terça-feira, setembro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 16 | Mistério na curva da foz

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



- Deixa-me intrigada que, com dois olhos, um nariz e uma boca, se façam tantos rostos.
- E as relações geométricas entre eles, a cor da pele, as simetrias e assimetrias e outras variáveis? – Atalhou, prontamente, J., desvalorizando a surpresa da irmã. E continuava, como em noite de insónia, a acompanhar cada chegada e cada partida. Aquela tarde de verão nutria de acelerados passageiros a pequena estação em que desembocava a avenida central da cidade. Diante de J. e M., sentados no único banco exterior, uma pequena rotunda homenageava os bombeiros, preenchida de ervas sem flores. A um canto, enrolado sobre si, um homem, cujo odor fétido se sentia ao longe. As barbas cobriam-lhe o peito. Sentia-se o calor que exalava daquela pele. Mas o olhar parecia ausente. Só barbas e o odor… Aquele odor!...
- Bem sei. Mas não deixo de me admirar. Como um ligeiro desvio na maçã do rosto pode fazer de alguém um ‘quase-bonito’ ou, de um outro, uma autêntica Helena de Troia! E quanto se transmite num ligeiro franzir de sobrolho ou no esgar de dor! – Concluiu M., sem alongar a conversa.
O silêncio preencheu os espaços. E o tempo…
Subitamente, o olhar de ambos prendeu-se ao de duas mulheres. Cada um a uma mulher distinta.
Ambas belas. Ambas sofridas, no olhar.
Uma, de olhar negro, sulcos cavados nas redondezas dos olhos, olhava para diante, lenta, sem fixar nada.
- Como diz o povo, parece uma Madalena ainda não reencontrada! – Assim rompeu M. aquele demorado silêncio.
A outra mulher olhava para o mundo com a verdura dos campos. Profunda. Longa. Mas igualmente demorada.
- Credo! Olha-me estes olhos! – J. acotovelou a irmã, que, de imediato, recolheu o braço, em ligeiro movimento de dor. Deslocou o seu olhar da mulher de olhos negros para a que, agora, lhe apontava o irmão.
- Mas tanto sofrimento naquela beleza! – Rematou.
O caminhar daquelas duas mulheres cruzou-se frente ao banco onde estavam os dois irmãos, sem que se tenham sabido contemporâneas. Seguiram o seu rumo, distantes uma da outra, a uma distância que só no olhar daqueles irmãos se anulou.
Não mais se viram.
Mas não mais deixaram de ser vistas, no olhar de J. e M.
… e daquele triste e fétido homem, sentado no canto da estação que se ergueu de um salto, com uma energia que surpreendeu os irmãos. Sentou-se, junto deles.
- Admiram-se de tantos rostos se fazerem com tão pouco? Ah, quantos rostos se fazem com o mesmo rosto! Quantos rostos já tive eu próprio! E que rosto vedes, agora?
A pergunta não parecia mais do que retórica, mas M. e J. ficaram, por momentos, incomodados, como que surpreendidos pela urgência de lhe dar uma resposta.
- Bem… Quer mesmo saber? – Ousou dizer M.
O homem não parecia, porém, interessado em ouvir. Fechou os olhos, como quem busca, nas pálpebras, as letras de um discurso, e avançou.
- Conheço estas duas mulheres de as ver e de lhes reconhecer a história pelo olhar. Ambas mulheres amadas, desejadas e a quem um dia o amor tornou mães.
J. e M. estavam inquietos. Aquela conversa parecia emergir do nada. Se o homem vinha falar de olhares, era porque tinha estado atento à conversa.
Recordaram, rapidamente, todo o conteúdo dos seus diálogos. A ver se alguma coisa os poderia comprometer.
E aquele odor! Incomodava e quase tornava impossível acompanhar, com concentração, as palavras. Pareciam flutuar sobre lixo.
Entredentes, M. tartamudeou:
- Mano, mano, este homem será de confiança? Sabes quem é?
- Lembro-me de o ver sair da casa que dizes ser dos megapixéis, a casa de azulejos pequenos de cores diversas que parece ser uma foto de má qualidade quando ampliada.
- Bem me lembro. Mas mais parece um sem-abrigo…
O homem deteve o seu discurso, esbugalhou os olhos e fixou-os nos irmãos.
Um frio gélido, indiferente ao calor daquela tarde, percorreu cada osso e músculo dos seus corpos. Decidiram-se, num assentimento tácito, não mais o interromper até que considerasse chegada a hora de recolocar o selo sobre o pergaminho do seu discurso.
O homem voltou a fechar os olhos.
- Aqueles negros olhos são de uma mãe que do seu ventre viu nascer um amado filho. Viu-o crescer. Amou-o e viu-o ser amado até que, numa tarde em que boa notícia seria não lhe darem notícias, numa das curvas da foz a morte abrupta por acidente o levou dos seus braços.
- Regressa, todos os dias, mais de vinte anos volvidos, ao sítio de onde o levaram de si para sempre. Ali deposita flores e mantém viva uma luz. Todos os dias. Todos os dias.
O homem deteve-se, por um momento. Assoou-se, comovido, e prosseguiu.
- Por aqui passa, dia após dia. De comboio, desce até à cidade dos canais para daí seguir até às dunas do mar, onde recolhe as flores com que leva beleza ao lugar onde tudo, para ela, se fez feio. Assim, sempre. E para sempre.
As lágrimas desciam, lentas, pelo rosto de M. e J.
O silêncio fez-se demora.
Até que M., limpando o rosto, segredou ao ouvido do homem, cúmplice na dor.
- E a mulher de olhos verdes? De que dores fala aquele olhar?
O homem acomodou-se, no banco, como que finalmente recebido, pousou os cotovelos nos joelhos, repousando o queixo sobre as palmas das mãos. Fixou o olhar na rotunda onde não havia flores. Só plantas, mas nenhuma flor.
- Olhai para o que tendes diante dos vossos olhos. O que vedes?
A pergunta gerou estranheza em J. e M. O homem parecia querer desviar a conversa. Olharam um para o outro…
- Não mais do que uma rotunda e um singelo e justo monumento de homenagem aos bombeiros. – Ousou dizer J.
- Como os rostos falam, também pode ser muito sonoro o silêncio do mundo em que nos fazemos gente. Olhai com mais atenção.
M. arregalou os olhos de espanto, quando lhe pareceu perceber o que aquele homem pretendia mostrar-lhes.
- Vejo plantas que deveriam estar floridas, mas que não o estão.
- Achais que é porque não podem florir? Digo-vos que não. Não florescem porque não as deixam florir. A mulher dos olhos verdes pôde, um dia, florescer. Foi, também ela, amada, até que, num dia que rapidamente se fez noite, uma flor começou a florescer no seu ventre. ‘Desmancha-te!’ – disseram-lhe. ‘Desmancha-te!’. Ainda resistiu, uns dias, mas a malfadada lei que diziam protegê-la por ser mulher, desprotegeu-a de ser mãe. Não conseguiu resistir e foi ao desmancho, como lhe diziam. Nesse dia, a mulher que ela era continuou a sê-lo, mas a mãe que ela fora morreu no filho que as vozes lhe pediam que desmanchasse. Nesse dia, essa mãe morreu com o seu filho. Sonha, todas as noites, nas noites da sua solidão, com o filho que não deixou nascer. Vê-lhe um rosto, sente-lhe o cheiro, ouve-o chorar. Ele assalta-lhe os sonhos como pesadelo e é neste canteiro que ela vem desmanchar a sua perda. Nenhuma flor aqui voltará a brotar enquanto ela não renascer no seu coração.
M. sentiu-se revoltada… Revoltada… Queria gritar contra as vozes – sempre essas vozes, sem rosto nem nome; vozes sem olhar: o vazio! - e contra os que lhe tinham assegurado que, pela força das leis, a estavam a proteger. Mas a frieza das leis deixara-a abandonada à sua solidão. Nunca se perdoara ter impedido aquele filho de ver a luz. Deixara-o, para sempre, na noite, a escuridão da inexistência, o abandono da morte.
M. desejava poder deter-se diante do profundo daquele olhar vencido. Erguê-la da derrota de um dia para, restaurada, a fazer assomar ao olhar de outras mulheres que, como ela, se enrolaram de medo, aturdidas pelas vozes que repetiam, maviosamente: «Vai ao desmancho»! «Livra-te disso!»
Esta revolta cansou-a. Deixou-a perturbada, umbigada no mais profundo de si. Ela mesma, M., sentia que podia ter sido aquele filho rejeitado, recusado, ‘desmanchado’. Tomava conta do seu espírito uma certeza: - Se de um só pode depender-se assim, na fragilidade dos nossos primeiros dias, todos, então, sobrevivemos da nossa própria morte arbitrariamente evitada e vivemos vidas de um luto definitivo.
M. soluçava, à medida que estes pensamentos lhe preenchiam a alma.
Recomposta, exteriorizou uma pergunta com que cruzou o seu olhar com o daquele homem de sujas barbas até ao peito:
- Se sabe tudo isso, porque não diz a estas duas mães que há uma dor comum às duas?
- A dor da perda une-as, mas afasta-as um abismo. Uma era a mãe que queria ser e o fado impediu de continuar a sê-lo; outra foi a mãe que já o sendo desistiu de continuar a sê-lo. Antes de se encontrarem uma com a outra, terão de se encontrar cada uma consigo mesma.
M. adivinhara, nas suas errâncias, esta resposta.
O homem desenrolado de si concluiu:
Mas, - Digo-vos! – há um segredo, neste canteiro. Entre as plantas, cresce uma biloba – era-lhe difícil o nome de ‘ginkgo biloba’! -. Mesmo que sempre a cortem, ela voltará a brotar, vezes sem conta. Até ao dia em que dará fruto, ainda que sem flores.
- Sempre te disse, J., que a graça é o humor do Amor que Deus é. Nos abismos mais estéreis da existência, há sempre lugar para a esperança.
O homem ergueu-se do banco. Deu três passos e voltou-se. Olhou, fixamente, primeiro, o olhar de M., e, depois, o de J. e rematou:
- Muitas são as curvas com que se chega a uma foz. Mas esse não é, ainda, o lugar do fim. Todo o rio leva ao mar.
E subiu, trôpego, pela avenida, deitando um ligeiro olhar sobre o canteiro reverdejante.
M. e J. acompanharam-no, silenciosos, até que o perderam de vista.
Fecharam os olhos.
No ar, um suave perfume de flores!
…e um subtil odor a maresia…


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

sábado, setembro 20, 2025

'Os Sete Dias da Criação' |5| Luís M. P. Silva 'Ainda o primeiro dia: «No princípio…»'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Uma grande finalidade assiste à escrita destas linhas: contribuir para o reconhecimento de que a relação entre ciência e religião (em especial, a religião cristã) não tem de se fazer de conflito. E pretendo cumpri-la, concretizando dois objetivos: superar os preconceitos com que é lida a religião (evidenciando a pertinência da sua leitura e da sua visão sobre o mundo e o Homem) e contrariando a convicção de que, ao ser-se cientista, tem, necessariamente, de se assumir um qualquer ateísmo de princípio.

Para a concretização desta finalidade, com os seus dois objetivos associados, já demos alguns passos que nos permitiram evidenciar que a permanência de alguns equívocos continuam a perturbar a sã relação entre estes dois modos de aceder ao conhecimento que não são disjuntivos, mas complementares, porque no sujeito humano muitas são as moradas das perguntas. Pretender esgotar, numa só dessas moradas, todo o habitar humano é empobrecedor.

Socorro-me, para guiar esse caminho de reflexão e construção de pontes, do dinamismo que o próprio relato bíblico, estruturado em torno da metáfora dos sete dias, nos proporciona.

Iniciámos, no momento anterior da nossa reflexão, essa condição de viandante que segue o ritmo dos dias. Depois de nos prepararmos, começámos. Acolhemos a luz…

Mas há um aspeto que nos obriga a determo-nos, por mais algum tempo, nesse primeiro dia.

O texto bíblico começa com uma palavra que não temos como traduzir senão pela locução ‘no princípio’. Em hebraico, a palavra é ‘bereshit’ que, no seu uso adverbial, deve ser traduzido, precisamente, por ‘no princípio’[1].

Curiosamente, o evangelho de S. João, o mais elaborado dos quatro evangelhos e, também, o mais tardio, começa com a expressão correspondente, em grego, ‘en arkhê’: ‘no princípio’.

A frequência da utilização da expressão, por tantas vezes a ouvirmos na liturgia, faz-nos, eventualmente, perder a frescura da sua originalidade.

Mas tenha-se em conta que o que, para nós, é óbvio (houve um princípio) não o foi ao longo dos tempos.

Valerá a pena, aliás, recordar que a questão 46 da Suma Teológica[2] de S. Tomás, no século XIII, incide, entre outras coisas, precisamente, sobre a possibilidade de o mundo ter existido desde sempre (e, a tê-lo acontecido, como articular isso com o texto bíblico que falava de ‘princípio’), se o ter princípio era artigo de fé e como deveria, perante estas dúvidas, acreditar-se que Deus tinha criado o céu e a terra.

Genialmente, o Aquinate (cognome de S. Tomás por ser de Aquino) não recusa que possa admitir-se a possibilidade de o mundo ser eterno, por tal ser indemonstrável, mas que sempre se teria de falar de um ‘princípio’ considerado metafisicamente, isto é, o mundo tem origem na vontade de Deus que, se o pretendesse, faria com que o mundo deixasse de o ser, concluindo-se daqui que ‘criação’ é um conceito que não nos fala do modo ‘como’ o mundo é feito, mas sim do facto de o mundo ser originado, do nada, pela Vontade de Deus, sua Origem sem origem. ‘Criação’ diz, assim, que a criatura não é o Criador, mas d’Ele depende, de modo absoluto, em termos ontológicos.

Sem nos alongarmos nesta reflexão, detenhamo-nos na constatação de que a condição de ‘ter princípio’ é, consequentemente, não óbvia.

Aliás, a história mais recente demonstra-o, cabalmente.

É conhecido de poucos que a formulação da hipótese de o universo ter começado com uma grande explosão se deve a um presbítero, professor da Universidade de Lovaina: Georges Lemaître. À sua hipótese deu o nome de ‘átomo primitivo’. (É a Fred Hoyle, que se lhe opunha, a expressão ‘big bang’, utilizada para ironizar e apequenar.).

A história da receção desta hipótese evidencia como a ideia de um princípio não era óbvia, nem para os maiores físicos. O próprio e genial Albert Einstein recusa, num primeiro momento, a possibilidade e altera as suas fórmulas para que ‘estabilizem’ a imagem de universo que delas se recolhia.

Do mesmo modo, quando a possibilidade de o universo poder estar em expansão e ter tido uma origem, encaminhando-se, por isso, também, para um fim, parecia absurda aos líderes soviéticos que, quando a hipótese foi tendo acolhimento junto dos cientistas russos, se encarregaram de os perseguir e impedir de difundirem tais teorias que, naturalmente, poriam em causa a ideia da eternidade da matéria, necessária à leitura dialética do pensamento marxista-leninista. (Esta história é detalhadamente contada no muito oportuno livro de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies, Deus, a ciência, as provas: alvorada de uma revolução. Uma obra de leitura altamente recomendável…).

Não deixa de merecer atenção, por isto que acabo de referir, constatar que, de facto, a relação entre ciência e religião tem sido marcada por inúmeros equívocos e mal-entendidos.

Veja-se como é referido, hoje em dia, que os supostos opositores da hipótese de o universo ter tido um início (com um big bang) sejam os crentes (os cristãos, para ser mais preciso). Curiosamente, porém, tendo a hipótese sido proposta, primeiramente, por um padre (que, inclusive, cedo encontrou apoio da parte do Papa Pio XII que, após diálogo sincero, percebeu que deveria deixar à ciência que fizesse o seu caminho, sem cair na tentação do concordismo), e constatando-se que a hipótese se afigurava de fácil instrumentalização para fins concordistas (então, a ciência confirma o que a Bíblia diz…), o que aconteceu foi o contrário. Quem se opôs à hipótese de um início para o universo foram, precisamente, os descrentes.

Pretendo, então, recuperar a frase de Werner Keller (‘A Bíblia tinha razão’), e sustentar um qualquer requentado concordismo?

Não o pretendo e não o defendo.

Os terrenos da ciência e da religião são distintos, mas, na minha perspetiva, complementares.

O sujeito humano é muito rico, nas suas interrogações e não se basta em procurar respostas para uma compreensão de ‘como’ se chegou ao que hoje temos. Quer, também, compreender ‘porquê?’, ‘para quê?’, ‘com que sentido?’… Há, afinal, inteligência, amor, rumo, na realidade de que emergimos, nós, seres capazes de pensar, amar, dirigir a nossa vida para um determinado fim?

Constatar que ‘no princípio’ nos fala de algo que a ciência hoje tem como certo, mas que ao judeo-cristianismo primeiramente se deve não é de somenos importância.

Diz-nos que muito se pode esperar da fé e que a ciência não tem, afinal, que temê-la, pois quem faz a ciência são indivíduos com dúvidas, interrogações, desejo de amar e ser amado, e não cérebros repousados sobre ombros. Ao todo do ser humano falam ciência e religião. Muito pouco ficaria se apenas uma das dimensões restasse…

De outras constatações nos falarão próximas etapas e dias do nosso rumo.


Sugestões bibliográficas:

Colin Stuart, Tempo: 10 coisas que deve saber, Lisboa, Vogais, 2024.

  1. Tomás de Aquino, Suma de Teología, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.

Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies, Deus, a ciência, as provas: alvorada de uma revolução, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 20242.

Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Paulus, 20146.


[1] Cfr. Luis Alonso Schökel, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Paulus, 20146, p. 601.

[2] Sigo, nas minhas análises, a edição da BAC referida nas sugestões bibliográfica.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Juergen Striewski por Pixabay

 

 

domingo, setembro 07, 2025

Sabes, leitor... | 21 | Marca de água do livro de Teresa de Melo Ribeiro, José Ribeiro e Castro e Isilda Pegado (coordenação), 'My body, my life: no debate sobre o aborto'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O(s) autor(es) e a obra
Teresa de Melo Ribeiro, José Ribeiro e Castro e Isilda Pegado (coordenação), My body, my life: no debate sobre o aborto, Cascais, Sopa de letras, 2025.

Quando somos tomados por uma vertigem, tendemos a fechar os olhos. Quando, porém, ela é de natureza moral ou ética, é recomendável mantê-los abertos.

É de uma vertigem avassaladora que fala este livro e abrir os olhos é o que se espera de quem o ler.

Reúnem-se, aqui, vinte e sete artigos que, como referem os seus coordenadores, foram, originalmente, publicados em órgãos de comunicação social. Vinte e sete artigos: tantos quantos os anos que decorreram desde o primeiro referendo ao aborto. Os autores, quinze no total, correspondem, também, a uma significativa diversidade de profissões e funções, ainda que com maior prevalência de juristas ou profissionais do âmbito do direito (professores, um juiz, advogados, etc.). Contam-se, ainda, entre os autores, uma bióloga, três professores de outras áreas, uma escritora, um estudante de direito, o secretário-geral de uma juventude partidária, um padre e um cardeal, identificando-se alguns dos autores como sendo dirigentes de organizações diversas (Comissão Nacional ‘Justiça e Paz’, Corpo Nacional de Escutas, Comissão Diocesana da Cultura, Federação Portuguesa pela Vida).

Constata-se o papel do jornal Observador enquanto fonte privilegiada da grande maioria dos textos - vinte e dois -, sendo os restantes cinco provindos de outras quatro fontes: um blogue (‘nós os poucos’), um site (da Comissão Diocesana da Cultura|Aveiro), a Rádio Renascença e o Correio da Manhã.

O prefácio, da autoria do ex-primeiro ministro, Pedro Passos Coelho, sublinha a diversidade e a liberdade com que se construiu este livro, afirmando a originalidade da sua posição em relação à da maioria dos autores, mas evidenciando, também, o respeito por que não se encerre um assunto que, como o mesmo afirma, se escude numa atitude de ‘fraqueza [que] é ter medo de confrontar as ideias ou pretender calar ou diminuir aqueles de quem discordamos e esconder-se atrás de qualquer relativismo moral para não tomar posição’. (prefácio, p. 19)

Este livro é francamente oportuno porque uma vertigem de relativismo enevoa as leituras sobre este assunto que, como recordam os coordenadores na nota introdutória, ‘voltou a estar na ordem do dia, política e mediática’ (p. 8), seja pela discussão, em contexto de campanha eleitoral de inícios de 2024, seja pela resolução do Parlamento europeu, de 11 de abril de 2024, seja, ainda, por se terem apresentado à Assembleia da República iniciativas legislativas que pretendiam alargar os prazos da despenalização, ou, acrescentamos, pela aprovação, em França, de decisão que propõe que se reconheça, ali, o aborto como um direito a assegurar a nível correspondente ao da proteção constitucional.

Para grandes vertigens, exige-se um verdadeiro arregalar de olhos. E é isso que se propõe esta coletânea de 27 esclarecedores artigos, que começa com um argumento de peso: a capa, que fala por si. Aliás, talvez seja de dizer de outro modo: quem nela aparece fala por si. E com que eloquência!

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

A ideia de vertigem é especialmente plástica e esclarecedora. Num contexto vertiginoso, é natural protegermo-nos e tentarmos, a todo o custo, minorar os custos do impacto da causa que a provoca. É, por isso, que a sedução de fechar os olhos é particularmente eficaz. Fechados os olhos, como que se desvanece a realidade e tranquilizamos.

Mas quando os deixamos abertos, a realidade obriga a acolher o que ela mesma nos evidencia.

Sabia bem disto um reconhecido e reputado pensador e político italiano quando, na década de 80 (mais propriamente em 1981), se discutia, em Itália, a legalização do aborto. Norberto Bobbio, que se definia como ‘socialista e laico’, afirmou, com escândalo, ao Corriere della Sera, que lhe causava estupefação que os «laicos entregassem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».

Destaco desta afirmação de Bobbio, três aspetos.

Em primeiro lugar, o reconhecimento de que o aborto não é matéria de natureza religiosa ou que deva ser lida à luz exclusiva dos argumentos desta natureza. Bem certo que, à luz do que o mesmo Bobbio reconhecia, os crentes ficam muito gratos que se lhes reconheça essa sensibilidade, mas, queira-se ou não, a leitura ética sobre o aborto é de um plano distinto. (Bem certo que os crentes têm um ‘plus’ de razões [a vida é, em perspetiva crente, sempre dom de Deus], mas as verdadeiras são prévias a esse ‘plus’).

E as verdadeiras concernem ao segundo aspeto que destaco. Bobbio era muito claro no seu repúdio da posição confortável e cómoda dos laicos: abortar é ‘matar’, não é outra coisa. Quem o diz não sou eu: é Bobbio! Ao denunciar, no contexto da discussão italiana que aceitar o aborto, através de leis, era ceder perante a violação do princípio de que não se deve matar, Bobbio não deixava margem para dúvidas.

Por fim, a posição de Bobbio permanece, como voz póstuma, como desafio a que se regresse, vezes sem conta, ao que está, verdadeiramente, em causa.

É esse regresso ‘ao ponto’ que se propõe este livro, que surpreenderá até os leitores mais convencidos de se ter, já, esgotado toda a argumentação. A atitude decisiva deverá ser, no final, a de se deixar despertar não se permitindo aquietar-se ou acomodar-se.

Resisto a enunciar os múltiplos argumentos que, curiosamente, não se repetem (a originalidade de cada autor evidencia-se na singularidade de cada posicionamento), sublinhando quatro linhas que desenvolvo, a partir dos argumentos reunidos neste ‘livro despertador’.

Em primeiro lugar, valerá a pena constatar-se como os argumentos de quem pretende a legalização do aborto são ‘fluídos’ e ‘gelatinosos’, indo do esvaziamento da natureza do filho ainda não nascido à sustentação (incoerente, pois teria de defender o aborto até ao fim da gravidez) de que se trata de uma parte do corpo da mulher e, por isso, parte dos seus direitos de autodeterminação (também este um argumento de difícil sustentação absoluta, pois permitiria uma total disponibilidade de si que colidiria, por exemplo, com a legitimidade de o Estado punir o não uso do cinto de segurança, a título de exemplo…). Recorre-se aos argumentos que melhor servem em cada momento sem a preocupação com a coerência, evidenciando as marcas de um ‘pensamento débil’ (Gianni Vatimo) e de um sociedade que liquidifica tudo (Zigmunt Bauman).

Em segundo lugar, valerá a pena desenvolver a ideia tantas vezes repetida de que a legalização do aborto procurou equilibrar direitos em conflito. Para além de (como é descrito por um dos autores) não se perceber como é que uma vida inocente pode ser tomada como ‘agressora’, o suposto equilíbrio é, de facto, inexistente, pois, quando há equilíbrio, nenhum dos direitos põe o outro em causa. Ora, pode sempre supor-se a possibilidade de todas as mulheres portuguesas decidirem exercer o ‘direito’ que a lei lhes facultou. Nenhum humano nasceria, pois o eufemismo ‘interrupção’ não tem respaldo na realidade e não é, de modo algum, possível começar uma gravidez às dez semanas. Todas começam à primeira semana…

Por fim, também numa lógica de desenvolvimento progressivo de argumentos, tomemos em análise a questão dos ‘direitos’ em jogo. Já vimos que os ‘direitos’ da mãe e do filho foram desequilibrados, sumindo os de um deles, em absoluto, durante o tempo da suspensão total, ao longo das primeiras dez semanas. Vejamos, agora, o impacto desta ‘suspensão’ em outro elemento da equação: o pai.

Sabendo que não há filhos sem dois gâmetas (células sexuais), um feminino (o óvulo) e um masculino (o espermatozoide), para haver um filho humano é preciso existir, sempre, uma mulher e um homem que, a partir do momento da fecundação, mudam de condição, passando a ser uma mãe e um pai. Logo, aquele novo ser, que, antes da fecundação, não existir, passa a ser o fruto de dois. Formalmente, juridicamente, aquele ato (a fecundação) tem dois sujeitos igualmente responsáveis. Porém, o legislador decidiu que, durante dez semanas, os direitos sobre aquele filho, que foi gerado pelos dois, recairiam, de forma absoluta, sobre um só dos dois sujeitos, a mãe. A pergunta que se impõe é esta: sendo o pai destituído de direitos, de forma absoluta (não pode decidir nada sobre aquele filho), como pode ver serem-lhe exigidos deveres, dez semanas depois, quando nenhum direito teve na tomada de decisão? Se o legislador fosse coerente, teria de concluir que a lei é absolutamente injusta, pois só arbitrariamente confere deveres a quem não teve quaisquer direitos de decisão sobre um ‘bem’ de que vai ter de se responsabilizar. Defendo, por isso, que todos os pais, depois de 2007, podem recusar assumir responsabilidades sobre os filhos? Obviamente que não. Obviamente! A conclusão tem de ser outra. Não pode ser direito de alguém a decisão solitária sobre o fim de um filho que, afinal, foi gerado por dois. O carácter óbvio desta constatação deveria levar todos os legisladores a concluir a injusta (os clássicos chamavam-lhe a ‘iniquidade’…) da lei.

Por fim, um último argumento que desenvolvo…

Tendo o Estado abandonado, por determinação sua, à arbitrariedade de um só, a decisão sobre vivermos ou não, será legítimo todos os nascidos depois de 2007 concluírem que são ‘sobreviventes’ da lei 16/2007 e, eventualmente, exigirem do Estado ressarcimento pela desproteção.

Contrariamente ao que pretendem defender os que sustentam que o aborto pudesse ter enquadramento no âmbito dos ‘direitos humanos’, os tribunais dos direitos humanos deveriam, sim, concluir que em causa estão direitos humanos quando se desprotege a vida de alguém, entregando-a à arbitrariedade de um só que, afinal, deveria protegê-lo, ficando, pelo contrário, com o poder absoluto de o abandonar à morte.

Não só deverá, por isso, concluir-se que não pode, nunca, existir o reconhecimento do direito ao aborto quando, pelo contrário, o que deveria estar a fazer-se era reconhecer o direito a nascer, pois, se, como sustenta a declaração universal dos direitos humanos, estes são ‘inalienáveis’, então, ninguém pode aliená-los, nem sequer o próprio, pelo que, quando eles estão em causa, temos o dever de os proteger, a começar em nós mesmos. A vida que vivemos não é um bem de que temos posse, mas um bem que devemos cuidar, pois não nos damos a humanidade: somos dela participantes e cabe-nos, por isso, cuidar dela. A humanidade de um só que é ofendida está a ofender a humanidade de todos.

Como leitor, parti do livro e desenrolei novas linhas argumentativas. Caberá a cada leitor pegar no novelo que é este livro e puxar por novos fios. Por discretos que sejam, como os fios de uma teia, quem sabe que olhos poderão abrir-se porque nunca se tinha pensado nisto?! É que, afinal, se tudo são opiniões, como tanto se diz, há umas de que resulta vida e tanta história por contar, enquanto outras acabam em morte. Serão, por isso, todas as opiniões igualmente válidas?

Na mesma página que o autor (citações)

‘De acordo com os dados constantes do “Relatório de Análise dos Registos da Interrupção da Gravidez de 2023”, último relatório publicado pela Direcção-Geral da Saúde, foram registadas, em 2023, em Portugal, 17.124 interrupções da gravidez por todos os motivos, verificando-se um aumento de cerca de 3% relativamente a 2022 e representando o aborto por opção da mulher nas primeiras 10 semanas da gravide 96,7% dos abortos registados.’

(Nota introdutória dos coordenadores, p. 7)

‘[…] fraqueza é ter medo de confrontar as ideias ou pretender calar ou diminuir aqueles de quem discordamos e esconder-se atrás de qualquer relativismo moral para não tomar posição’.

(Pedro Passos Coelho, prefácio, p. 19)

‘Temos de dar um passo atrás. Se continuamos a tomar decisões sobre a vida e a morte sem recorrer a critérios materiais que respeitem a dignidade de cada ser humano, temos de estar prontos para as consequências que daí advêm.

Hoje és meu filho, mas ontem não eras. E amanhã? – pergunta o filho.’

(Ana Brito Goes, p. 22)

‘O resultado de considerarmos o assunto arrumado e da falta de reflexão pessoal e comunitária sobre o aborto foi a quebra do vínculo que considerávamos indestrutível entre a gravidez e a vida humana em gestação.

[…]

Ser filho passa a ser uma condição que se adquire se a mulher desejar ser mãe. Se a mulher quer ser mãe, aquele embrião passa a ser considerado filho. Se uma mulher não quer ser mãe, o que existi já não é um filho, é uma gravidez que deve ser interrompida.

[…]

Os outros, nessas ocasiões, são todos chamados: cabe a cada um decidir se estende a mão ou se vira as costas, porque o assunto está arrumado.’

(Ana Brito Goes, p. 24)

‘Vejamos: o aborto é, e sempre será, a morte de um ser humano inocente e indefeso por vontade de outro ser humano. Qualquer legislação que valide a sua realização condena uma parte da comunidade humana à eliminação.

[…]

Para terminar, o aborto não é nem nunca será uma questão pacífica nem pacificada, a não ser que nenhuma mulher aborte. Porque, por muito que nos queiram enganar dizendo que é um bem, mesmo um direito, isso não transforma uma mentira numa verdade. Como disse Albert Camus, “Designar mal as coisas é acrescentar infelicidade ao mundo.” Não há nenhum mérito e muito menos algum futuro na promoção da infelicidade.’

(Isabel Carmo Pedro, pp. 26.27)

‘Violência contra as mulheres e Interrupção Voluntária da Gravidez.

Arrisco uma nova correlação.

Será que não estamos perante uma nova forma de violência contra as mulheres, uma violência camuflada de empoderamento, que revela o que, já não os homens, mas uma ideologia, pensa verdadeiramente sobre as mulheres?’

(Ana Brito Goes, pp. 30.31)

‘Para o mundo contemporâneo é mais fácil ignorar a questão da vida por nascer. É mais fácil dizer que a mulher tem na barriga uma coisa, que depois, num passo de magia, se transforma num bebé. Porque reconhecer que ali está um bebé significa enfrentar o horror dos milhões de vidas ceifadas anualmente pelo aborto. Reconhecer a dignidade infinita da vida por nascer significa dar-se conta da monstruosidade que a cultura do aborto introduziu no nosso tempo. E por isso é mais fácil esquecer o bebé, e reduzir o aborto a uma mera questão da intimidade da mulher.

Respeito o drama das mulheres que não desejam ter os seus filhos, das mulheres que procuram o aborto ilegal, das mulheres que estão em situações de dificuldade e estão grávidas. E defendo uma sociedade que apoia e acolha essas mulheres, assim como todas as mulheres grávidas. Mas a solução para um drama, a solução para uma injustiça não passa por ignorar que o aborto elimina uma vida. O drama do aborto é, antes de mais, o drama de uma vida que existe e que merece ser defendida.’

(José Maria Duque, pp. 34.35)

‘Na sua decisão [que considerou não haver inconstitucionalidade no referendo ao aborto], a maioria do Tribunal Constitucional cometeu dois erros graves. O primeiro erro foi o de dar por descontado que o alegado conflito de direitos fundamentais entre a mãe e o filho é um conflito entre duas ofensas de direitos. Ora, tal não é verdade. A liberdade da mulher-mãe de organizar a sua vida não é ofendida com o seu sacrifício total e definitivo pela vida do filho; ela continua a poder organizar a sua vida ainda que em circunstâncias diferentes. Mas, na posição inversa, pretende-se que a liberdade da mulher a organizar a sua vida possa exigir o sacrifício total e definitivo da vida (inviolável) do filho. Por outras palavras: a garantia da vida do filho não impede completamente o exercício do direito da mãe, que pode sempre continuar a organizar a sua vida, embora em termos diferentes. Mas a garantia da liberdade da mãe é entendida como impedindo total e definitivamente que o filho possa continuar a viver, ainda que em termos diferentes.

[…]

O segundo erro cometido pelo Tribunal Constitucional foi o de afirmar que o método que inventou para o ajustamento no gozo dos dois direitos, o direito da mãe e o direito do filho, é método equilibrado. Trata-se do chamado método dos prazos, que praticamente (e isto é o que importa) se traduz em dar à mulher um prazo para decidir, em seu completo e incontrolado arbítrio, se quer ou não sacrificar completa e definitivamente o direito à vida do filho, em favor do seu direito a organizar a sua vida sem qualquer ajustamento ao direito da vida do filho. Como é evidente, este «método dos prazos» é um falso equilíbrio, porque a liberdade da mãe é sempre vencedora e a vida do filho resulta sempre dependente do exercício da liberdade da mãe. A vida do filho nunca sacrifica a liberdade da mãe, porque essa liberdade só é sacrificada se a mãe quiser. De facto, o alegado equilíbrio que se obtém para o gozo destes dois direitos fundamentais de liberdade pelo «método dos prazos é um perfeito sofisma.’

(Mário Pinto, pp. 39.40)

 

’[…] como admitir um Direito Fundamental ao Aborto quando o Aborto é em todos os Países e na Europa um crime (vide art.º 142.º do C. Penal onde apenas é descriminalizado em certas circunstâncias)? Sendo Direito Fundamental, será possível até aos 9 meses?’

(Isilda Pegado, p. 44)

‘Também se invoca, para justificar o direito ao aborto como direito fundamental, a autodeterminação reprodutiva da mulher. O argumento será válido quando se trate de evitar a conceção, antes da reprodução se dar, não quando já se deu a conceção e a reprodução, quando (como sucede com o aborto) se trata de suprimir a vida de um ser já concebido e em gestação.’

(Pedro Vaz Patto, p. 49)

‘Este poder de eliminar Vidas Humanas dado a uns, no tempo, há de gerar novas formas de alguns poderem decidir da vida de outros. Vertigem a que só o Estado se pode e deve opor. É necessário sentido de Estado.’

(Isilda Pegado, p. 56)

(Descrição sensível e perturbadora)

‘A notícia da NPR, que eu já enviara ao Polígrafo, aborda esta questão: “Também conhecida como «dilatação e extração», ou D&X, e «D&E intacta» [dilatação e extração intacta], envolve a remoção do feto intacto através da dilatação do colo do útero da mulher grávida, puxando depois todo o corpo para fora através do canal de parto.”

Dilatação e extração é o que se faz num parto, com a diferença de que, aqui, a dilatação é inteiramente provocada e o filho tem de ser morto antes de sair totalmente. Daí, a técnica ter sido designada socialmente de “aborto por nascimento parcial” (PBA), como o documento dos bispos (que o Polígrafo também recebeu, mas escondes) descreve: “O médico pare parte substancial da criança viva para fora do corpo da mãe – toda a cabeça num parto com a cabeça para baixo ou o tronco para além do umbigo num parto com os pés para cima – e depois mata a criança esmagando-lhe o crânio ou retirando-lhe o cérebro por sucção.”’

(José Ribeiro e Castro, pp. 60-61)

‘Uma coisa não pode ser um direito fundamental e um crime ao mesmo tempo.’

(José Maria Duque, p. 68)

‘Limitar o exercício do direito à objeção de consciência por parte dos médicos (e outros profissionais de saúde), para além de ser inconstitucional, é ética e deontologicamente inadmissível.’

(Teresa de Melo Ribeiro, p. 82)

‘Recordo-me do tempo em que os partidários da legalização do aborto argumentavam que esta era uma exigência da tolerância porque «ninguém é obrigado a abortar» e, por isso, também ninguém deve ser proibido de o fazer. É certo que essa argumentação esquecia que o nascituro é «obrigado a ser abortado», obviamente sem dar para tal o seu consentimento. Mas com a limitação do direito à objeção de consciência nos termos do referido projeto de lei, deixa de ser verdade que «ninguém é obrigado a abortar»: um profissional de saúde pode ser obrigado a agir contra a sua consciência e a praticar um aborto ou colaborar nessa prática quando não haja alternativas.

A liberdade de consciência está, pois, em perigo. Importa salvá-la.’

(Pedro Vaz Patto, p. 89)

‘Se os seres humanos têm valor fundamental só por causa de alguma característica que adquirem em diferentes estágios da sua vida, então, aqueles que possuem um grau maior dessa característica têm mais valor do que aqueles que têm um grau menor e a famigerada igualdade entre todos os seres humanos não passa de um mito.’

(Maria Helena Costa, p. 92)

‘Recusar a eleição de uma juíza para o Tribunal Constitucional por esta ter declarado, na linha da jurisprudência desse Tribunal, que a vida humana intrauterina goza de proteção constitucional, é uma forma inaceitável de desprezo pela Constituição e pela independência desse Tribunal. Acima do respeito pela Constituição e pela independência do Tribunal Constitucional, está uma agenda ideológica extremista a prosseguir a qualquer preço.’

(Pedro Vaz Patto, p. 97)

‘As ordens profissionais dão pareceres contra a eutanásia? Tenta-se acabar com a sua autonomia. Os médicos evocam a objecção de consciência para não praticar abortos? Acaba-se com a objecção de consciência. Os pais não educam os filhos na ideologia de género? Obriga-se as crianças a aprender na escola. Mais, os pais não aderem à ideologia de género? Então, cria-se na escola mecanismos para que estes sejam denunciados à CPCJ, como acontecia com o projecto de lei que aplicava a Lei da Autodeterminação de Género às escolas. As pessoas dizem coisas nas redes sociais que a esquerda não gosta? Regule-se as redes sociais. As pessoas afirmam coisas que a esquerda não gosta? Criminalize-se o discurso afirmando que tudo o que discordamos é discurso de ódio.’

(José Maria Duque, p. 100)

‘[…] a vida humana é sagrada, a violação da vida humana por  meio do assassinato é imoral, o embrião é um ser humano, a lei pretende tutelar os bens, entre eles e como magno a vida humana, e o aborto é a prática que leva à morte do feto. Logo, a lei deve proteger o bem vida humana do feto (pequeno humano) face à ameaça do aborto.’

(Francisco Ascensão, p. 107)

‘[…] o que há a fazer com urgência e determinação não é impedir que nasçam crianças (a maior das riquezas, como disse o Papa Francisco em Timor-Leste) promovendo o aborto, é remover os obstáculos que hoje tanto dificultam a maternidade e a paternidade.’

(Pedro Vaz Patto, p. 113)

‘Quais foram os movimentos filosóficos, sociais e políticos que nos conduziram até aqui? Que processos ideológicos criaram condições para que, a pouco e pouco, se fosse perdendo o conceito de Bem objetivo? Que correntes de pensamento foram dissolvendo o conceito de Consciência, e foram cultivando a ideia de que a razão subjetiva da pessoa que decide se deve sobrepor ao valor da vida?

[…] só uma concepção materialista da vida, hiper legalista (se está na lei então pode-se fazer), só uma visão meramente funcional e utilitária da existência poderia decretar que é a vontade popular que determina se o aborto é um direito ou um crime, e que confia à maioria a determinação do bem e do mal.’

(Pedro Saraiva Ferreira, pp. 122.123)

‘Veja-se a legislação que, em vários países, pretende proibir qualquer manifestação de oposição ao aborto (mesmo que de forma pacífica e não ofensiva, mesmo que de uma oração em silêncio se trate) em zonas próximas dos locais onde ele se pratica. Onde está agora a tolerância?’

(Pedro Vaz Patto, p. 127)

‘Sendo o aborto um erro, como podemos continuar a achar que ele seja sinal de compaixão?

Compadecer-se é, sim, ajudar o outro a encontrar uma saída construtiva para um problema que se lhe afigura insuperável… E para isso aí estão as associações de defesa da vida que têm, desde 1998, criado respostas para que não fique sem ajuda mulher alguma cujo filho decidiu ouvir: em sussurro, ele pedia-lhe que o acolhesse…’

(Luís Manuel Pereira da Silva, pp. 131-132)

‘Não há temas indiscutíveis em democracia. No debate político não deve haver tabus. E, por isso, não devemos ter medo de discutir a IVG, mas quem quiser alterar a lei deve fazê-lo em absoluta lealdade ao povo português, sempre e apenas através de um novo referendo.’

(João Pedro Luís, p. 135)

‘[…] esta ofensiva política, a pretexto do aborto (outra vez), é uma arremetida de fome pelo poder e um cortejo de desonestidade intelectual, de indecência de processos, de falta de respeito pelo Direito, cavalgando mentiras habituais e querendo romper limites de exercício do poder em democracia. Merece ser vencida. Necessita de ser vencida.’

(José Ribeiro e Castro, p. 142)

‘[…] sabemos que o aborto em Portugal raramente é livre, mas é, em grande parte dos casos, fruto da pressão de patrões, companheiros, famílias ou simplesmente provocado pela pobreza. Por isso sabemos que o aborto não destrói apenas a vida por nascer, mas tantas vezes destrói também a mulher. Por isso sabemos que o alargamento dos prazos do aborto não irá ajudar nenhuma mulher, mas apenas aumentar a desresponsabilização do Estado e da sociedade diante das mulheres em dificuldade.

Impressiona-me que num país com tão poucos nascimentos, onde as grávidas encontram tantas dificuldades para ter os seus filhos, onde não existe qualquer política de apoio às grávidas em dificuldade, existam deputados que brinquem aos prazos legais do aborto sem qualquer critério que não seja a conveniência política. Pelo caminho ficam todas as mulheres que procuram ajuda para ter os seus filhos e que só encontram da parte do Estado uma resposta: o aborto.’

(José Maria Duque, p. 145)

‘Não existe matéria de maior importância, gravidade e sensibilidade do que aquela que respeita à vida ou morte de seres humanos, ainda que apenas vivam dentro de suas mães.’

(Teresa de Melo Ribeiro, p. 151)

‘Defendo a vida desde o momento da conceção até à morte natural e, concretamente nesta matéria, já tive ocasião de o dizer publicamente que não me identifico com uma sociedade que opta por viver entre uma pílula do dia seguinte e uma pílula do último dia.’

(D. Américo Aguiar, p. 153)

‘Não sei quantos portugueses estão conscientes deste silencioso genocídio, que a esmagadora maioria dos nossos políticos finge ignorar, mas é crescente a mobilização de cidadãos – cristãos, crentes de outras religiões, agnósticos e ateus – em defesa da vida humana intrauterina e da cultura humanista. Espera-se que o silêncio cúmplice da comunicação social em relação a iniciativas que promovem a dignidade humana dê lugar a uma atitude comprometida com a verdade e a justiça, assegurando a devida cobertura às manifestações em defesa da vida. Com efeito, no próximo dia 29 de março [de 2025], ocorre mais uma Caminhada pela Vida, em simultâneo em 13 cidades portuguesas: Aveiro, Beja, Braga, Coimbra, Évora, Faro, Funchal, Guarda, Lamego, Lisboa, Porto, Santarém e Viseu. Pela vida dos seres humanos mais desprotegidos e necessitados e pelo respeito pela dignidade das mulheres, vale a pena, agora e sempre.’

(Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, pp. 158-159)

 


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Foto recolhida do site das Ediciones Cristiandad

sábado, agosto 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 15 | Mistério da porta da praça

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



O calor de agosto convida a robustas sombras. O branco calcário da praça reflete, com vigor, o sol tórrido daquele verão.

A nascente, o edifício dos paços do concelho é encimado por uma sineta que, hora a hora, com três ligeiros toques, recorda, aos que passam, que o tempo passa como eles. Não é lugar de ilusões.

Não se pode parar sobre o branco do lajedo. As tílias que ladeiam a zona central não são, ainda, de copa suficientemente larga para acalmar o calor que queima. É preciso acelerar o passo e procurar sombras que sosseguem o vigor do estio.

No lado poente, uma pequena capela de Santo António, fresca, acolhe os que se querem abrigados sob a proteção das águas eternas. Reza-se por um menor rigor no tempo, esperando a condescendência do eterno.

No centro da praça, o vazio. Só o branco da pedra calcária e a languidez das formas, desvirtuadas pela ebulição de um ínfero calor…

Nos esparsos bancos de jardim, no lado norte da praça, descansam, sobre as suas bengalas retorcidas, os esquecidos do tempo e de tempo. Aguardam… Já não sabem por que hora. Mas aguardam, alquebrados.

J. e M. vieram visitar os avós e gostam, sempre, de uma rápida visita à praça. Fala-lhes de tempos em que também eles ali viveram, numa das moradas que hoje já só alguns recordam terem sido habitadas. Tudo é loja ou ausência…

Sob as tílias mais robustas, pingando calor, deitam um olhar em redor. Pela zona central da praça, o seu olhar é veloz. A brancura refletida da luz não se compadece com demoras.

Detêm o seu olhar, porém, numa porta invulgar.

Como que incrustada entre portas que abrem para lojas, modernas e luminosas, uma porta de madeira, antiga, parece ter ali sido forçadamente pregada.

Tosca, rematando uma parede de tijolo mal pintada, tudo nela é singular. Só o número – trinta e seis – garante a continuidade com o tempo. O resto é invulgaridade.

J. e. M. ousam sentar-se à soleira daquela porta. Afagam umas poucas ervas nascidas sem terra e desviam a conversa para o tempo que passa.

Divertem-se a comentar o que observam.

(Sabem que o pai não acha piada que passem o tempo a comentar as vidas de outros, mas, na sua ausência, atualizam a conversa… Talvez tomados por um rebate de consciência, desviam os comentários para o significado daquele número.

- Trinta e seis. Hum. Não é a idade que o pai tinha quando nasceste? – gracejou J.

- E a data em que Jesus poderá ter morrido. Os cálculos feitos, no século VI, pelo monge Dionísio o exíguo, têm um pequeno erro de alguns anos: três ou quatro ou cinco ou, até, seis… Jesus, que terá morrido com trinta e três anos, morreu no ano de trinta e seis ou trinta e sete ou trinta e oito ou, até, trinta e nove.

- Já estás nas tuas derivas, M.)

Estão nisto, quando, sem se aperceberem, se acerca deles um homem de caminhar trôpego, pernas arqueadas e olhar estrábico.

Assustam-se com a sua presença.

Num primeiro momento, tartamudeiam um mal-amanhado ‘boa tarde’, não percebendo, de imediato, se conseguirão manter uma conversa límpida com aquele estranho homem.

Parece-lhes desconexo o que ele diz.

Após um ‘têm um pãozinho?’, e um apontar com o braço para a praça, seguido de um ‘explodir de braços’, J. e M. olham um para o outro sem saberem o que esperar dali.

Subitamente, aquele deambular louco dá lugar à surpresa de um regresso ao tempo.

Aquele homem aparentemente desnorteado dá lugar a um ‘Sabem? Pensam que sou louco!’

Adotando uma postura de corpo hirta e robusta, retomando o olhar centrado, pediu para se sentar no meio deles.

Atónitos, esboçaram um mecânico movimento de afastamento que permitiu que os três partilhassem aquele improvisado banco de jardim.

- Chamo-me ‘António’. É assim que me chamam por aqui. Na verdade, sou ‘Lázaro’. Como todos os lázaros de todos os tempos e todos os lugares… Sou aquele a quem ‘Deus dá ajuda’. E, por mim, a outros.

M. queria estar encostada a J. para poder dar-lhe uma cotovelada. Via-o perdido, surpreendido, de olhar suspenso.

Não era para menos. Aquele homem mudara de figura sem que tivessem conseguido compreender o que se passara diante dos seus olhos.

Enquanto os pensamentos se enrolavam nas cabeças baralhadas de J. e M., aquele homem prosseguia.

- Todos os meus foram infelizes. Doenças, mortes precoces, separações, abandonos. Tudo o que podeis imaginar aconteceu aos meus.

Um dia, vim aqui. Sentei-me neste lugar.

Nesta casa, viveu uma família que deu teto a muitos. Das mãos do chefe desta família saíram as paredes da morada de muitos. Mas uma família muito sofrida. Numa noite de verão, em pleno agosto, ouviram-se uns gritos de desespero. Os que aqui passavam ouviram um: ‘porque não a mim?’ Nada mais se ouviu, desde então.

Ficaram estas paredes para o testemunhar.

Despertando do seu espanto sonolento, M. atirou:

- Não entendi nada. Ficaram estas paredes?

- Só o tempo veio a explicar o que aqui aconteceu. Vendo os seus sofrerem desalmadamente, aquele pai desejou, para si, o sofrimento por que via passarem os seus. Foi-lhe concedido esse dom. A dor sofrida pelos seus foi aliviada, assumida por aquele compassivo pai. E, para o lembrar, as paredes exteriores desta casa escondem o segredo que jamais será revelado. Ninguém pode jamais voltar a entrar nela. Se alguém o fizer, tudo regressará ao que era.

E encostou a mão à porta.

M. era só olhos… No centro do seu olhar, interrogações. Só interrogações.

- Mas esta casa está assim. Velha, como que prestes a cair. O que tem isso a ver com o que nos está a contar?

- O exterior, esta porta, esconde o segredo que o seu interior reserva. No centro da casa, transfigurada, formou-se um profundo lago, feito das lágrimas e sofrimentos dos seus mais amados. Dizem que a profundidade do lago se deve a que nele estarão todas as dores do mundo... Ao centro, uma só planta: uma victoria cruziana. Floresce, nos meses de verão, apenas uma vez ao ano, de noite. Atrai, com o seu odor, os males dos que, amados, sofrem dores que outros querem sofrer por si. A sua dimensão compreende, em cada ano, a grandeza da compaixão. No primeiro dia, a sua cor é branca, luminosa. E fecha, de novo, ao alvorecer para, ao fim do mesmo dia, voltar a florescer, já com tons de rosa. – As dores do mundo são densas… Os que aqui se sentarem, em cada ano, e desejarem assumir sobre si as dores dos seus, talvez vejam, nesse singular florescer, reparados todos os sofrimentos de que desejam libertá-los.

Ainda a última palavra se soltava dos seus lábios, o homem ergue-se de um salto e começou a andar, de novo com aquele andar trôpego com que se acercara deles.

Mas M. teve tempo de perguntar:

- ‘Como sabe isso?’

O homem estacou…

- ‘Nas máscaras da vida há muitas personagens.’ – E, retomando o passo, dirigiu-se para a praça, de andar desajeitado, olhar estrábico e conversa enrodilhada.

Do interior, através das frinchas secas da madeira da porta trinta e seis, J. e M. sentiram exalar um doce odor de nenúfar…

Avizinhava-se o anoitecer. Era um mês de verão!




*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

quarta-feira, agosto 13, 2025

'Os Sete Dias da Criação' |4| Luís M. P. Silva 'O primeiro dia: a luz!'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Consideremos as etapas anteriores desta nossa reflexão como um autêntico ‘preâmbulo’. ‘Preambulare’ significa, literalmente, ‘antes de começar a andar’… Preparámo-nos para andar, para caminhar.

É hora de andar!

O preâmbulo antecipou o primeiro momento do nosso caminho. A luz, primeiro fruto do ato criador, é particularmente simbólica e significativa para o que aqui nos traz.

Diz o autor bíblico[1]:

«3*Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita. 4Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5*Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.»

Vale a pena, antes de começar a deixar que o texto ‘fale’ connosco, reparar num detalhe intrigante. Diz o autor que ‘surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia.’ Sempre me intrigou esta sequência.

‘Uma tarde e, depois, a manhã?’

Sim, é a lógica judaica de organização do tempo. O dia começa com o pôr-do-sol. É por isso que o sábado começa na sexta-feira, com o pôr-do-sol, e, pela morte de Jesus, o seu enterramento teve de ser precipitado, porque se avizinhava o fim daquele dia e, com o pôr-do-sol, o início do Sábado da Páscoa, que ‘era um grande dia’ (Jo 19,31)

Regressemos, então, ao que este excerto nos evidencia.

Sublinhemos o simbolismo que radica neste primeiro ato criador. Deus começa a Sua ação com a ‘luz’. Bem certo que uma abordagem concordista[2] da Bíblia vislumbra neste ato a confirmação de que o início da criação se opera por uma ‘grande explosão’, como que subscrevendo a teoria primeiramente sustentada pelo Pe. Georges Lemaître e cunhada como ‘big bang’, pelos seus opositores, entre os quais se destacava, então, Fred Hoyle, defensor de um universo estacionário.

Sigo outra linha…

É simbólico que a luz seja o primeiro ‘fruto’ criado.

É que o autor bíblico tem o cuidado de registar que esta é ‘separada das trevas’ (estas não são fruto do Criador. São uma mera ‘ausência’ da luz que, essa sim, é fruto criado! Santo Agostinho explorará esta constatação para a sua reflexão sobre o mal enquanto ausência do bem. O bem, sim, é fruto de Deus. O mal, enquanto insuficiência do bem, é mera ausência e, por isso, não carece de um criador…).

Mas o autor bíblico acrescenta mais um detalhe que ganha significado quando comparamos o texto bíblico com os textos contemporâneos de então e que marcavam as cosmogonias (as teorias explicativas sobre a origem do mundo) desse tempo. O autor bíblico sublinha que ‘Deus viu que a luz era boa’. A bondade da criação é uma nota específica do texto bíblico. Contrasta, de forma flagrante e nunca sobejamente recordada, com as visões de então (e, apetece dizer, com muitas leituras ainda hoje presentes…). Na visão bíblica, o mundo não é intrinsecamente mau. O mundo, enquanto fruto da ação de Deus, é desejado como bom, é reconhecido como bom.

Mas, e que nos diz de ainda mais relevante o facto de ser a luz o primeiro ato criador?

A luz sempre foi, ao longo dos tempos, sinónimo de bem, verdade, sentido, horizonte, conhecimento.

Acrescentemos, para densificar esta última nota, que o autor bíblico refere todos os atos de criação de Deus como resultando da eficácia da Sua Palavra.

O autor afirma: ‘Deus disse: «Faça-se a luz.»’

E a luz foi feita.

Não é um demiurgo que realiza o mundo, que o concretiza. É a própria Palavra que, na sua eficácia, opera o ato.

Há uma intrínseca ligação entre ‘Palavra’ e ‘Criação’, seja, enquanto ‘ato’ (o ato de criar), seja enquanto fruto (a obra criada), o que coloca todo o mundo em estreita ligação à verdade.

Para percebermos o alcance disto, socorramo-nos do que os gregos diziam sobre a verdade.

Para os gregos, a verdade podia ser pensada em três registos: como ‘orthótês’ (‘coerência), como ‘ousia’ (como a ‘verdade da coisa em si’) e como ‘alêtheia’ (a verdade no intelecto, entendida como ‘desvelamento’, como ‘não esquecimento’).

O que importa desta brevíssima síntese?

Esta síntese permite-nos ver que a verdade, como dizia S. Tomás é, bem certo, ‘a adequação entre objeto e entendimento’ (Suma Teológica (Ia, q. 16, a. 1, sol.), em que subentendem as demais implicações de ‘verdade’, mas que a história virá a explicitar mais claramente.

A verdade deverá, sempre, naturalmente, dizer-se em relação ao sujeito que conhece, mas deverão supor-se as outras duas dimensões: a verdade da coisa em si e a verdade desta coisa em relação ao que Deus quer dela.

Parece subtil, mas desdobremos a ideia.

A verdade deve reconhecer-se ao pensamento que reflete sobre a realidade. Certamente! E tal, num contexto de uma reflexão como a que estamos a fazer (em que ciência e religião se interrogam sobre o mundo, é particularmente implicativo…). O pensamento, para ser válido, tem de ser verdadeiro e, como dizia São Tomás, adequar-se à realidade.

Mas a própria realidade é, isto é, existe como um algo concreto. O sujeito que pensa, que conhece, interroga-se sobre o mundo em si. Não sobre criações mentais sem respaldo na realidade.

Resulta daqui um desafio de ‘regressar à realidade’ (Quantas implicações para os diversos âmbitos do saber que, fechados hermeticamente em si, se vão afastando do mundo, criando ideologias…).

Mas há um outro desafio: o de a própria realidade ser de acordo com o que Deus pretende para ela.

Aplicando ao ser humano, é visível a consequência disto… Ser-se humano é corresponder à humanidade desejada por Deus. O próprio S. Tomás tem isto em conta ao falar do dever de corresponder ao ‘entendimento de Deus’.

Vincar, como afirmava o autor bíblico, que ‘Deus disse… e foi feita’ é vincar que a natureza das coisas realiza-se e fá-las verdadeiras se elas corresponderem ao que Deus quis e quer que elas sejam…

Assegurada a ‘luz’, iluminados pela ‘Verdade’, prossigamos, nas próximas etapas, os ‘dias da criação’… ‘Desvelando’, levantando o véu de trevas que sempre tenta abater-se sobre a realidade, sobre a identidade da realidade e sobre o discurso acerca da mesma realidade.


[1] Sigo a tradução de https://www.paroquias.org/biblia/

[2] O diálogo entre ciência e religião pode operar-se de muitos modos. No que respeita à leitura do que deva recolher-se da leitura bíblica, muitos são os que a interpretam procurando confirmar, na letra do texto, o que as ciências vão estabilizando como saber comummente aceite pela comunidade científica. A esta leitura que coloca em ‘concordância’ a letra da Bíblia com as teorias científicas designa-se como ‘concordismo’.

Defendo, porém, que outra deva ser a leitura. À Bíblia não devem fazer-se as perguntas a que a ciência pretende responder. Outro é o objetivo dos textos bíblicos. Como sintetizava, sabiamente, Galileu, não deveremos perguntar-nos, a partir da Bíblia, ‘como’ é o céu, mas sim como se vai ‘para’ o Céu. A Bíblia é a história de Deus com os Homens e, por isso, narra-nos o olhar de Deus sobre o sentido da História e sobre o sentido do agir humano.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Enrique por Pixabay

 

'Os Sete Dias da Criação' |3| Luís M. P. Silva: 3 – 'Continuando antes do primeiro dia… Como se construiu a ‘fake’ de que a Idade Média acreditara na planura da Terra…'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Quem nos conta a origem da ‘fake new’ sobre a ‘fé’ da Idade Média na planura da Terra, com o detalhe que não desenvolveremos aqui, é Jeffrey Burton Russell, professor da Universidade de Califórnia, no seu livro Inventing the flat Earth: Columbus and modern historians, a que chegámos pela mão de Jorge Buescu.

Importa, desde já, clarificar que, na Idade Média, houve dois autores que defenderam a ideia da Terra plana: Lactâncio (245-325; Luís Filipe Thomaz indica as datas de c. 250-317) e Cosme Indicopleustes (que viveu no tempo de Justiniano (reinou entre 527 e 565). São, porém, autores menores, sendo que Lactâncio só é descoberto pelos renascentistas pela sua retórica (nos séculos XV e XVI) e Cosme Indicopleustes só é traduzido para latim em 1706 (muito tempo, portanto, depois de qualquer possibilidade de exercer influência nos decisores desta discussão…)[1].

Então, como compreender como aqui chegámos?

Russell descreve 4 momentos, a partir de inícios do século XIX, determinantes para a criação deste mito.

Antes de os enumerar, constatemos, porém, que estamos no rescaldo da Revolução da Francesa e em pleno contexto do iluminismo, que consideravam, por um lado, a primeira, que o passado associado à Igreja era período tenebroso e que havia que centrar tudo, de acordo com o segundo, o Iluminismo, já não na fé, tomada como obscura, mas sim na Razão, entendida como a verdadeira fonte da luz… Em contraste, o passado associado ao cristianismo, o período entre o final da Idade Antiga e o início da Idade moderna, passaria a ser designado como ‘idade média’ (a que fica no ‘meio’) e considerada como ‘idade de trevas’. Edward Gibbon, na sua obra de grande fôlego, ‘Declínio e Queda do Império Romano, obra de 1788, no fulgor deste espírito iluminista, refere-se a ‘as trevas da Idade Média’[2].

Ainda hoje, esta é a visão. Não é, por isso, fortuito que os historiadores que, honestamente, olham para este período, estejam a tentar reabilitá-lo, reconhecendo-o, como diz Seb Falk, professor da Universidade de Cambridge, como ‘a verdadeira idade das luzes’. Mas um pré-conceito, lançado sobre um ‘inimigo’, demora a ser desmontado, se é que o será, algum dia!...

Ora, como chegámos, de facto, à criação de um tal mito que deturpou o que era óbvio (que os autores lidos e seguidos, na Idade Média, defendiam a esfericidade da Terra a que as decisões mais determinantes dos impérios de então tinham sido tomadas com este pressuposto), sem que se tenha contestado?

Como dizíamos, acima, esta é uma ‘tragédia’ em quatro atos.

No primeiro, há um romance da autoria de Washington Irving (1783-1859) que ficciona, no seu História da vida e Viagens de Cristóvão Colombo, publicado em 1828, todo um enredo em que Cristóvão Colombo tem de enfrentar o obscurantismo inquisitorial, convicto da planura da Terra.

Mas, neste primeiro ato, estamos perante um romance…

O assunto ganha outros contornos quando esta tese que, aqui, era literária, passa a ser defendida, em letra de artigo com pretensões científicas, pela pena de um reconhecido geógrafo e eminente cientista de então, Antoine-Jean Letronne (1787-1848). Em 1834, publica ‘Sobre as opiniões cosmográficas dos padres da Igreja’, onde branqueia (não menos obscurantisticamente do que os ‘tenebrosos medievais’!) a história verdadeira, e considera que são mais relevantes Lactâncio e Cosme Indicopleustes do que o que, de facto, são, vincando que até Colombro e Magalhães, se acreditava na planura da terra.

O terceiro ato tem em cena um outro livro, desta feita de um professor de Biologia e Química da Universidade de Nova Iorque, John Draper que, no calor da discussão sobre a relação entre ciência e religião, afirma, em ‘História do conflito entre Religião e Ciência’ (1873) que as universidade medievais negavam a esfericidade da Terra. Observa Jorge Buescu (p. 179) que esta obra teve 50 edições nos Estados Unidos, 21 no Reino Unido, tendo sido traduzida para todo o mundo. O impacto não podia deixar de se esperar e o resultado está à vista de todos. Mesmo os que não lemos esta obra continuamos, mais de 100 anos depois, a defende a mentira ali veiculada…

Falta o quarto ato…

Em 1896, Andrew DIckson White (1832-1918) retoma a mesma tese, confere a Cosme Indicopleustes méritos e reconhecimentos que não tem, definindo-o como ‘típico e influente’, e sustenta que a maioria (já vimos que é falso) dos padres da Igreja tinha a opinião contrária a Agostinho, Orígenes, Isidoro de Sevilha, Beda, o venerável, que ele reconhece que defendiam a esfericidade. A mentira não podia ser maior e obviamente contraditória, pois qualquer leitura honesta constataria que os desconhecidos Cosme Indicopleustes e Lactâncio não podem ter tido maior influência do que a de Agostinho, Orígenes ou, ainda que não citado nesta última lista, São Tomás.

White conseguiu uma influência que suplantou a de Draper, através da Universidade de Cornell que ele mesmo fundou…

Bem certo que, no contexto português, poderemos somar a esta história posterior à revolução francesa, a criação de uma ambiência defensora de um obscurantismo cristão que tem como momento de maior corolário o período pombalino e a sua campanha negra contra a Igreja, em geral, e os jesuítas, em particular.

Henrique Leitão, prémio Pessoa em 2014, em conferência proferida em Aveiro, em 2019[3], contou que o Marquês de Pombal, para poder desenvolver a sua campanha de perseguição aos Jesuítas, ordenou que fossem destruídos os inúmeros azulejos que, nas paredes da Universidade de Évora, apresentavam os diversos passos do tratado da Esfera e outros tratados astronómicos, pois não era enquadrável com a sua tese de que a Igreja era obscurantista, a existência de tais painéis, numa universidade coordenada por Jesuítas…

Estávamos na segunda metade do século XVIII:

Em inícios do século XXI, já com a experiência de desencontros que nos deveriam ter acordado para o dever de servir a verdade, sem pré-conceitos nem entrincheiramentos, continua o Marquês de Pombal a mandar picar os azulejos com que se tornaria óbvia a nossa mentira? E quem tem na mão a picareta com que se executa a sua demanda?

O nosso intuito é promover o encontro. Pousem-se, sobre a bancada, os martelos e picaretas e abramos, em conjunto, um ateliê de restauro. Os azulejos devem voltar a luzir e, com eles, a luz que não se faz, apenas, de razão iluminadora, pois qual lua, ela não é, ainda, a nascente e a fonte da luz: reflete-a, apenas. A autêntica demanda é a da verdade de que só, como lampejos, nos aproximamos, qual peregrinos…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.


[1] Cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 173-174.

[2] Cfr. Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, p. 21.

[3] Cfr. https://agencia.ecclesia.pt/portal/aveiro-ciencia-tecnologia-etica-e-cristianismo-encerram-o-ciclo-de-tertulias-a-quarta/


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

'Os Sete Dias da Criação' |2| Luís M. P. Silva: 'Ainda antes do primeiro dia… ‘A terra plana’: a ‘fake’ antes de todas as ‘fakes’'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Uma das maiores dificuldades no estabelecimento do diálogo é a superação dos pré-conceitos para com o outro.

No seu livro ‘construir o inimigo’, Umberto Eco chega a afirmar que ‘ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afronta-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo.’ (Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, p. 12) E acrescenta, ao longo das cerca de trinta páginas que constituem a conferência que abre este livro, que o inimigo é sempre ‘feio’, ‘malcheiroso’, ‘monstruoso’, ‘inferior’, ‘pouco inteligente’, etc.. O inimigo, enfim, nunca é um de nós…

Parece uma inevitabilidade com que, porém, não me identifico. Defendo, desde há muito, que não nos definimos pela competição, mas, antes, pela cooperação que nos permite fazer render os talentos de acordo com uma fórmula matemática de soma criativa: 1+1 não é igual a 2, mas a 3 ou 4 ou 5 ou muito mais.

Quantas vezes, a soma da criatividade de duas pessoas ultrapassa tudo o que ambas puderam algum dia imaginar!

Não tem sido, infelizmente, imune a esta constatação de Eco (que ele pretende que seja intransponível, mas a que tentaremos não nos render…) a história da relação entre a ciência e a religião.

E conta-se entre as mais significativas histórias dessa narrativa de encontros e desencontros, a que nos acompanhará, ao longo desta etapa da nossa reflexão.

Era lugar-comum, no tempo da minha formação, enquanto adolescente e jovem, a afirmação de que a Idade Média acreditara na terra como sendo plana.

Acrescentava-se, inclusive, para fundamentar esta convicção, a ideia de que Cristóvão Colombo não fora financiado pela corte portuguesa por nela vigorar esta ideia, e que fora Fernão de Magalhães a demonstrar a condição esférica da Terra.

A tese tinha tudo para ser credível.

E somava-se às condições de veracidade a nossa acriticidade.

Curiosamente, porém, facilmente se constatará que algo não está bem nesta convicção quase universalmente difundida quando uma rápida visita à obra maior da teologia medieval (importante por repercutir o pensamento consolidado e, também, por ser a obra de maior referência então e posteriormente), a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino, nos leva a encontrar, logo na primeira parte, questão 1, artigo 1, na resposta à objeção 2, o seguinte: ‘A diversos modos de conhecer, diversas ciências. Por exemplo, tanto o astrólogo [de acordo com o pensamento medieval, o termo ainda designa o astrónomo] como o físico podem concluir que a terra é redonda. Mas enquanto o astrólogo o deduz por algo abstrato, o físico fá-lo por algo concreto, a matéria.’ [E prossegue, debatendo questões de epistemologia, aliás muito oportunas para a reflexão que aqui nos traz, a saber, a da legitimidade da autonomia das ciências e a da sua complementaridade, na sua especificidade.]

Importa, porém, sublinhar a ‘espontaneidade’ com que o Aquinate se refere ao carácter ‘rotundo’ da terra, deixando pressupor que o assunto era lugar-comum.

Essa conclusão sai confirmada quando nos damos conta de que, como afirmam alguns dos historiadores da ciência que se têm dedicado a este tema (recordo, a título ilustrativo, alguns livros onde esta matéria é abordada: Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes; Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos; Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, etc.), um dos tratados de astronomia mais estudados, durante a idade média, era o Tratado da Esfera, de João Sacrobosco, publicado em 1231 (segundo Seb Falk, p. 144; Jorge Buescu data-o de 1250). Como recorda Jorge Buescu, outros autores medievais tinham, inclusive, tratados que abordavam, já não apenas a questão da esfericidade da terra, mas a da sua rotação: Jean Buridan (1300-1358) e Nicolau Oresme (1320-1382). Acrescenta Jorge Buescu, no livro com que despertei, no já distante ano de 2003, para esta enorme ‘fake new’, que ‘Roger Bacon (1220-1292) afirmou a esfericidade da terra utilizando os argumentos clássicos (os mastros dos navios, as diferentes constelações visíveis em diferentes partes do mundo, o facto de a vista do cimo de uma montanha ser maior) [e que] o próprio Tratado da Esfera do matemático português Pedro Nunes, publicado em 1537, é uma tradução anotada e comentada do Tratado da Esfera de Sacrobosco.’ (Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, p. 171).

Luis Filipe Thomaz pergunta, com graça: ‘se a Terra não fosse redonda, como poderia Colombo, trinta anos antes de Magalhães, intentar descobrir as Índias Orientais navegando para Ocidente? E como poderia o cosmógrafo florentino Paolo del Pozzo Toscanelli (1397-1482) ter sugerido o mesmo a D. Afonso V logo em 1474? E como poderia ter o papa Alexandre VI dividido a Terra em dois hemisférios, atribuindo um a Castela e outro a Portugal, se aquela não fosse esférica? E como se teria podido em Tordesilhas traçar uma linha de pólo a pólo sobre uma superfície plana? Porventura têm pólos os rectângulos?’ (Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, pp 33-34) Explica, por seu turno, Jorge Buescu que a corte portuguesa não investiu em Colombo, não porque acreditasse na Terra como plano, mas sim porque, pelas suas contas (corretas, enquanto a corte espanhola as tinha erradas), a dimensão da Terra tornava um investimento sem retorno a aposta na chegada à Índia pelo Ocidente. A sorte de Colombo foi ter encontrado, no caminho, a desconhecida América… (cfr. Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, pp. 176-177)

Perante isto, é óbvia a pergunta paradoxal: como chegámos aqui? Como pôde tornar-se uma convicção comum uma tal mentira? E, ainda pior: porque continua a fazer-se silêncio sobre tamanha falsidade?

Vê-lo-emos, no próximo passo da nossa reflexão…


Seb Falk, A Idade Média: a verdadeira idade das luzes, Lisboa, Bertrand Editora, 2021.

Umberto Eco, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011.

Jorge Buescu, Da falsificação dos euros aos pequenos mundos, Lisboa, Gradiva, 2003.

Luís Filipe F. R. Thomaz, O drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer, Lisboa, Gradiva, 20192.

  1. Tomás de Aquino, Suma de Teologia, Tomo I (Parte 1), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2017.

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Ylanite Koppens por Pixabay

'Os Sete Dias da Criação' |1| Luís M. P. Silva: 'Antes, mesmo, do primeiro dia…'

 

(‘Os Sete Dias da Criação’ | Rubrica dedicada ao diálogo entre ciência e religião)
Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

‘Os sete dias da Criação’ evocam um tempo… (Para Santo Agostinho, não será grande o futuro para os que gastam o tempo a interrogar-se sobre o ‘antes do tempo’. Espero que não me aguarde tal destino por ousar desafiar a conclusão agostiniana…) Mas ouso pensar ‘os sete dias da Criação’, muito mais do que um tempo, como um lugar. O lugar utópico que, recuperando o termo criado por S. Tomás Moro, nos fala de um ‘não-lugar’ (utopia – u+topos – ‘não lugar’), pois sonho-o como uma oportunidade para promover um encontro tantas vezes difícil e – estou convencido! – sustentado em enormes equívocos.

‘Os sete dias da Criação’ querem definir-se como um areópago de diálogo entre a ciência e a religião, entre a religião e a ciência. Não a ciência, bem certo, como a pensavam os pré-modernos, que a entendiam como ‘scientia’, sabedoria e saber sistematizado, de forma dedutiva, mas como, com a modernidade, a passámos a pensar (talvez nos venha a merecer posterior discussão esta matéria, mas, para já, bastemo-nos com o conceito moderno…). E não, também, toda a religião, mas a que, enquanto cristãos, se pensa a si mesma como ‘releitura’ e ‘religação’ assente no pressuposto de que, ‘no princípio era o «lógos»’. Não, por isso, uma religião emocionalmente definida, mas que se faz da profunda ligação à racionalidade, não à maneira racionalista, mas no pressuposto de que o ser humano é racional e relacional. Uma razão, por isso, intrinsecamente definida como ‘relação’. Uma razão marcada pela historicidade e pela encarnação. Não uma razão desencarnada.

Dizia, acima, que muitos dos desencontros entre ciência (à maneira antes descrita) e a religião do Verbo encarnado se sustentam em equívocos que, por razões específicas e concretamente observáveis, se tornaram duráveis e, em alguns casos, ainda vigentes.

Veja-se como continua a ser considerada como válida a convicção de que o cristianismo esteja de costas voltadas para com a ciência. ‘Não tivemos nós a história de Galileu?’ (Que alguns chegam a ‘mandar queimar na fogueira pela Inquisição’, levando à consumação algo que não se pode confirmar pela História…). ‘Ou a história de Darwin e a sua recusa pela Igreja Católica?’ (transferindo para o continente uma discussão que foi verdadeiramente quente, sim, mas em terras de Sua Majestade…). Ou, por fim, ‘não temos a cereja no topo do bolo que é a tese de que o universo começou com um ‘Big Bang’?’, omitindo-se que foi um padre o primeiro a formular a hipótese de o Universo ter começado com uma densa e singular concentração de energia, professor na universidade de Lovaina e amigo de Einstein, Georges Lemaître.

Os equívocos somam-se, de parte a parte, e a estes acrescentam-se, bem certo, também conceções conflituantes. John Haught, um prolífico autor destas matérias (em português, está traduzido um dos mais interessantes sobre estas ‘pontes’, escrito numa linguagem acessível e recomendável para todas as gerações, mas particularmente para as mais jovens: ‘Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Gradiva’) analisa, no seu ‘ciência e fé: uma nova introdução, editora Sal Terrae’, as três mais posições fundamentais sobre este assunto: a do conflito, a do contraste e a da convergência.

Tomarei partido pela terceira destas, ainda que deva sublinhar que, por convergência não deverá entender-se uma qualquer matização do ‘concordismo’, que procura na ciência as confirmações para o que uma leitura literalista dos textos sagrados conclui. Antes, deverá entender-se como a posição que pressupõe estratos na realidade, legíveis diversamente, de acordo com o nível ou estrato em que se está, mas sem que tal signifique a existência de várias verdades, como que revisitando os erros do averroísmo. Antes, a convergência dá como pressuposto que, no que for matéria comum, não poderá haver contradição.

Para tal ser possível, a atitude, de parte a parte, deverá ser a da boa-fé e a da disponibilidade para o autêntico diálogo, pressupondo, sempre, que, para haver diálogo, é necessário verificarem-se duas condições coexistentes: duas identidades (distinção) disponíveis para o encontro (convergência). Sem distinção, há monólogo; sem convergência, há conflito e imposição da verdade ao outro.

A este propósito, evoque-se a fórmula encontrada pela Igreja Católica para assegurar, por um lado, a presença da verdade, mas sem que tal implique a recusa de verdade no caminho percorrido por outras vias. Evocando a ideia da presença de ‘sementes do Verbo’ em outras experiências religiosas e, particularmente, nas comunidades cristãs não católicas, a Constituição Dogmática ‘Lumen Gentium’, no seu número 8, refere que ‘esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.’

Esta ideia de que a verdade ‘subsiste na Igreja Católica, embora fora da sua comunidade se encontrem elementos de santificação e de verdade’, assegura, por um lado, que não se redunde num relativismo, mas sem que tal comporte a legitimação de uma qualquer imposição ou, no limite, de uma recusa de acolhimento dos elementos de verdade presentes no outro.

Uma tal abordagem coloca-nos em atitude de genuínos peregrinos da Verdade. Wolfhart Pannenberg, por muitos considerado o mais católico dos teólogos protestantes, ao falar da condição proléptica da realidade, afirmando que, no concreto da História, se antecipam lampejos do sentido definitivo, enuncia, precisamente, esta tensão entre os escolhos do relativismo (ao afirmar a ‘Verdade’ antecipada) e o do objetivismo absolutizante (ao falar da condição proléptica da verdade aqui antecipada…).

Será entre estes Cila e Caríbdis (os dois mostrengos entre os quais teve de passar Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca) que tentaremos navegar…

 


Bibliografia:

John F. Haught, Ciencia y fe: una nueva introducción, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2018.

John F. Haught, Criação e evolucionismo em 101 perguntas e respostas, Lisboa, Gradiva, 2009.

Dominique Lambert, Ciencia y fe en el padre del Big Bang, Georges Lemaître, Madrid/Maliaño, Universid Pontificia Comillas/Sal Terrae, 2015.

Luís M. P. Silva, Teologia, Ciência e Verdade: Fundamentos para uma definição do estatuto científico da Teologia, segundo W. Pannenberg, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004.

Ronald L. Numbers (org.), Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, Lisboa, Gradiva, 2012.


*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano', 'Ensaios de liberdade' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

Imagem de Andres Nassar por Pixabay

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 16 | Mistério na curva da foz

  Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra... (Nos ramos da escrita, re...