo, travando as hordas que, de forma desumana, avassalam povos e gentes inocentes. Talvez hoje, como ontem, os novos ‘Átilas’ se deixem impressionar pela presença do Sumo Pontífice e recuem na sua decisão de tomar terras alheias.

Os dois seguintes merecem destaque pela atenção que venho dedicando a matérias de natureza ecuménica.

Não é de hoje a minha convicção de que, se nos momentos de rutura, na Igreja, tivesse havido serenidade e abertura disponível para a escuta, talvez o desfecho tivesse sido distinto do que a História veio a reservar-nos.

Entre esses momentos, merecem um regresso da memória os ocorridos em 1054 e 1517. No primeiro destes momentos, ocorre o cisma do Oriente, com que se consuma a separação entre as Igrejas de confissão Ortodoxa e a Igreja Católica. O encontro entre Miguel Cerulário e o Cardeal Humberto (mandatado pelo Papa Leão IX) revela-se agreste e consuma-se uma rutura que vinha, bem certo, a ser preparada desde, dizem os analistas, a queda de Roma, em 476 (e, com ela, do Império Romano do Ocidente). O Papa era, como dito, Leão IX que, porém, morre sem saber do desfecho desse encontro. Talvez, se tivesse recebido a informação, outra fosse a atuação. O seu temperamento conciliador faz crer que pudesse reverter o processo. Mas o que é certo e fica para a História é a consumação de uma rutura que, levantadas as excomunhões recíprocas, em 1966, continua, porém, a exigir caminho de encontro e diálogo. Talvez Leão XIV olhe para este momento da História e queira prosseguir, quem sabe se até uma unidade definitiva, o caminho ecuménico que, desde a Unitatis Redintegratio, tem foros de determinação oficial conciliar.

Um outro Leão, desta feita, já no século XVI, e numerado como décimo, pontifica quando se opera a reforma protestante, em outubro de 1517, sob a liderança de um monge agostinho: Martinho Lutero. Curiosamente, como Leão XIV que tão bem conhece o pensamento do grande Bispo de Hipona que Lutero radicaliza… Mas seria necessário ter-se consumado uma rutura quando, séculos volvidos, ambos (Católicos e Luteranos) reconhecemos que houve responsabilidades repartidas?

Vale a pena, a este propósito, recuperar o que afirma, no Concílio do Vaticano II, o decreto sobre o ecumenismo, ‘Unitatis Redintegratio’, n.º7: «Também das culpas contra a unidade, vale o testemunho de S. João: «Se dissermos que não temos pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós» (1 Jo. 1,10). Por isso, pedimos humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam.»

De Leão X a Leão XIV, quanto caminho já se percorreu, seja no reconhecimento católico do sacerdócio comum dos fiéis ou da centralidade da Palavra de Deus ou, ainda, da legitimidade de se celebrar na língua dos povos, assim como anterioridade e gratuitidade da salvação (nunca, porém, posta em causa, efetivamente, pela teologia católica), seja na constatação protestante da equivocidade na interpretação das indulgências como se estas tivessem sido um ato de simonia ou na verificação histórica da conversão operada no exercício da missão pontifícia! Mas o caminho ainda é longo e exigentemente difícil, mas não poderá parar-se, pois a divisão entre os irmãos cristãos constitui-se como contratestemunho, nestes tempos tão suscetíveis ao fechamento à experiência religiosa e, particularmente, à cristã. A unidade a que apela a Unitatis Redintegratio, que não é nem fusão, nem falso irenismo, nem, também, redutível a encontros marcados no calendário, deve ser um desiderato sempre presente e a Leão XIV poderá constituir-se como marca de um pontífice que, por provir da matriz agostiniana (tão cara ao protestantismo), mais facilmente se disporá a caminhar com os se irmanam com ele nessa ‘paternidade’ comum.

2.2. – Novos ‘monofisismos e monotelismos’

Mas a nossa leitura da história dos Papas de nome ‘Leão’ permite-nos fazer outras verificações e ‘iluminações’.

Regressemos a Leão Magno. Se, no século anterior, o século dos concílios de Niceia e Constantinopla, enfrentaram o desafio do arianismo e, com ele, da redução de Jesus Cristo à mera condição humana, inferior a Deus, (quando muito, adotado por Deus, mas não da Sua natureza, como afirmavam os adocionistas), o século V depara-se com um novo desafio, de sentido contrário. Eutiques, monge de Constantinopla, defende a redução da condição de Jesus Cristo a uma só natureza, a divina, que funde em si a natureza humana.

Leão Magno, perante este desafio, redige a ‘Epistola Dogmatica’ com que responde ao monofisismo de Eutiques, que, porém, mobiliza o imperador no Oriente, para que convoque um sínodo, em Éfeso, que vem a ser rejeitado como heterodoxo, sínodo em que foi recusada a carta do Papa. Leão Magno qualifica o ‘sínodo como um latrocínio’, criando-se um período de alguma tensão entre Roma e Constantinopla (sublinhe-se que ainda estamos longe de 1054, data do cisma do Oriente). O imperador morre, abruptamente, e a irmã, Pulquéria, sucede-lhe, regressando à fidelidade a Roma e sugere ao Papa a convocação de um Concílio que vem a concretizar-se em Calcedónia, em 451, onde fica sublinhada a dupla natureza (humana e divina) de Jesus Cristo, contra a tentação monofisita de o reduzir (neste caso) à natureza divina.

O desafio monofisita é revisitado e condenado, já no século VII, por ocasião do Papa Leão II, que sucede a S. Agatão, em cujo pontificado ocorre o III concílio de Constantinopla que condena o monotelismo. O monotelismo era uma espécie de tentativa de revisitação do que ‘sobrara’ do monofisismo: este fora condenado, mas os monotelitas defendiam que havendo duas naturezas em Jesus Cristo, só poderia haver uma vontade: a divina. Em Constantinopla, evidenciava-se que, a ser assim, a afirmação de que, na pessoa de Jesus Cristo, havia duas naturezas, ficava sem sustentação. Não passava de afirmação vazia. O monotelismo saía, assim, derrotado.

Ontem, como hoje, o pêndulo da leitura cristológica ora pende para a exacerbação humana (reduzindo-o a um ‘herói’ meramente humana), ora pende para a exacerbação divina (recusando, entre outras coisas, que tenha sofrido ou que, inclusive, tenha morrido, reduzindo a sua morte a uma aparência de falecimento. Leão XIV tem grandes desafios, nesta matéria. Um e outro movimento do pêndulo são observáveis, nestes tempos. Então, como hoje, a sedução de reduzir o que somos à nossa ‘alma’, ao nosso ‘pensamento’, ao ‘género que construímos na nossa mente, como se não nos pertencesse a condição corpórea’ são outros ‘monofisismos’ com que Leão terá de se defrontar…

2.3. Também as sombras falam da luz…

Ao pontificado de Leão III podemos ir buscar duas notas de reflexão muito oportunas[4]. É no tempo de Leão III que é coroado, em 25 de dezembro de 800, o imperador Carlos Magno. Muitos recordarão deste momento a marca que se prolongará, na história, com o sacro império romano-germânico: a de uma relação, nem sempre fácil e nem sempre equilibrada, entre o poder religioso e o poder político. Os relatos registam, porém, que Leão III conseguiu um equilíbrio de respeito e mútua compreensão que nem sempre se manteve, ao longo da história. E, da parte do imperador, se é certo que, em alguns momentos (como em 798, em que insta Leão III a convocar um concílio para condenar o adocionismo do bispo de Urgel) o imperador mostra querer exceder os seus limites e intrometer-se nos assuntos do âmbito eclesial, Leão III revela capacidade de assegurar a independência da Igreja, assim como a legitima separação do âmbito político. A cooperação e respeito recíprocos são desafios oportunos, nestes tempos de, por um lado, ‘laicismos’ e ‘indiferentismos’ conflituais ou, por outro, de promiscuidades que desrespeitam a legitimação separação desejada por Jesus, no seu ‘dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’. Sinais interessantes e revisitáveis, permanentemente.

Do mesmo modo, merece atenção a segunda marca a destacar neste pontificado. Apesar de insistentemente, ter sido persuadido a incluir no credo a referência ao Filioque (o Espirito procede do Pai e do Filho), Leão III resiste, não porque duvidasse da legitimidade em que tal ocorresse, mas para preservar a unidade com as igrejas orientais, para quem no credo se referia que ‘o Espírito Santo provém do Pai pelo Filho’. Esta referência será introduzida apenas dois séculos depois, já na iminência do cisma do Oriente, por Bento VIII. A prudência ‘ecuménica’ (avanta la lettre, bem certo; o cisma do oriente e a rutura com a Ortodoxia só ocorre em 1054) é uma marca merecedora de replicação…

Do pontificado de Leão IV, valerá a pena destacar um momento particularmente significativo. Perante o perigo de invasão de Roma pelos árabes, Leão IV manda edificar as muralhas a que se conferiu o nome que o homenageia - a cidade leonina -, cercada pelas muralhas concluídas em 852, e inauguradas numa cerimónia em que ‘o Papa, bispos, clero e monges percorrem, descalços, o circuito em procissão de penitência’[5]. Os tempos eram outros. A defesa do cristianismo exigia muralhas. Hoje, a relação é feita de encontros e não de conflitos. Aos então invasores, hoje deveremos considerar irmãos. E são-no, de facto. Irmãos pela fé do mesmo patriarca, o pai Abraão. Mas o caminho deverá fazer-se nos dois sentidos: de irmãos para irmãos. Nos tempos de Leão IV, na península Ibérica, recrudesceram as condições de vida para os cristãos. A conversão forçada fazia-se a troco da vida ou do decepar de mãos e pés. Ainda hoje, no mundo, continuam a repetir-se esses modelos.

Do lado cristão, a história está aprendida: a um irmão não se lhe corta a mão; não se lhe fere o coração. Estende-se-lhe um abraço! Poderão cair as muralhas com que se teve de defender, outrora, a fé?

Desafios para um Leão que já não se obrigue a proteger-se do medo e esconder-se sob a defesa de grossas muralhas.

De Leão V, VI, VII e VIII deveremos guardar uma memória e um desejo: o século em que pontificaram mostra-nos o que jamais deveremos repetir, na Igreja. Estes pontificados enquadram-se no chamado «século de ferro» da Igreja. Um período sombrio, marcado por lutas de poder. O caso de Leão V é particularmente ilustrativo deste retrato. Tem um pontificado curtíssimo, e, ainda que sendo retratado como um homem piedoso, vê-se envolvido em lutas de poder em que sucumbe aos desmandos de um tal ‘Cristóvão’ ou ‘Cristóforo’ (a grafia diverge, de acordo com as fontes), que pretende ocupar a cátedra de Pedro, sucumbindo este mesmo à ação de um outro pretendente. Tempos verdadeiramente escuros, a recordar, para que jamais os repitamos. Terá sido, em toda a história cristã, o século mais manchado pela decadência humana. Em cerca de um século (entre 891 e 1003), pontificaram mais de 30 Papas, muitos deles por períodos extremamente curtos (de meses ou escassos anos).

Mas, como sempre, na história, os períodos de sombras são, também, períodos em que emergem luzeiros. Este é o século em que se prepara, no pontificado de Leão V, a importante reforma de Cluny, que vem a ter um importante impulso no pontificado de Leão VII.

É de um destes Papas a situação rara de ser eleito um leigo que, para poder exercer a missão de Bispo de Roma, recebe as diversas ordens no mesmo dia, sendo a sua condição de Papa legítimo só verificável após a morte do seu antecessor, João XII. Um período de grande desordem que nos cabe manter vivo, na nossa mente, para que, como fez S. João Paulo II, possamos fazer a ‘purificação da memória’.

Revisitar este tempo deve ser motivo de regresso à consciência de existir um modo de ser Igreja que não queremos repetir: aquele em que ser ‘ministro’ não foi entendido como ‘serviço’, mas como poder que se pretende possuir e manter sem limites. O verdadeiro poder da Igreja está em servir à maneira do Seu Mestre. O século de ferro esqueceu-o! Temos, por isso, de o lembrar. E lembrá-lo será missão maior de um Papa Leão que, no sombrio século facilmente oxidável, pode encontrar, nos lampejos das reformas monásticas sinais maiores para um agir perante as sombras que, também, hoje, se abatem sobre a Igreja, na forma de ‘abusos’ ou de ‘excessos’… Então, como hoje, cabe refontalizar, regressar à Fonte, ao agir do Mestre humilde e servo, Aquele que primeiro desceu (kenoticamente) para nos elevar. Mas não há elevação sem o reconhecimento da fragilidade e fraqueza…

De Leão IX e X já abordámos os principais desafios, em passo anterior, sendo que, de Leão XI há a registar tratar-se de um pontificado de escassa duração, interrompido que foi por fatal acidente equestre do Pontífice.

Tomemos, por isso, em mãos, a análise de desafios que dimanam do pontificado de Leão XII. Eleito como ‘um Papa cuja caridade, vasta como o mundo, atraísse os mais afastados e tocasse os mais rebeldes e soubesse preservar, curar e conciliar’[6], revela-se muito atento aos desafios de então, seja na forma de indiferentismo religiosa, materialismo, racionalismo e ocultismo, desafios que, ontem como hoje, pedem atenção e criatividade de resposta. Para tal, reforçou a importância da formação do clero e denunciou a ação das sociedades secretas, o que lhe rendeu dissabores e oposição e contribui para a leitura pouco favorável com que é abordado o seu pontificado. A leitura atenta do seu pontificado deverá reter a precisão do diagnóstico, mas a inabilidade na resposta, exigindo-se, hoje, maior criatividade e originalidade, capaz de tornar eficaz a ação sem que a rudeza dos meios iniba a possibilidade do sucesso. Um desafio a que, em tempos de comunicação, se saiba ser eficaz não só nos objetivos, mas também nos meios a utilizar.

Para a leitura dos desafios decorrentes do Pontificado de Leão XIII, remetemos para o nosso artigo «o sinal de ‘Leão’», sem que tal iniba de acrescentar, porém, uma nota complementar. Leão XIII percebe que deve escolher, na relação com o mundo, um modo de atuar distinto do seu antecessor, Pio IX. Este escolhera a via da confrontação, de que o «Syllabus» é sinal particularmente ilustrativo. Leão XIII opta pela via do diálogo e da diplomacia, de que são expressivas as melhoras nas relações com diversas nações com quem estas se tinham degradado: Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, países da América Latina, etc[7].

É, também, com Leão XIII que ganha particular impulso o estudo da obra de S. Tomás (começa a organizar-se a edição crítica das suas obras, o que ainda não está terminado) e a criação de escolas e institutos para o seu estudo, e, em coerência, a adoção de medidas para uma positiva relação entre ciência e religião, merecendo-lhe atenção a reorganização do observatório astronómico do Vaticano.

É um Papa atento aos desafios efetivos do mundo. Posiciona-se, em relação ao laicismo, à crise decorrente da revolução industrial, à escravatura, que repudia, às respostas dadas perante os desafios sociais, demarcando-se de perspetivas coletivistas ou liberais. Os extremos não se lhe afiguram lugar de virtude…

É, não só, certeiro nos diagnósticos, mas eficaz nas respostas. Um Papa, cuja atenção aos desafios dos tempos se consubstancia em 86 encíclicas, 24 cartas apostólicas, 120 cartas, etc., evidenciando uma atitude diligente e preocupada que, só por si, se constitui como desafio ‘leonino’.

Os tempos, de ontem e de hoje, pedem atitude humilde como cordeiro, mas firme como leão…


[1] Michael Walsh, Dicionário de Papas, Lisboa, Edições 70, 2007.

[2] Manuel Evangelista dos Santos Júnior, Os Pontífices, São Paulo, Edições Loyola, 2001.

[3] Heitor Morais da Silva, S.J., História dos Papas: luzes e sombras, Braga, Editorial A.O., 1991.

[4] Cfr. Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, pp. 112-114.

[5] Ibidem, p. 120.

[6] Segundo Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, p. 313.

[7] Cfr., Ibidem, p. 325.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto: Por Edgar Beltrán, The Pillar, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=165193103
As imagens dos Papas são recolhidas de https://www.vatican.va/content/vatican/pt/holy-father.html

domingo, maio 11, 2025

Esperança ou utopia? Fundamentos para uma elpidologia de matriz cristã

 

Luís Manuel P. Silva e João José da S. P. Macedo

 

Utopia e esperança não coincidem, no seu significado, como conceitos, como ‘movimentos’ antropológicos. A utopia (termo cunhado por S. Tomás Moro, no seu célebre livro de 1516, cujo título vale a pena aqui reproduzir - Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia – e em que o protagonista é um português de nome Rafael Hitlodeu) é um movimento do sujeito em direção ao futuro. O sujeito, na utopia, gera o sonho de um outro futuro, de um outro mundo. O sujeito da utopia, cedo ou tarde, descobre, porém, que é o criador do sonho e, à ilusão, sente suceder a desilusão.

Na esperança, o movimento tem o sentido contrário: é o futuro que se antecipa no presente. O futuro habita o presente e, de forma proléptica (como recorda, finamente, o teólogo alemão W. Pannenberg), antecipa, no agora, o sentido último. Não é o sujeito que cria a esperança: é tomado por ela que o transcende.

Pannenberg vê, nos inúmeros pequenos ‘lampejos’ (o termo é meu…) de sentido – na linguagem, nas manifestações que suscitam espanto e admiração, nas inúmeras circunstâncias em que somos invadidos por expressões de simbolismo, etc. – o antecipar do sentido último. Entre esses assomos de sentido nos escombros da história, o ‘clarão’ maior é, bem certo, o acontecimento Crístico. No agora da História, antecipou-se, de forma máxima, o sentido último da história que continua a desenrolar-se, já não sem rumo, mas vislumbrando, nessa antecipação, que o seu caminhar não é um acaso, um errar, um peregrinar sem horizonte.

Esta síntese permite-nos constatar que ao sujeito imerso na lama do caminho histórico, é possível, nos pequenos fogachos de sentido, ir buscar presença desse sentido maior que neles se antecipa. Os sujeitos humanos podem, assim, à maneira dos veículos híbridos que, na extinção de uma fonte de energia, podem socorrer-se de uma outra, procurar outros e outros sinais, sabendo que em nenhum deles se esgota a fonte definitiva de que eles não são os criadores. Essa fonte transcende-os, supera-os, ainda que antecipando-se neles e deixando-se vislumbrar na sua efemeridade.

Sem, porém, a segurança que nos vem da experiência crística da superação da morte pela ressurreição de Jesus Cristo, estes lampejos de sentido nunca passariam de sinais utópicos, vulneráveis à leitura de que poderiam não ser mais do que a expressão de um poderoso desejo humano.

Essa ambiguidade é, aliás, observável no modo como os gregos - para quem ‘esperança’ se dizia com ‘elpís, elpídos’ (donde criamos a palavra ‘elpidologia’) – olhavam para a esperança. No mito de Pandora, pela visão de Hesíodo[1], esta abre o vaso onde estão todos os males, ficando, no seu fundo, apenas a ‘esperança’. Ora, a esperança estava no vaso dos males. Ela é entendida como um mal, talvez por, ao alimentar o desejo de um futuro diferente, nos poder fazer sonhar para além do que é possível concretizar.

Essa ambiguidade desvanece-se com o cristianismo. A esperança tem um fundamento supra-subjetivo, não como resultado de um desejo, mas como manifestação subjetiva (no sujeito), de uma realidade antecipada. Gera, por isso, confiança e supera o medo. Não será, aliás, fortuito que uma das mais frequentes afirmações neotestamentárias seja ‘não temais’ (perto de cem vezes).

E, onde se supera o medo, habita a liberdade, uma outra condição de que toda a tradição cristã dá eco e vinca como manifestação de se ser habitado pelo amanhã antecipado.

Onde há esperança, não há medo, há liberdade.

Uma autêntica elpidologia (de ‘esperança’) cria os fundamentos para uma sólida eleuterologia (de ‘liberdade’).



[1] Sigo a versão descrita por Pierre Grimal, em Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, p. 353.

 

sábado, maio 10, 2025

Habemus Papam | O sinal que 'Leão' nos dá


‘Habemus Papam’. A boa notícia ecoa como sinal do fim de uma provisória orfandade a que se sucede um jorrar de renovada esperança.

Ao anúncio da escolha concretizada, sucede o anúncio do nome escolhido e, com ele, como que um ‘programa’.

O inusitado nome de ‘Francisco’ deixara vislumbrar a ousadia e radical pobreza do ‘poverello’.

‘Leão’ traz um outro sinal.

E é esse que me proponho interpretar, sem a veleidade de pretender esgotar a sua significação e, muito menos, enclausurar nos estafados chavões de progresso ou tradição.

A Igreja será, sempre, lugar e comunidade em que confluem a memória do percorrido e a proléptica saudade do futuro. Por isso, querer encaixar um Papa no preconceito de ser ‘tradicionalista’ ou ‘progressista’ é tentação a que não cederei.

Antes, lanço-me ao caminho, sem medos nem receios: livre! Com a liberdade que nos vem do Mestre que, diversíssimas vezes, nos lembrou, principalmente, após a sua ressurreição, o seu ‘não temais’. Porque, como tantas vezes recordava um dos bispos de Aveiro, ‘não morreremos nem que nos matem’ (D. António Baltasar Marcelino).

Superados medos e preconceitos, olhemos para o que nos diz Leão XIV ao apresentar-se com este nome.

Regressemos, pela mão de Leão, ao seu homónimo antecessor, Leão XIII. Teve um dos mais longos pontificados (o quarto mais longo, após o do próprio S. Pedro, o de Pio IX e João Paulo II). Ultrapassou os 25 anos de missão pontifícia.

Mas a sua marca fundamental não advém da sua longevidade, antes de duas marcas que gostaria de destacar, neste contexto: o seu olhar à causa operária e a sua atenção às soluções que para ela eram apontadas.

Não pode olhar-se para Leão XIII apenas porque trouxe a causa social para o interior da reflexão cristã. Isso já não seria pouco, ainda que ela nunca tivesse estado ausente, faltando-lhe, porém, a sistematização que a Rerum Novarum (15 de maio de 1891) permitiu. Estar atento às ‘coisas novas’ era importante…

Mas não apenas…

Isso faria da Doutrina Social da Igreja um mero laboratório de diagnósticos.

Leão XIII diagnosticou com olhar fino, viu a dor dos operários, acorreu à sua inquietação, mas ousou interrogar as soluções que, então, eram apresentadas, com um equilíbrio que matizou, definitivamente, a doutrina social da Igreja.

Lembremos que o século XIX fervilhava…

Ao mesmo tempo que se sentia a efervescência resultante das oportunidades abertas pela revolução industrial, que parecia colocar a ciência ao serviço da eficiência produtiva, as respostas aos problemas que tal realidade fazia emergia pareciam um ‘combate de boxe’ sem conciliação possível senão pelo ‘knock out’ de uma das partes.

Entre a visão liberal, em que assentava uma abordagem ‘selvagem’ (termo utilizado duas vezes na encíclica), e a via socialista parecia ser impossível qualquer conciliação.

Leão XIII vislumbra uma via ética, moral, de fortes implicações práticas, em que a legitimidade e importância da posse de propriedade privada (como condição de liberdade) não pode concretizar-se sem o respeito pelo princípio que virá a designar-se como o do ‘destino universal dos bens’. O que nos pertence deve ser possuído com um sentido comum e com forte sentido de justiça. Somos administradores de bens de que não somos os donos absolutos, mas recetores de dons concedidos.

 

Com efeito, o século XIX vira emergirem os movimentos influenciados pelo socialismo utópico, pelos movimentos anárquicos e pelas correntes de influência marxista e engeliana. E percebera a tentação da abordagem liberal.

Perante estas duas linhas, a Igreja, pela palavra e pena de Leão XIII, reconhecia e assumia a importância da atenção que lhe deram esses movimentos (como podiam ficar sem resposta cristã os esmagados operários?), mas divergia das soluções que, entretanto, tinham emergido, por recusarem, uns, o direito à propriedade privada ou assentarem numa visão conflitual das relações (a tentação da visão da relações de sociedade como assentes numa permanente luta de classes continua, hoje, disseminada por todos os âmbitos da realidade social, carecendo de nova leitura e novas propostas…) e, outros, uma adequada compreensão da liberdade como condição que deve encaminhar-se para a busca da verdade…

Leão XIII afirmava-se, assim, como um fino analista da sociedade e das suas mais candentes dificuldades (colocando-se do lado dos mais frágeis e ‘impoderosos’), mas recusava que a solução passasse pelas vias que os movimentos emergentes propunham.

Sendo que havia, ainda, que ter em conta que, sob as soluções de pendor socialista (assim eram designadas sem as distinções que posteriormente, vieram a fazer-se entre a linha mais moderada e a de teor marxista), deslizava um lençol freático de ateísmo que imanentizava o ser humano, reduzindo-o à dialética histórica. Leão XIII percebia que as soluções humanas sem o horizonte divino tendiam a diluir a humanidade numa vertigem sem rumo, potenciando a sua anulação em nome do coletivo anónimo e despersonalizante que mata a esperança. A história veio a dar-lhe razão.

Retemos, por isso, de Leão XIII, a preocupação com a causa dos mais frágeis da sociedade, a atenção fina às soluções que, seja pela hiperbolização da liberdade, seja pela fusão do indivíduo no coletivo, esquecem o ser humano integralmente considerado, se têm revelado insuficientes e incapazes e, por fim, a afirmação de que a humanidade não nasce de si, mas encaminha-se para a eternidade, horizonte sem o qual se aniquila em lutas fratricidas…

Ontem, como hoje, de Leão (de XIII a XIV) espera-se um alargado abraço aos que a sociedade esquece, não se satisfazendo com as vozes que, em nome de sedutoras ‘melodias’ que inebriam, apontam soluções provisórias como se pudessem ser definitivas, mas apontando rumos que se hão de configurar como respostas sempre capazes de acolher o todo e não se ficando pela parte. Porque é isso ser católico: não se ficar pela parte, mas ter uma visão que olha o todo, o universal, o integral… O Homem todo… Os Homens todos… A realidade toda! O horizonte todo!

sexta-feira, maio 09, 2025

O aborto não é, de modo algum, um direito: as três razões! …para além de todas as outras!

 

As razões pelas quais se deixou de procurar razões…

Numa sociedade não relativista, os valores ético-morais são anteriores à decisão do sujeito; não é ele que os cria. O sujeito reconhece-os e molda a sua ação à anterioridade deles.

Aplicando…

Um sujeito que se depara com a existência de outro sujeito humano reconhece este segundo sujeito, mesmo (ou principalmente) quando este está em situação de particular fragilidade e dependência.

E, mesmo quando o sujeito já está ‘meio morto’, a sua atitude não é a de garantir a sua morte, mas a de cuidar dele. O sujeito humano ainda não tomado pelo espírito relativista reconhece a humanidade do sujeito frágil e cuida dele. Não procura razões (e não razões) para legitimar a sua eliminação, e, muito menos, esvazia a humanidade nele presente. O ser humano é, num espírito não relativista, um humano e participa da humanidade. As relações estabelecidas com ele são humanas.

Uma sociedade, porém, que se deixou tomar por um relativismo teórico, primeiro (ouvindo as vozes de teóricos que tudo foram fazendo para relativizar o significado da dignidade humana), e que, de seguida, permitiu que se instalasse um relativismo prático, contava, ainda, com o baluarte do Direito.

Os legisladores permaneceram, durante muito tempo, atentos e, por isso, imunes às vozes que pretendiam levar, na voragem relativista, esse mesmo Direito. Sempre o entenderam como a busca do justo…

Os tempos foram, no entanto, deixando que também o Direito fosse tomado por este fenómeno de diluição dos valores, ao ponto de, como recorda Zigmunt Bauman[1], os tornar ‘líquidos’, liquefazendo os laços mais sólidos e conduzindo à ‘erosão do direito’.

Antes da erosão do direito, um filho de humanos era, desde a primeira hora, um humano como eles.

A erosão do direito repercutiu-se num modus cogitandi que passou a buscar motivos para legitimar o que se afigurava, obviamente, como ilegitimável.

O sujeito a eliminar (no caso do aborto, o filho dos humanos) foi envolvido em cápsulas de insensibilização, de modo a garantir que sobre ele se pudesse operar o ato que a consciência identificava com ilegítimo. Para tal, urgia ‘desumanizá-lo’.

De ‘coisa’ a ‘mero conjunto de células’, passando pela legitimação circunstancial por motivo de condições de vida desfavoráveis da mulher (circunstâncias ainda não existentes, no momento da redação da lei, que é prévia ao que pretende legitimar…), o sujeito a eliminar é, primeiramente, reduzido da sua condição de humano, para que, de seguida, possa passar-se à aceitação do seu ‘deitar abaixo’.

 

As três razões pelas quais o aborto não pode ser um direito da mulher: o filho, o pai e a mãe

Há, porém, três motivos que são insofismáveis, nesta equação: o filho, o pai e a mãe…

Aquele ser que habita numa ‘morada’ da qual espera proteção, é, biologicamente, distinto da mulher que tem todo o poder de o proteger. É insofismável que é filho de humanos, tendo, biologicamente, origem numa célula sexual masculina fundida com uma célula sexual feminina. Tem, por isso, um pai e uma mãe.

Estas são as três razões pelas quais jamais o aborto, que é a eliminação, por um dos três, deste ser em que se cruzam três existências (a dele que é o eixo com as duas outras: a do pai e a da mãe), poderia ser um direito. No aborto, morre o filho (primeira vítima) e, com ele, morre o pai e morre a mãe. São muitas vítimas em nome de um suposto direito!

Como poderia ser o direito de um (‘direito’ é o reconhecimento de que algo é devido: à luz de Ulpiano, ser justo é atribuir a alguém algo que lhe é devido), quando outros dois ficam em causa? Dois, não; três! É curioso que, nesta equação, o putativo direito da mulher rivaliza com o direito da mãe. A mulher que elimina o filho deixa de ser mãe, no próprio momento em que concretiza a eliminação daquele que faz dela mãe. A mulher exerceria um ‘direito’ contra o qual a própria condição de mãe se oporia. A mãe só existe porque há filho. Do mesmo modo, ao eliminar o filho, a mulher também eliminaria o pai, cuja existência (de pai; não do homem que é pai) depende da existência do filho.

Os relativistas esqueceram-se (é curioso que a palavra grega para ‘verdade’ – ‘Alêtheia’ - signifique, à letra, ‘esquecimento’, ‘não lembrar’) de que o filho é, por definição, um conceito relacional. No filho, entrelaçam-se as três vidas que o aborto quer cindir.

Deveria ser clara a constatação aqui feita, mas a erosão do Direito é já tão profunda que é evidente que, qualquer que seja o argumento e por mais insofismável que ele seja, o legislador que se sente com o poder irá exercê-lo, não em nome da justiça, mas do poder que possui.

A erosão do direito chegou ao ponto da própria corrosão.

Porque não hão de todos os sujeitos reivindicar para si serem a medida de todas as coisas se o pode ser quem mais dever tinha de proteger quem de si depende, exclusivamente? Para que serve, afinal, o Direito se não for para nos proteger da força que nos pode destruir, definitivamente?



[1] Autor de ‘Amor líquido’, ‘Cegueira moral’, ‘A vida fragmentada’, etc., editados, em Portugal, pela Relógio d’água

O insubstituível papel do cristianismo: superando o outro ‘erro’ de Descartes

 

Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia

E se os desafios de hoje puderem ser iluminados pelos dos primeiros tempos do Cristianismo?

A história e os tempos são únicos e irrepetíveis. A permanência, porém, das inquietações humanas, permite revisitar, amiudadamente, as soluções que, vez após vez, se vão revelando insuficientes, como é próprio da condição humana na história. Por este motivo, é necessário manter o olhar atento e vivo, desperto para todas as soluções que se apresentem como ‘fim da história’ e o definitivo resolver dos elementos de tensão próprios da condição humana.

Em tudo o que somos, há uma dualidade. Dualidade responsável pelas situações de tensão próprias do existir. Colocam-nos em condição de ‘crise’ constante.

Perante a dualidade não pode resultar, porém, a cedência à tentação do dualismo que tem a pretensão de resolver esta tensão, reduzindo o humano a uma só das suas dimensões.

Recordava, com sábia leitura, Viktor Frankl, o criador da logoterapia e pensador luminoso, infelizmente, ainda pouco lido entre nós (mas merecedor de uma tese de doutoramento por parte do eminente bispo de Bragança-Miranda, D. Nuno Almeida), cujas conclusões foram fermentadas na dura experiência de quatro campos de concentração por que passou, que a tentação é, muitas vezes, a de reduzir o humano ao ‘não mais do que’: ‘O niilismo de ontem ensinava o «nada». O reducionismo de hoje prega o «não é mais do que» […] há diferenças dimensionais que o reducionismo ignora e minimiza. (Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido, p. 57.) ’[1]

Esta tentação teve um particular impulso, ao longo da era de que ainda não teremos, definitivamente, saído (ainda que seja possível sentir o emergir do paradigma ‘pós-moderno’, que se caracteriza pela volatilização da razão e a prevalência da sensibilidade e do afeto), designada como ‘modernidade’. Entre os contributos mais marcantes para este impulso está, certamente, o de Descartes.

Para um leitor menos avisado, poderá parecer que estou a ir demasiado longe, ao invocar o pensamento de um autor dos já longínquos séculos XVI e XVII… Valerá a pena, porém, lembrar que, de algum modo, hoje, os nossos legisladores e, afinal, todos nós, são (somos), de algum modo, discípulos de Descartes.

E sê-lo-emos por um de dois motivos: pelo seu dualismo ou pelo seu individualismo solipsista.

António Damásio, no seu célebre e oportuno ‘erro de Descartes’[2], identifica no dualismo cartesiano o seu erro fundamental. E concordo que essa é parte de um diagnóstico a reter, ainda que a valorização da dimensão emocional, que Damásio parece sustentar como a escolha alternativa, não me mereça igual subscrição. Mas vale a pena reter a ideia de que o dualismo é uma das suas marcas e que ainda hoje a notamos, entre nós.

Ousaria, porém, acrescentar um outro erro.

Descartes adota um modus cogitandi (um modo de pensar) que ainda hoje temos, entre nós. Descartes anda em busca de ‘ideias claras e distintas’, puras, isoladas da história. Essa sua busca fá-lo procurar uma primeiríssima certeza que ele encontra e sintetiza no seu lapidar ‘cogito’: ‘penso, logo existo’. A primeira certeza do sujeito cartesiano é a de que pensa e, por isso, existe. O outro, os outros, são, assim, acidentais e acessórios para a definição da identidade do sujeito cartesiano.

O sujeito cartesiano (e, com ele, o que pensam os discípulos de Descartes) é autossuficiente, pensa-se prescindindo dos demais.

Regressar às fontes cristãs: a certeza de que o gnosticismo não vence…

Paremos, aqui, momentaneamente, a nossa reflexão para introduzir um elemento da história recente que cruzaremos com o percurso reflexivo feito até aqui.

Em 2022, o Papa Francisco proclamou Santo Ireneu de Lyon como Doutor da Igreja, com o título de ‘doctor unitatis’ (‘doutor da Unidade’). Francisco sabe quanto significa esta escolha. Uma das principais batalhas de Santo Ireneu, em finais do século II, tem muito em comum com os traços da atualidade. Na sua obra mais conhecida, ‘Adversus Haereses’, Ireneu enfrenta os desafios do gnosticismo, poderoso modo de pensar que foi, qual hidra, emergindo na história de um e outro modo. Então, como hoje, o humano ficava reduzido ao anímico e o corpo parecia ser prescindível, não fazia parte da identidade… Veja-se como pensam a ‘teoria de género’ ou os diversos transumanismos que se propõem reduzir o humano à sua ‘alma’, ao seu ‘pensamento’. O corpo, nesta visão, nada é… Agora, como outrora! E, agora, como outrora, o corpo, reduzido à condição de não essencial, fica ‘imune’ à abordagem ética: tudo pode fazer-se sobre ele, pois não estará em causa o humano.

Perante a sedução gnóstica, Ireneu foi contundente: ‘A glória de Deus é o homem vivente’ (Santo Ireneu de Lyon, Adversus Haereses, 20,7[3], evidenciando que é a unidade corpo-alma que reflete a bondade da criação e não, apenas, uma parte das duas. Aliás, toda a escatologia cristã evidencia e sustenta-se neste princípio ‘encarnação’, sem o qual não temos o homem todo, ‘alvo’ da salvação com que Deus brinda a sua criação.

Os tempos [em] que vivemos pedem, por isso, que correspondamos ao desafio conciliar, ainda não totalmente cumprido, de ‘[…] um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã’ (Perfectae Caritatis, 2)

- ‘E porquê?’ - Poderemos perguntar.

O Pe. José Miguel Cardoso, na sua muito aclamada tese de doutoramento, defendida em Roma e em boa hora editada em Portugal, responde a esta interrogação, sabendo-se que o assunto em análise, ali, são, precisamente, as matérias de escatologia: ‘Por que razão o período patrístico é crucial para toda a reflexão teológica (e escatológica)? Porque é o período que nos oferece o “alfabeto teológico”, cujas […] formulações iniciais determinarão todo o azimute teológico’[4]

Pede-se, por isso, que nos ‘alfabetizemos’, vez após vez, no ‘idioma cristão’ para que não percamos o norte, o azimute, quando o mundo parece desnorteado.

Mas – dizem alguns – com que legitimidade pode o cristianismo falar, quando tantos erros cometeram os cristãos, ao longo da sua história?

Nicolái Berdiáiev responde, com a ironia que perpassa toda a sua obra e que faz, tantas vezes, lembrar Chesterton: ‘Como pode condenar-se o cristianismo em função da indignidade dos cristãos quando ao mesmo tempo se repreendem os mesmos cristãos por faltarem à dignidade do cristianismo?’[5]

Talvez quem mais necessite de ouvir estas palavras de Berdiáiev sejam os próprios cristãos, tantas vezes titubeantes e inseguros sobre a qualidade do tesouro que lhes foi confiado…

Regressemos, mais seguros, ao ponto da reflexão sobre ‘Cartesius’.

Dizíamos que Descartes deixou uma longa sombra de dualismo, já sobejamente identificada e recordada por António Damásio. Mas identificámos um outro erro que se lhe pode apontar, não menor no grau de impacto sobre as convicções e axiomas em que assenta a modernidade que temos construído: o sujeito cartesiano parece ter nascido sem pai nem mãe. Fundando um solipsismo teórico, mas com profundo impacto sistémico, Descartes convenceu-nos de que a primeira certeza de que nos damos conta é da nossa existência, contrariando a nossa própria natureza de seres umbilicais. No centro do nosso abdómen, está a marca que Descartes quis ofuscar: o sinal inequívoco de que não nascemos de nós. O umbigo é a marca insofismável de que dependemos de um outro, na fase mais decisiva do nosso existir. Por isso, antes da certeza de que existimos, está a certeza de que existem os outros. Sem eles, nunca a potencial consciência que nos habita como possibilidade poderia tornar-se atual e efetiva. São os humanos que nos antecedem (os inúmeros ‘tus’ de quem herdamos a vida, a cultura, a língua) que criam as condições para que o ‘eu’ possa consciencializar-se de si.

Dessa condição de intrínseca indigência e relacionalidade do humano nos falam todos os mistérios cristãos e, entre eles, o da própria Trindade que diz que a natureza de Deus é Amor, isto é, o amor com que Deus se expressa não é um acidente, mas a expressão de Si Mesmo. E, sendo o humano criado à imagem e semelhança de Deus, é enquanto amor que o ser humano se realiza. Sendo o egoísmo o contrário do amor!... O pecado de Adão (o outro nome de toda a humanidade) que outra coisa é senão o solipsismo e a ilusão de se bastar a si mesmo?

Do cristianismo espera-se, por isso, que continue a ser, ainda que em contracorrente com a ilusão da solidão espelhada em si mesmo, a bússola do azimute certo: o de que só chegamos à meta, juntos. Não nos geramos a nós mesmos, não podemos pensar uma autonomia que dispensa os outros; verdadeira autonomia não é anomia e falta de referências, como se o sujeito isolado gerasse as leis e as normas, e o mundo começasse, então. A liberdade em que queremos sustentar as nossas sociedades é uma ilusão: a do solipsista que se concebe como absoluto e sem dependências. Isso é algo, mas não será, certamente, humano. Sem os outros, não haverá o eu, porque somos ‘pessoas’, seres racionais e relacionais, conceito gerado pelo cristianismo; uma dívida nunca saldada pelo mundo que não seria o mesmo se tal conceito não o tivesse criado esta religião que faz da relação o seu traço definidor. Somos enquanto somos com os outros. Morremo-nos na solidão e na ilusão de nos bastarmos.

[1] Viktor Frankl, A voz que grita por um sentido, Alfragide, Lua de papel, 2021, p. 57.

[2] António Damásio, O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano, Mem Martins, Publicações Europa-América, 199818, pp. 253ss.

[3]  Sigo a tradução feita pelo saudoso biblista, Pe. Doutor Franclim Pacheco, em edição publicada em https://diocese-aveiro.pt/cultura/

[4] José Miguel Cardoso, Para uma escatologia sapiencial: A herança escatológica de Karl Rahner e Johann Baptist Metz, Braga, Livraria DM, 2023, p. 97.

[5] Nicolái Berdiáiev, Contra a indignidade dos cristãos: Por um cristianismo de criação e liberdade, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2019, p. 134.

O perdão diviniza (e humaniza) um mundo geométrico

 

Artigo originalmente publicado na Agência Ecclesia

A ideia de um universo (e, com ele, de toda a realidade) geométrico, totalmente previsível, é muito sedutora. Demonstra-o a (quase) omnipresença da visão fatalista da existência nas diversas religiões, mitologias e inclusive nas leituras filosóficas (Nietzsche recupera a ideia da circularidade do tempo como evocação da ideia do eterno retorno… Tudo regressa, vez após vez, sem que o humano nada consiga fazer para o evitar!).

E, curiosamente, num tempo em que o ‘mar’ cristão reflui, as areias sobre as quais este se espraiava deixam ver a emergência regressiva das visões geométricas.

Veja-se, como ilustração disto, a cedência à ideia de ‘Karma’ ou de ‘destino’ que, paulatinamente, vai tomando conta dos espíritos, sem que, criticamente, se constatem os custos da sua aceitação.

É que, de facto, a ideia é sedutora. Torna tudo previsível e diminui o assombro do inesperado… O inesperado causa ansiedade, com a qual temos dificuldade em conviver. Queremos ter na mão as certezas e não ter de nos inquietar em procurar ajustar o rumo…

Mas poderia o ser humano sobreviver à geometricidade do mundo?

O salmista do belíssimo salmo 130 enuncia a resposta: ‘Se tiveres em conta os nossos pecados, Senhor, quem poderá resistir?’ (cito a partir da tradução da Difusora Bíblica, edição online: https://www.paroquias.org/biblia/index.php?c=Sl+130)

A ideia fatalista, geométrica, presente nas religiões orientais e na mentalidade grega, contrasta com o que emerge na visão judaico-cristã.

Em tempos em que se discutem os custos da diminuição da marca cristã na sociedade, os sinais ‘geometristas’ (crio o neologismo para evocar esta ideia da geometricidade da existência) estão diante de nós e evidenciam o real impacto para além dos custos tantas vezes já denunciados: na perda da sensibilidade ética para com os mais frágeis, na perda da ‘semântica’ cristã na iconografia e nas múltiplas expressões artísticas, na fragilização dos liames sociais, etc. Uma tal geometricidade faz do erro condição para a errância. Aquele que erra, sem a possibilidade do perdão, torna-se um errante[1].

Ao judeo-cristianismo se deve, com efeito, a emergência, na humanidade, da ideia de perdão, ideia que quebra a linearidade das consequências em relação aos atos realizados, essa inevitabilidade de se tornar errante porque se errou.

A ideia ‘jubilar’ de perdoar os erros passados, reinaugurando um novo tempo, densifica-se com a afirmação da condição paterna de Deus eterno. A ideia, que, no Antigo testamento, aparecia 11 vezes, é afirmada, no mais curto Novo Testamento, 107 vezes[2]Abba (‘paizinho’, como se se tratasse do balbuciar do nome por uma criança: ‘Ba-Ba’!) é o nome predileto de referência de Jesus Cristo a Deus.

Ilustram, de forma particularmente plástica, duas imagens que recolho da arquitetura medieval.

No tímpano da Catedral de Autun, há um detalhe particularmente belo. Retrata-se, ali, o juízo final, com toda a carga dramática que o medievo lhe associou. Mas um detalhe desconcerta. O Arcanjo Miguel aparece a ‘falsificar’ a balança, em favor do homem pecador[3]. A falsificação não é, aqui, evocação da ideia de uma ‘jogada’ pouco honesta, mas expressão da misericórdia de Deus que, por intermédio dos seus ‘mensageiros’ (aqueles que levam a Sua ‘mensagem’), põe em ação a sua ‘temperança’ e compassiva atitude de acolhimento da obra da Sua criação, marcada pela debilidade e fragilidade.

Também da idade média recolho a segunda imagem. Encontrei-a, pela primeira vez, na capa de um luminoso livro de Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas[4]. Retrata-se, nesta imagem, o que é ‘descrito’ no capitel de uma coluna da Basílica de Santa Maria Madalena, em Vezelay, igreja edificada entre meados do século XI e inícios do século XII (foi dedicada em 1104). No lado esquerdo do capitel, há um homem enforcado que vemos ser transportado, aos ombros, no lado direito. Percebemos a densidade deste momento quando reconhecemos, no enforcado, o traidor Judas Iscariotes e, no que o leva aos ombros, o próprio Jesus. A vítima voluntária transporta, voluntariamente, o seu verdugo… Cúmulo do perdão. Cúmulo da quebra da geometricidade. Numa lógica fatalista, nada mais sobraria a Judas do que a perda eterna… (É essa a tentação e sedução maior… Queremos que a justiça prevaleça, sem complacência…)

Mas Judas podíamos ser nós.

Oh, quantas histórias o evidenciam, ao longo dos tempos!

Inquieta dar conta de como os nazis cavalgaram o monte de escombros de vítimas com a complacência de ‘iguais a nós’…

Conta Radcliffe, num dos seus sempre muito narrativos livros… ‘O norte-americano Jim Campbell foi copiloto num avião que bombardeou o Japão, durante a II Guerra Mundial. Depois da Guerra, tornou-se dominicano, mas era sempre atormentado pela sua participação na destruição de pessoas inocentes. E decidiu, por isso, ir ao Japão pedir perdão. Encontrou-se com Oshida, um dominicano japonês, numa conferência nos Estados Unidos e, por isso, foi vê-lo no Ashram de Oshida, nas encostas do Monte Fuji. Disse-lhe: ‘Padre Oshida, bombardeei o vosso povo durante a guerra. Vim pedir o vosso perdão.’ E Oshida replicou: ‘E eu, nessa altura fazia parte da força antiaérea japonesa. Tentei deitar-te abaixo e foi pena ter falhado!’ Comenta Brian Pierce OP: ‘Ambos se riram e se abraçaram!’ O modo como o padre Oshida, um santo homem, mostrara a Jim que ambos tinham participado no mesmo mal, foi muito libertador para Jim.’[5]

Desta condição nos fala, densamente, o evangelho de Lucas, ajustadamente designado como o ‘evangelho da misericórdia’. Outro mundo emergiu das páginas do evangelista médico e outro mais cinzento haveria se dele não tivéssemos recebido parábolas como a do filho pródigo (do Pai de Misericórdia) ou do bom samaritano, ou a do amigo inoportuno ou, ainda, a do juiz e da viúva, ou do homem rico e do pobre Lázaro (cujo nome é um epónimo de todos os desamparados: ‘Deus ajuda’)…

O perdão abre um novo mundo onde a circularidade do tempo ou a inevitabilidade do destino afundaria no abismo…

Deus, ao mostrar-se, pelo Cristianismo (filho do Judaísmo), como Amor e que a Criação reflete, ainda que como centelhas na noite, a marca do Criador, assegura-nos que o perdão não é um apêndice, mas a condição própria do mundo, de toda a realidade: a surpresa habita-a como possibilidade omnipresente do novo quando o envelhecido parece decrépito e sem esperança.

Perdoar faz-nos novos, faz-nos habitar, de um modo assombroso e assombrado, o tempo para nos assomarmos ao umbral do que será sempre novo.

Um Deus trinitário, que é dinamismo permanente de encontro e partida, de recomeçar sempre novo, é disto que fala e é a grande novidade cristã.

Se o mundo se esquecesse, quem o continuaria a dizer, contrariando os ecos no vazio do universo geométrico? Quem diria, em sussurro, ao ouvido dos isolados humanos que, um dia, erraram, que errar (ser errante) não tem de ser o seu destino?…

[1] Ideia que apresentamos aqui (https://teologicus.blogspot.com/2023/12/o-tempo-e-advento_4.html) e encontramos belamente desenvolvida na Nota Pastoral da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé para a Semana Nacional da Educação Cristã 2024: «Construtores do Futuro como Peregrinos de Esperança

[2] Cfr. Timothy Radcliffe, Ir à Igreja porquê? O drama da Eucaristia, Prior Velho, Paulinas, 2010, p. 223.

[3] Cfr. Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 86.

[4] Karl-Josef Kuschel, Talvez escute Deus alguns poetas, A literatura enquanto desafio à fé cristã, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018.

[5] Timothy Radcliffe, Imersos na vida de Deus. Viver o batismo e a confirmação, Prior Velho, Paulinas, 2013, p. 150.


 

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