Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Maria Margarida Teixeira, O que quero dizer ao morrer, Braga, Editorial AO, 2024.
Há autores que, pela densidade das palavras com que se fazem as suas obras, gostaríamos de ter conhecido antes de os conhecermos como autores da sua obra. De alguém luminoso nos falam as obras que deixam.
Não conheço Maria Margarida Teixeira, mas a autora que conheci, em ‘O que quero dizer ao morrer’, fala-me de uma pessoa brilhante, que irradia luminosidade em seu redor.
Maria Margarida Teixeira é médica oncologista. No seu livro, ficamos a saber que é, também, esposa e mãe. Acima de tudo, percebemos quanto de humanidade há no seu ser médica. A pessoa de quem nos falam as palavras escritas no livro que nos faz coabitar, amigo leitor, contemporaneamente, nestas linhas (eu, enquanto escritor, e, enquanto leitor, o caríssimo amigo ou amiga que aceitou percorrer, comigo, esta breve recensão), é alguém que, pela presença, enche de vida e esperança o entardecer das pessoas com quem se cruzou. O que nos conta é mais do que narrativas em terceira pessoa; é um dizer-se no morrer dos outros. As palavras de John Donne ganham um renovado significado ao conhecer-se o que nos conta Maria Margarida Teixeira: os sinos que dobram pelo partir de alguém são sinais do nosso próprio partir. Sem o drama do desespero: antes, com a serenidade da esperança.
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
Há livros que não queríamos acabar, nunca, de ler. Acabar a sua leitura deixa-nos em luto.
Este é um deles. E soma-se ao luto resultante de nos morrer, na última página, o livro que não queríamos deixar, o próprio conteúdo do livro. Fazemos um luto porque o livro termina e fazemos o luto por cada uma das pessoas que Maria Margarida Teixeira nos apresentou e permitiu que acompanhássemos no derradeiro momento.
‘O que quero dizer ao morrer’ é um livro cheio de vida, apesar de nos falar do morrer.
Tem a originalidade que só a vida pode ter. Originalidade que encontramos na própria criatividade do título. ‘O que quero dizer ao morrer’ fala-nos, bem certo, das palavras que queremos que guardem de nós, quando morremos, mas, também, do que significa o nosso próprio morrer e do que, de algum modo, queremos dizer ao personificado momento do morrer. Muito lhe queremos dizer. Mas, principalmente, queremos mostrar-lhe que a sua ‘palavra’ não é a derradeira e definitiva. Por ser um livro de esperança, tudo nele fala da vida, apesar de o cenário ser o da morte e o do morrer.
Curiosamente, apesar de a morte ser ali apresentada como o enquadramento de todas as vidas ali descritas, fala-se, em todo o livro, do ‘morrer’. Nenhum dos ‘protagonistas’ é um ‘entregue’: todos são protagonistas do seu morrer, pela determinação com que acolhem o morrer natural, na ‘hora’.
Não são protagonistas como os que o pretendem ser pela decisão do momento do morrer. Como conta a própria Maria Margarida, em cerca de trinta anos de exercício profissional, só uma pessoa lhe falou de eutanásia, mas ocultando-se, neste seu pedido, o desejo de reencontro com a mãe, com quem se tinha desentendido e cujo amor pensava ter perdido.
Este é, por isso, um livro de humanidade e sobre como pelo modo de vivermos o morrer nos definimos enquanto humanos.
No viver o morrer se define que o morrer é viver. Sem que a autora nunca o refira, pressenti, enquanto um apaixonado pelo pensamento de Viktor Frankl, em cada página deste gigante livro (apesar das suas poucas páginas), a intuição fundamental do criador da logoterapia: aqueles que assentam a sua vida na fé (seja religiosa, explícita ou não) sobrevivem à morte, porque nela fundam a esperança.
Este livro, escrito por uma pessoa cujos pilares assentam na fé cristã, recorda que o humano que somos se distingue pela abertura ao que transcende, ao que está mais além. E daí refulge a luz para iluminar as zonas sombrias do existir.
Leia, meu bom amigo, ‘O que quero dizer ao morrer’. Aqui, vive-se para sempre…
Na mesma página que o autor (citações)
‘Há muita vida no fim de uma vida.’ (p.11)
‘Tudo se manteve inteiro, vivo e inabalável. Por isso, quando a morte por cancro chegou, compreendi por dentro que só o cancro tinha morrido.’ (p. 12)
‘[…] sem estas pessoas, eu seria uma médica muito diferente daquela que sou hoje. Não saberia valorizar como é importante dar tempo à pessoa que está a morrer, nem teria apreendido como pessoas com doença terminal e pessoas moribundas têm ainda, no tempo que lhes resta, momentos para viver, coisas para destinar, palavras para dizer, ideias para ponderar e gestos de afeto a oferecer.’ (p. 12)
‘O meu Tutor lembrava-me apenas isto: - «Nós não temos resposta para todas as interrogações do doente». […] – Deixa, sem pressa, que o doente te mostre o tamanho dos seus problemas, para que tu lhe mostres a grandeza do ato médico, porque quando parece não haver mais nada a fazer é quando tudo há a fazer.’ (p. 17-18)
‘Com o tempo, consegui perceber o que já intuía e aceitar aquilo a que, até àquele momento, eu não tinha conseguido dar voz, nem querido reconhecer. Na vida de uma interna de oncologia há uma diferença entre perguntas sem resposta e perguntas não escutadas!’ (p. 22)
‘Todos aqueles que amam ficam parecidos com Deus e nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos (1Jo 3,14).’ (p. 32)
‘Uma mulher com cancro não «tem» só corpo, mas «é» também o seu próprio corpo.’ (p. 35)
‘[…] há tanto para viver no fim de uma vida!’ (pp. 35-36)
‘Deixei que o seu olhar despenteasse o meu coração.’ (p. 42)
‘Durante a espera, lembre-se que a morte é como um espelho, o que nele vemos desenhado é a dignidade da vida humana’. (p. 46)
‘Certo dia, sentadas na biblioteca da Quinta das Lágrimas, a Mila coloca em cima da mesa um embrulho.
- É para si Margarida, abra.
Abri em silêncio, muito comovida. Um galheteiro de cristal. Fiquei sem palavras.
- Sabe o que significa um galheteiro?
Não respondi.
- Margarida, o galheteiro simboliza o equilíbrio. Azeite e vinagre temperam a vida.’ (p. 98)
‘- Margarida, olhe para mim, isto já não é viver… Porque não me dá a injeção letal?
- A Mila sabe que é uma pessoa muito importante para mim…
Silêncio.
- Eu não consigo dar-lhe uma injeção que eu sei que a vai matar.
Silêncio.
- Não consigo despedir-me de si dessa maneira tão brutal.
- Mas porquê, Margarida? Isto já não é viver…
- Mila, porque é que diz que já não é viver?
- Porque estou aqui deitada, sem fazer nada, não sirvo para nada, só penso, mas não chego a conclusão nenhuma…
- Ah! Afinal havia algo – pensei eu.
- Mila, em que é que pensa?
Silêncio.
- Na minha mãe… - confessou. O seu olhar era triste.
- Porque sente tanta tristeza no seu coração? – perguntei.
- A minha mãe já me trouxe a roupa que eu quero que me vistam, quando morrer… está tudo… é escusado a minha mãe voltar aqui… ela está muito cansada… Ontem discutimos… mandei-a embora…
- Mas a Mila quer voltar a ver a sua mãe antes de morrer?
Silêncio.
- Sim, Margarida.
- Muito bem, eu vou ligar à sua mãe.
E a partir desse momento, a conversa sobre eutanásia acabou.’ (pp. 99-100)
‘Alguns poderão pensar qual era o sentido desta agonia e porque não administrar a injeção. A resposta está na vontade da Mila em continuar a alimentar-se para viver. Na verdade, o seu pedido para morrer depressa escondia um medo terrível: o medo de morrer sozinha, longe da sua mãe. Assim, mas valia morrer rapidamente do que sentir essa dor dilacerante de filha abandonada.’ (p. 101)
‘Sou oncologista e a Mila foi o único pedido de eutanásia em quase trinta anos de prática clínica. Resolvi contar este caso clínico para mostrar ao leitor como os pedidos de eutanásia não são frequentes e para esclarecer como o pedido de eutanásia da Mila não era sinónimo de querer a morte. Imagine, caro leitor, que a injeção letal tinha sido administrada. Certamente, eu teria acertado no alvo errado, porque havia outra coisa que era pedida. A Mila não pedia a morte. O que desejava era o amor da sua mãe.’ (p. 102)
‘[…] permitir a chegada da morte natural é totalmente diferente de dar a morte com uma injeção letal.’ (p. 103)
‘No início deste livro, manifestei a minha crença de que o modo como enfrentamos a morte nos define. Os casos relatados mostram que todas estas pessoas não tiveram e morrer um sofrimento atroz, nem excruciante, nem intolerável. Por isso pergunto: porque é que não tiveram um morrer violento? O que terá, realmente, feito a diferença na doença e na morte destas pessoas? Na minha opinião existiram três fatores determinantes: fé, samaritanos e cuidados de saúde.’ (p. 117)
‘A fé de cada uma destas pessoas foi um raio de luz na escuridão. Mudou tudo. E foi graças a estas pessoas que eu creio que todos temos fé. Creio que todos ao longo da vida temos admiráveis coincidências, encontros felizes, acasos de sorte ou o que lhe queiramos chamar. Eu chamo a estes acontecimentos singulares «instantes de fé». Tecem uma série de redes de reconhecimento e ligação nas profundezas de cada ser humano.’ (p. 119)
‘Todos faríamos bem em fazer da história destas pessoas sementes para o caminho.’ (p. 119)
‘Foram eles [os samaritanos], com a sua amável presença, com as suas palavras serenas, com os seus gestos de ternura, que tornaram a morte do outro não apenas uma história, mas sim uma memória com identidade.’ (pp. 119-120)
‘[…] são cada vez mais os meus doentes com doença oncológica a morrer tragicamente sozinhos. Isto radiografa uma desumanidade cortante, em crescendo no nosso país. […] Contudo, recentemente, em Portugal, surgiram as cidades/comunidades compassivas – uma nova esperança para quem precisa e está só.’ (p. 120-121)
‘Sofrimento intolerável só existe quando ninguém cuida. Por isso, escrever este livro foi a forma que encontrei para partilhar um modo de morrer, pois existem diversas formas de morrer. Eu escolhi contar a morte natural acompanhada por acreditar que vale a pena morrer assim. «Valeu a pena» foram as últimas palavras que eu ouvi do meu pai quando se abandonou à transcendência e, serenamente, se deixou ir. Três palavras de esperança, três sementes para o caminho…’ (p. 122)