Luís Manuel P. Silva e João José da S. P. Macedo
Utopia
e esperança não coincidem, no seu significado, como conceitos, como
‘movimentos’ antropológicos. A utopia (termo cunhado por S. Tomás Moro, no seu
célebre livro de 1516, cujo título vale a pena aqui reproduzir - Libellus vere
aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque
nova insula Utopia – e em que o protagonista é um português de nome Rafael
Hitlodeu) é um movimento do sujeito em direção ao futuro. O sujeito, na utopia,
gera o sonho de um outro futuro, de um outro mundo. O sujeito da utopia, cedo
ou tarde, descobre, porém, que é o criador do sonho e, à ilusão, sente suceder
a desilusão.
Na
esperança, o movimento tem o sentido contrário: é o futuro que se antecipa no
presente. O futuro habita o presente e, de forma proléptica (como recorda,
finamente, o teólogo alemão W. Pannenberg), antecipa, no agora, o sentido
último. Não é o sujeito que cria a esperança: é tomado por ela que o
transcende.
Pannenberg
vê, nos inúmeros pequenos ‘lampejos’ (o termo é meu…) de sentido – na
linguagem, nas manifestações que suscitam espanto e admiração, nas inúmeras
circunstâncias em que somos invadidos por expressões de simbolismo, etc. – o
antecipar do sentido último. Entre esses assomos de sentido nos escombros da
história, o ‘clarão’ maior é, bem certo, o acontecimento Crístico. No agora da
História, antecipou-se, de forma máxima, o sentido último da história que
continua a desenrolar-se, já não sem rumo, mas vislumbrando, nessa antecipação,
que o seu caminhar não é um acaso, um errar, um peregrinar sem horizonte.
Esta
síntese permite-nos constatar que ao sujeito imerso na lama do caminho
histórico, é possível, nos pequenos fogachos de sentido, ir buscar presença
desse sentido maior que neles se antecipa. Os sujeitos humanos podem, assim, à
maneira dos veículos híbridos que, na extinção de uma fonte de energia, podem
socorrer-se de uma outra, procurar outros e outros sinais, sabendo que em
nenhum deles se esgota a fonte definitiva de que eles não são os criadores.
Essa fonte transcende-os, supera-os, ainda que antecipando-se neles e
deixando-se vislumbrar na sua efemeridade.
Sem,
porém, a segurança que nos vem da experiência crística da superação da morte
pela ressurreição de Jesus Cristo, estes lampejos de sentido nunca passariam de
sinais utópicos, vulneráveis à leitura de que poderiam não ser mais do que a
expressão de um poderoso desejo humano.
Essa
ambiguidade é, aliás, observável no modo como os gregos - para quem ‘esperança’
se dizia com ‘elpís, elpídos’ (donde criamos a palavra ‘elpidologia’) – olhavam
para a esperança. No mito de Pandora, pela visão de Hesíodo[1], esta
abre o vaso onde estão todos os males, ficando, no seu fundo, apenas a
‘esperança’. Ora, a esperança estava no vaso dos males. Ela é entendida como um
mal, talvez por, ao alimentar o desejo de um futuro diferente, nos poder fazer
sonhar para além do que é possível concretizar.
Essa
ambiguidade desvanece-se com o cristianismo. A esperança tem um fundamento
supra-subjetivo, não como resultado de um desejo, mas como manifestação
subjetiva (no sujeito), de uma realidade antecipada. Gera, por isso, confiança
e supera o medo. Não será, aliás, fortuito que uma das mais frequentes afirmações
neotestamentárias seja ‘não temais’ (perto de cem vezes).
E,
onde se supera o medo, habita a liberdade, uma outra condição de que toda a
tradição cristã dá eco e vinca como manifestação de se ser habitado pelo amanhã
antecipado.
Onde
há esperança, não há medo, há liberdade.
Uma
autêntica elpidologia (de ‘esperança’) cria os fundamentos para uma sólida
eleuterologia (de ‘liberdade’).
[1] Sigo a versão descrita por Pierre Grimal, em Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, p. 353.