Introdução
Esta reflexão não pretende ser um ponto de chegada. Será, antes, pela intenção com que a realizei, um ponto de partida para muitas outras reflexões que os leitores queiram prosseguir, tomando por referência, eventualmente, o que aqui faço.
Este texto nasce de uma constatação pessoal. Quando me foi enviada a notícia de que estava eleito um novo Papa e que já escolhera, para nome, Leão, logo comentei, quando me perguntaram ‘porquê Leão XIV?’, o que vim a verter para texto: ‘Um Papa da Doutrina Social da Igreja, na linha de Leão XIII’, ‘Papa atento ao mundo e aos problemas dos operários’.
As posteriores explicações de Leão XIV confirmaram esta imediata intuição, acrescentando-lhe a nota de que estará atento à nova ‘revolução em curso’, a revolução provocada pela inteligência artificial.
Quando, depois desta intuição que pouco tem de surpreendente para quem conhece um pouco da história mais recente da Doutrina Social da Igreja, me propus interrogar a História para saber mais sobre os outros Papas que tinham escolhido o nome de ‘Leão’, à constatação da condição de ‘Magno’ de Leão, que partilha o título com apenas um outro Papa, S. Gregório, o Magno (3 de setembro de 590 a 12 de março de 604), somei a verificação de que os pontificados de alguns dos anteriores 13 Leões tinham estado associados a momentos marcantes da história da Igreja com significativas repercussões, ainda hoje.
Propus-me, então, realizar esta breve procura que destaca alguns ‘sinais’ (positivos e, nesse caso, a prosseguir; ou, então, ‘sombrios’ e, nesse caso, a superar) que nos deixam os anteriores pontificados leoninos.
Para tal, segui quatro fontes: (a) Michael Walsh, Dicionário de Papas[1], (b) Manuel Santos Júnior, Os Pontífices[2] e (c) Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras[3], confirmando, por fim, os dados em (d) www.vatican.va. Refiro estes dados em primeiro lugar*.
No segundo conjunto de informações, a cidade indica o local de nascimento, as datas referem-se ao período do pontificado.
Após uma breve síntese dos dados mais objetivos, farei a reflexão ‘significativa’, sublinhando o que considero serem os mais reptos que, da época que a nossa analepse revisita, emergem para os nossos tempos.
1- Breves informações
Três constatações iniciais:
- Dos 13 Papas que, até Leão XIV, tinham escolhido o nome de Leão, apenas um, Leão IX, não tem origem na península itálica.
- Cinco de entre os Papas de nome ‘Leão’ foram canonizados: Leão I, o Magno, Leão II, Leão III, Leão IV e Leão IX.
- Um dos Papas de nome Leão, Leão VIII, era leigo e teve de ser ordenado para poder assumir a missão de Papa.
S. Leão I Magno
[*45.º Papa] [Nasceu em Tuscia | Pontificado: 29 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461]
(Roma [Manuel Júnior refere Volterra]| 440-461 | 19 de setembro de 440 a 10 de novembro de 461 | 21 anos de pontificado) Segundo Manuel Júnior, tipifica o modelo de sumo pontífice, sendo tomado como exemplo, nos séculos posteriores.
S. Leão II
[*80.º Papa] [Nasceu na Sicília | Pontificado: janeiro de 681; 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683]
(Sicília | 682-683 | 17 de agosto de 682 a 3 de julho de 683 |11 meses de pontificado) Segundo Manuel Júnior, introduziu a água benta nos ritos litúrgicos.
S. Leão III
[*96.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 26/27 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816]
(Roma | 795-816 | 26 de dezembro de 795 a 12 de junho de 816 [Segundo Morais Silva, morreu a 11 de junho de 816] | 21 anos de pontificado)
S. Leão IV
[*103.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 10 de maio de 847 a 17 de julho de 855]
(Roma | 847-855 | 10 de abril de 847 a 17 de julho de 855 | 8 anos de pontificado) – Segundo Manuel Júnior, foi o primeiro a escrever o ano do seu pontificado nos documentos; refere, ainda, que edificou a ‘cidade leonina’, uma fortificação em redor do Vaticano.
Leão V
[*118.º Papa] [Nasceu em Ardea, sul de Roma | Pontificado: Julho de 903 a setembro de 903]
(Ardea [Sul de Roma?] Agosto e Setembro de 903 [deposto por Cristóforo (b)/Cristóvão (a)] | morreu em 904 | Segundo Walsh, o seu pontificado durou cerca de um mês; Morais da Silva fala em três meses.)
Leão VI
[*123.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: Maio/junho de 928 a dezembro de 928 ou janeiro de 929]
(Roma | junho de 928 a janeiro de 929; Manuel Júnior só refere 928, o que parece confirmar-se com a informação recolhida de Morais da Silva que refere que morreu em dezembro de 928 | 7 meses de pontificado)
Leão VII
[*126.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: janeiro de 926 a 13 de julho de 939]
(Roma | 3 de janeiro de 936 a 13 de julho de 939 | 3 anos de pontificado)
Leão VIII
[*131.º Papa] [Nasceu em Roma | Pontificado: 4/6 de dezembro de 963 a março de 965]
(Roma |4 de dezembro de 963 a fevereiro de 964 [deposto] | morreu a 1 de março de 965 / Manuel Júnior refere ‘963-965’ | cerca de dois meses de pontificado, entre João XII, que fora eleito com apenas 18 anos, e Bento V, aclamado pelo povo contra a vontade do imperador Otão I). Segundo Morais da Silva, era leigo, tendo recebido, no mesmo dia, os diversos graus da ordem.
S. Leão IX
[*152.º Papa] [Nasceu na Alsácia | Pontificado: 2/12 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054: Nome de nascimento: Brunone dos Condes de Egisheim]
(Egisheim [Alsácia] | 2 de fevereiro de 1049 a 19 de abril de 1054 | 5 anos de pontificado)
Leão X
[*217.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 11/19 de março de 1513 a 1 de dezembro de 1521: Nome de nascimento: Giovanni de' Medici]
(Florença | 11 de março de 1513 a 1 dezembro de 1521 | 8 anos de pontificado)
Leão XI
[*232.º Papa] [Nasceu em Florença | Pontificado: 1/10 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605: Nome de nascimento: Alessandro de' Medici]
(Florença | 1 de abril de 1605 a 27 de abril de 1605 | morreu por queda de um cavalo; 27 dias de pontificado)
Leão XII
[*252.º Papa] [Nasceu em Monticelli di Genga (Fabriano) | Pontificado: 28 de setembro / 5 de outubro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829: Nome de nascimento: Annibale della Genga]
(Castello della Genga [perto de Spoleto] | 28 de setembro de 1823 a 10 de fevereiro de 1829 | cerca de 6 anos de pontificado)
Leão XIII
[*256.º Papa] [Nasceu em Carpineto Romano| Pontificado: 20 de fevereiro/3 de março de 1878 a 20 de julho de 1903: Nome de nascimento: Vincenzo Gioacchino Pecci]
(Carpineto Romano | 20 de fevereiro de 1878 a 20 de julho de 1903; Morais da Silva refere 20 de junho| 25 anos de pontificado)
2 - ‘Brilhos e trevas’ – os hercúleos trabalhos de ‘Leão’
(Uma nota prévia: evoco a figura mítica de Hércules, transfigurando o mito, que descreve, entre as doze missões (ou trabalhos) de Hércules, precisamente vencer um leão. Aqui, será Leão o protagonista e vencedor…)
2.1. – A luta contra os ‘Átilas’ e os desafios ecuménicos
A reflexão a que, agora, me proponho, nasceu da constatação de que, aos pontificados de Papas de nome Leão, a História permite-nos associar momentos particularmente significativos para os nossos tempos.
Entre estes, destaco, de imediato, três.
Para a relevância do primeiro, evoco a circunstância de vivermos tempos com marcas de beligerância e animosidade (latente e patente: o mundo vive situações de conflito armado em mais de 40 pontos do planeta). Mediaticamente, tem merecido particular destaque o conflito na Ucrânia, resultante de uma invasão de território soberano por um vizinho gigante. A situação pode ser iluminada pelo ocorrido no tempo do pontificado de Leão I, Magno, que, segundo a lenda, terá conseguido travar os avanços, em 452, sobre Roma do sanguinário Átila, ‘o flagelo de Deus’, à frente dos Hunos. Ontem, como hoje, talvez Leão possa fazer deste um legado vivo, travando as hordas que, de forma desumana, avassalam povos e gentes inocentes. Talvez hoje, como ontem, os novos ‘Átilas’ se deixem impressionar pela presença do Sumo Pontífice e recuem na sua decisão de tomar terras alheias.
Os dois seguintes merecem destaque pela atenção que venho dedicando a matérias de natureza ecuménica.
Não é de hoje a minha convicção de que, se nos momentos de rutura, na Igreja, tivesse havido serenidade e abertura disponível para a escuta, talvez o desfecho tivesse sido distinto do que a História veio a reservar-nos.
Entre esses momentos, merecem um regresso da memória os ocorridos em 1054 e 1517. No primeiro destes momentos, ocorre o cisma do Oriente, com que se consuma a separação entre as Igrejas de confissão Ortodoxa e a Igreja Católica. O encontro entre Miguel Cerulário e o Cardeal Humberto (mandatado pelo Papa Leão IX) revela-se agreste e consuma-se uma rutura que vinha, bem certo, a ser preparada desde, dizem os analistas, a queda de Roma, em 476 (e, com ela, do Império Romano do Ocidente). O Papa era, como dito, Leão IX que, porém, morre sem saber do desfecho desse encontro. Talvez, se tivesse recebido a informação, outra fosse a atuação. O seu temperamento conciliador faz crer que pudesse reverter o processo. Mas o que é certo e fica para a História é a consumação de uma rutura que, levantadas as excomunhões recíprocas, em 1966, continua, porém, a exigir caminho de encontro e diálogo. Talvez Leão XIV olhe para este momento da História e queira prosseguir, quem sabe se até uma unidade definitiva, o caminho ecuménico que, desde a Unitatis Redintegratio, tem foros de determinação oficial conciliar.
Um outro Leão, desta feita, já no século XVI, e numerado como décimo, pontifica quando se opera a reforma protestante, em outubro de 1517, sob a liderança de um monge agostinho: Martinho Lutero. Curiosamente, como Leão XIV que tão bem conhece o pensamento do grande Bispo de Hipona que Lutero radicaliza… Mas seria necessário ter-se consumado uma rutura quando, séculos volvidos, ambos (Católicos e Luteranos) reconhecemos que houve responsabilidades repartidas?
Vale a pena, a este propósito, recuperar o que afirma, no Concílio do Vaticano II, o decreto sobre o ecumenismo, ‘Unitatis Redintegratio’, n.º7: «Também das culpas contra a unidade, vale o testemunho de S. João: «Se dissermos que não temos pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós» (1 Jo. 1,10). Por isso, pedimos humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam.»
De Leão X a Leão XIV, quanto caminho já se percorreu, seja no reconhecimento católico do sacerdócio comum dos fiéis ou da centralidade da Palavra de Deus ou, ainda, da legitimidade de se celebrar na língua dos povos, assim como anterioridade e gratuitidade da salvação (nunca, porém, posta em causa, efetivamente, pela teologia católica), seja na constatação protestante da equivocidade na interpretação das indulgências como se estas tivessem sido um ato de simonia ou na verificação histórica da conversão operada no exercício da missão pontifícia! Mas o caminho ainda é longo e exigentemente difícil, mas não poderá parar-se, pois a divisão entre os irmãos cristãos constitui-se como contratestemunho, nestes tempos tão suscetíveis ao fechamento à experiência religiosa e, particularmente, à cristã. A unidade a que apela a Unitatis Redintegratio, que não é nem fusão, nem falso irenismo, nem, também, redutível a encontros marcados no calendário, deve ser um desiderato sempre presente e a Leão XIV poderá constituir-se como marca de um pontífice que, por provir da matriz agostiniana (tão cara ao protestantismo), mais facilmente se disporá a caminhar com os se irmanam com ele nessa ‘paternidade’ comum.
2.2. – Novos ‘monofisismos e monotelismos’
Mas a nossa leitura da história dos Papas de nome ‘Leão’ permite-nos fazer outras verificações e ‘iluminações’.
Regressemos a Leão Magno. Se, no século anterior, o século dos concílios de Niceia e Constantinopla, enfrentaram o desafio do arianismo e, com ele, da redução de Jesus Cristo à mera condição humana, inferior a Deus, (quando muito, adotado por Deus, mas não da Sua natureza, como afirmavam os adocionistas), o século V depara-se com um novo desafio, de sentido contrário. Eutiques, monge de Constantinopla, defende a redução da condição de Jesus Cristo a uma só natureza, a divina, que funde em si a natureza humana.
Leão Magno, perante este desafio, redige a ‘Epistola Dogmatica’ com que responde ao monofisismo de Eutiques, que, porém, mobiliza o imperador no Oriente, para que convoque um sínodo, em Éfeso, que vem a ser rejeitado como heterodoxo, sínodo em que foi recusada a carta do Papa. Leão Magno qualifica o ‘sínodo como um latrocínio’, criando-se um período de alguma tensão entre Roma e Constantinopla (sublinhe-se que ainda estamos longe de 1054, data do cisma do Oriente). O imperador morre, abruptamente, e a irmã, Pulquéria, sucede-lhe, regressando à fidelidade a Roma e sugere ao Papa a convocação de um Concílio que vem a concretizar-se em Calcedónia, em 451, onde fica sublinhada a dupla natureza (humana e divina) de Jesus Cristo, contra a tentação monofisita de o reduzir (neste caso) à natureza divina.
O desafio monofisita é revisitado e condenado, já no século VII, por ocasião do Papa Leão II, que sucede a S. Agatão, em cujo pontificado ocorre o III concílio de Constantinopla que condena o monotelismo. O monotelismo era uma espécie de tentativa de revisitação do que ‘sobrara’ do monofisismo: este fora condenado, mas os monotelitas defendiam que havendo duas naturezas em Jesus Cristo, só poderia haver uma vontade: a divina. Em Constantinopla, evidenciava-se que, a ser assim, a afirmação de que, na pessoa de Jesus Cristo, havia duas naturezas, ficava sem sustentação. Não passava de afirmação vazia. O monotelismo saía, assim, derrotado.
Ontem, como hoje, o pêndulo da leitura cristológica ora pende para a exacerbação humana (reduzindo-o a um ‘herói’ meramente humana), ora pende para a exacerbação divina (recusando, entre outras coisas, que tenha sofrido ou que, inclusive, tenha morrido, reduzindo a sua morte a uma aparência de falecimento. Leão XIV tem grandes desafios, nesta matéria. Um e outro movimento do pêndulo são observáveis, nestes tempos. Então, como hoje, a sedução de reduzir o que somos à nossa ‘alma’, ao nosso ‘pensamento’, ao ‘género que construímos na nossa mente, como se não nos pertencesse a condição corpórea’ são outros ‘monofisismos’ com que Leão terá de se defrontar…
2.3. Também as sombras falam da luz…
Ao pontificado de Leão III podemos ir buscar duas notas de reflexão muito oportunas[4]. É no tempo de Leão III que é coroado, em 25 de dezembro de 800, o imperador Carlos Magno. Muitos recordarão deste momento a marca que se prolongará, na história, com o sacro império romano-germânico: a de uma relação, nem sempre fácil e nem sempre equilibrada, entre o poder religioso e o poder político. Os relatos registam, porém, que Leão III conseguiu um equilíbrio de respeito e mútua compreensão que nem sempre se manteve, ao longo da história. E, da parte do imperador, se é certo que, em alguns momentos (como em 798, em que insta Leão III a convocar um concílio para condenar o adocionismo do bispo de Urgel) o imperador mostra querer exceder os seus limites e intrometer-se nos assuntos do âmbito eclesial, Leão III revela capacidade de assegurar a independência da Igreja, assim como a legitima separação do âmbito político. A cooperação e respeito recíprocos são desafios oportunos, nestes tempos de, por um lado, ‘laicismos’ e ‘indiferentismos’ conflituais ou, por outro, de promiscuidades que desrespeitam a legitimação separação desejada por Jesus, no seu ‘dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’. Sinais interessantes e revisitáveis, permanentemente.
Do mesmo modo, merece atenção a segunda marca a destacar neste pontificado. Apesar de insistentemente, ter sido persuadido a incluir no credo a referência ao Filioque (o Espirito procede do Pai e do Filho), Leão III resiste, não porque duvidasse da legitimidade em que tal ocorresse, mas para preservar a unidade com as igrejas orientais, para quem no credo se referia que ‘o Espírito Santo provém do Pai pelo Filho’. Esta referência será introduzida apenas dois séculos depois, já na iminência do cisma do Oriente, por Bento VIII. A prudência ‘ecuménica’ (avanta la lettre, bem certo; o cisma do oriente e a rutura com a Ortodoxia só ocorre em 1054) é uma marca merecedora de replicação…
Do pontificado de Leão IV, valerá a pena destacar um momento particularmente significativo. Perante o perigo de invasão de Roma pelos árabes, Leão IV manda edificar as muralhas a que se conferiu o nome que o homenageia - a cidade leonina -, cercada pelas muralhas concluídas em 852, e inauguradas numa cerimónia em que ‘o Papa, bispos, clero e monges percorrem, descalços, o circuito em procissão de penitência’[5]. Os tempos eram outros. A defesa do cristianismo exigia muralhas. Hoje, a relação é feita de encontros e não de conflitos. Aos então invasores, hoje deveremos considerar irmãos. E são-no, de facto. Irmãos pela fé do mesmo patriarca, o pai Abraão. Mas o caminho deverá fazer-se nos dois sentidos: de irmãos para irmãos. Nos tempos de Leão IV, na península Ibérica, recrudesceram as condições de vida para os cristãos. A conversão forçada fazia-se a troco da vida ou do decepar de mãos e pés. Ainda hoje, no mundo, continuam a repetir-se esses modelos.
Do lado cristão, a história está aprendida: a um irmão não se lhe corta a mão; não se lhe fere o coração. Estende-se-lhe um abraço! Poderão cair as muralhas com que se teve de defender, outrora, a fé?
Desafios para um Leão que já não se obrigue a proteger-se do medo e esconder-se sob a defesa de grossas muralhas.
De Leão V, VI, VII e VIII deveremos guardar uma memória e um desejo: o século em que pontificaram mostra-nos o que jamais deveremos repetir, na Igreja. Estes pontificados enquadram-se no chamado «século de ferro» da Igreja. Um período sombrio, marcado por lutas de poder. O caso de Leão V é particularmente ilustrativo deste retrato. Tem um pontificado curtíssimo, e, ainda que sendo retratado como um homem piedoso, vê-se envolvido em lutas de poder em que sucumbe aos desmandos de um tal ‘Cristóvão’ ou ‘Cristóforo’ (a grafia diverge, de acordo com as fontes), que pretende ocupar a cátedra de Pedro, sucumbindo este mesmo à ação de um outro pretendente. Tempos verdadeiramente escuros, a recordar, para que jamais os repitamos. Terá sido, em toda a história cristã, o século mais manchado pela decadência humana. Em cerca de um século (entre 891 e 1003), pontificaram mais de 30 Papas, muitos deles por períodos extremamente curtos (de meses ou escassos anos).
Mas, como sempre, na história, os períodos de sombras são, também, períodos em que emergem luzeiros. Este é o século em que se prepara, no pontificado de Leão V, a importante reforma de Cluny, que vem a ter um importante impulso no pontificado de Leão VII.
É de um destes Papas a situação rara de ser eleito um leigo que, para poder exercer a missão de Bispo de Roma, recebe as diversas ordens no mesmo dia, sendo a sua condição de Papa legítimo só verificável após a morte do seu antecessor, João XII. Um período de grande desordem que nos cabe manter vivo, na nossa mente, para que, como fez S. João Paulo II, possamos fazer a ‘purificação da memória’.
Revisitar este tempo deve ser motivo de regresso à consciência de existir um modo de ser Igreja que não queremos repetir: aquele em que ser ‘ministro’ não foi entendido como ‘serviço’, mas como poder que se pretende possuir e manter sem limites. O verdadeiro poder da Igreja está em servir à maneira do Seu Mestre. O século de ferro esqueceu-o! Temos, por isso, de o lembrar. E lembrá-lo será missão maior de um Papa Leão que, no sombrio século facilmente oxidável, pode encontrar, nos lampejos das reformas monásticas sinais maiores para um agir perante as sombras que, também, hoje, se abatem sobre a Igreja, na forma de ‘abusos’ ou de ‘excessos’… Então, como hoje, cabe refontalizar, regressar à Fonte, ao agir do Mestre humilde e servo, Aquele que primeiro desceu (kenoticamente) para nos elevar. Mas não há elevação sem o reconhecimento da fragilidade e fraqueza…
De Leão IX e X já abordámos os principais desafios, em passo anterior, sendo que, de Leão XI há a registar tratar-se de um pontificado de escassa duração, interrompido que foi por fatal acidente equestre do Pontífice.
Tomemos, por isso, em mãos, a análise de desafios que dimanam do pontificado de Leão XII. Eleito como ‘um Papa cuja caridade, vasta como o mundo, atraísse os mais afastados e tocasse os mais rebeldes e soubesse preservar, curar e conciliar’[6], revela-se muito atento aos desafios de então, seja na forma de indiferentismo religiosa, materialismo, racionalismo e ocultismo, desafios que, ontem como hoje, pedem atenção e criatividade de resposta. Para tal, reforçou a importância da formação do clero e denunciou a ação das sociedades secretas, o que lhe rendeu dissabores e oposição e contribui para a leitura pouco favorável com que é abordado o seu pontificado. A leitura atenta do seu pontificado deverá reter a precisão do diagnóstico, mas a inabilidade na resposta, exigindo-se, hoje, maior criatividade e originalidade, capaz de tornar eficaz a ação sem que a rudeza dos meios iniba a possibilidade do sucesso. Um desafio a que, em tempos de comunicação, se saiba ser eficaz não só nos objetivos, mas também nos meios a utilizar.
Para a leitura dos desafios decorrentes do Pontificado de Leão XIII, remetemos para o nosso artigo «o sinal de ‘Leão’», sem que tal iniba de acrescentar, porém, uma nota complementar. Leão XIII percebe que deve escolher, na relação com o mundo, um modo de atuar distinto do seu antecessor, Pio IX. Este escolhera a via da confrontação, de que o «Syllabus» é sinal particularmente ilustrativo. Leão XIII opta pela via do diálogo e da diplomacia, de que são expressivas as melhoras nas relações com diversas nações com quem estas se tinham degradado: Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, França, países da América Latina, etc[7].
É, também, com Leão XIII que ganha particular impulso o estudo da obra de S. Tomás (começa a organizar-se a edição crítica das suas obras, o que ainda não está terminado) e a criação de escolas e institutos para o seu estudo, e, em coerência, a adoção de medidas para uma positiva relação entre ciência e religião, merecendo-lhe atenção a reorganização do observatório astronómico do Vaticano.
É um Papa atento aos desafios efetivos do mundo. Posiciona-se, em relação ao laicismo, à crise decorrente da revolução industrial, à escravatura, que repudia, às respostas dadas perante os desafios sociais, demarcando-se de perspetivas coletivistas ou liberais. Os extremos não se lhe afiguram lugar de virtude…
É, não só, certeiro nos diagnósticos, mas eficaz nas respostas. Um Papa, cuja atenção aos desafios dos tempos se consubstancia em 86 encíclicas, 24 cartas apostólicas, 120 cartas, etc., evidenciando uma atitude diligente e preocupada que, só por si, se constitui como desafio ‘leonino’.
Os tempos, de ontem e de hoje, pedem atitude humilde como cordeiro, mas firme como leão…
[1] Michael Walsh, Dicionário de Papas, Lisboa, Edições 70, 2007.
[2] Manuel Evangelista dos Santos Júnior, Os Pontífices, São Paulo, Edições Loyola, 2001.
[3] Heitor Morais da Silva, S.J., História dos Papas: luzes e sombras, Braga, Editorial A.O., 1991.
[4] Cfr. Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, pp. 112-114.
[5] Ibidem, p. 120.
[6] Segundo Heitor Morais da Silva, História dos Papas: luzes e sombras, p. 313.
[7] Cfr., Ibidem, p. 325.