Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...
(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)
Alberto Ferreyra*
- Pode lá um lugar chamar-se ‘o que está para além dos limites’?! – Deixou escapar, muito intrigada, M., quando o ti’ Saul, de queixo pousado sobre o seu tosco cajado, lhe explicou o significado do nome daquele lugar.
- Não te admires. Os lugares guardam memórias, guardam lembranças longas e, tantas vezes, duras. É dessas memórias que falam os nomes dos lugares. É dessa memória que fala este lugar: ‘Cogulo’, ‘o que está para além dos limites de todas as medidas’, ‘o que ultrapassa as bordas das rasas’.
- Vejo mistério, no seu olhar, ti’ Saul.
Encostado ao velho fontanário, ti’ Saul parecia perdido no infinito. Parecia não a ouvir.
E continuou.
- Um dia, talvez já ninguém lembre que eu aqui passava os meus dias. Talvez por aqui passem os apressados da vida, sem se aperceberem do que aqui se guarda do mais profundo da vida. Mas ouvirão, sem perceberem, que este é o lugar onde as rasas limpavam os excessos, os excessos com que a vida nos testa os limites. Não saberão que é isso que diz o nome singular que estranharão, na maioria das vezes, sem perguntar o que ele diz. Mas aos que arriscarem perguntar, alguém recordará que aqui habita, ainda, a sabedoria de um Saul.
- Fale, Ti’ Saul! Fale!
O ti’ Saul parecia estar mesmo à espera deste pedido.
Respirou fundo e lançou-se à história.
- Passo os meus dias aqui. Sentado, encostado ao cajado, ouço, entre corridas, os miúdos que parecem desejar muito chegar à escola. Sei que o fazem por divertimento, porque, da escola, não me parece que queiram muito saber… Vão uns atrás dos outros. Só ouço os restos do meu nome, junto à curva em que os vejo desaparecer. Fica o ‘Saul’ a ecoar-me aos ouvidos. De vez em quando, lá para um, porque sabe que sempre tenho no bolso um dos caramelos comprados na loja do Baltasar. – Há quanto tempo já foi para a eternidade! Ficaram os filhos com a loja, mas, até quando?! -. Com quem tenho mais longas conversas é com os abandonados da vida. Os que correm, seguem para diante… São o que erram que aqui se alongam no tempo comigo.
- ‘Alongam no tempo comigo’, ti’ Saul? Que coisa bonita a que acaba de dizer. – Espantou-se M.
- Sim, alongam-se no tempo comigo. É isso que acontece com os que se decidem a conversar comigo. O tempo pára para mim. O tempo pára para eles. Alonga-se, junto.
- E de que falam, Ti’ Saul?
- Quase sempre começamos pelas maleitas da vida para nos decidirmos a enfrentar o que as maleitas mascaram: as cicatrizes do tempo. Pensam, os que correm sem rumo, que devo dormir e fazer deste lugar a minha morada. Moro ali em frente… Naquela janela. É ela a minha morada. Aqui, vejo-me morar e vejo morar na vida os que sentem a vertigem do desespero.
Mas não moro aqui, nesta fonte sempre a jorrar. Quando se abeiram de mim os que erram, vou, com eles, à mina que se esconde atrás de mim.
- Não sabia que havia aqui uma mina. – M. percebia que vinha aí história…
- Chamamos-lhe ‘Mina dos mouros’. Os mouros que, em tempos, por aqui combateram os cristãos e que partiram, deixando, porém, o murmúrio de um dia poderem voltar.
- Poderia ser, então, a ‘mina dos murmúrios’? – Perguntou M. de brilho nos olhos.
Ti’ Saul fez que não ouviu… Mas o silêncio falava.
- Se reparares, a mina tem forma, mas não vês que dela possa sair água.
M. olhou, atentamente. A cabeça assentia e acompanhava a surpresa dos olhos. Não se via que pudesse haver água e que, sequer, pudesse algum dia ter dali saído algo que saciasse sede.
Os olhos de M. eram perguntas.
- Nesta mina, sacia-se uma sede. Uma sede que, se não saciada, nos mata. Atinge o mais íntimo do nosso íntimo. Morremos de não a saciar. Mas não há bilhas nem cântaros, nem forma de dela tirar água…
M. não percebia. O lugar parecia ter a forma de um regaço, mas de água, nem sinal…
Ti’ Saul prosseguiu.
- Um dia, há muitos anos, tendo passado para a escola todos os gaiatos da terra, veio a tia ‘saura, a quem muitos chamavam ‘madrinha’. Conhecia-a bem. Vivia do outro lado da terra, na encosta da santa Quitéria. Uma mulher sofrida. Sempre bondosa. Tinha um olhar brilhante e um sorriso de quem adivinha as dores dos outros sem eles ainda terem ousado dizer que as têm. As cicatrizes da vida mantinham crosta na sua pele. Mas escondia-as. Eram suas. Não tinha de as fazer sentir aos outros. Era assim a tia ‘Saura. Perdera um filho, ainda na flor da idade… Entretanto, o marido. Cuidava dos seus restantes três filhos. Singravam na vida. Mas veio a peste e levou a mulher de um deles. Uma nora amada, muito amada. Dois filhos pediam o colo da mãe precocemente arrancado. O tempo não esperara muito para lhe levar o filho, entretanto enviuvado. Dois netos sem pai nem mãe… Quantas lágrimas chorará uma mãe que vê ser colhido o fruto do seu ventre? Rios de lágrimas!...
Mulher de fé, sentira-se tentada a perguntar a Deus, como Job, onde Se escondia quando lhe morrera o primeiro filho e o marido, e a nora e, agora, o segundo filho, deixando órfãos os seus dois netinhos?!... Vinha, por isso, ali à mina. Àquele lugar onde a rasa desvenda o que excede os limites, o cogulo. – Ah, quantos limites já se excederam na vida daquela mulher! - Vinha murmurar com Deus. A sede de luz, de esperança, de brilho de aurora, fazia-a vir ali. Ali, depositavam-se as grossas lágrimas que, terra dentro, chegariam à mão do Criador de Adão. Aquela entrada de mina em forma de regaço colhia as lágrimas para as levar até ao Oleiro. O barro original empapava-se das águas saídas dos olhos de todas as mães que, antes do tempo, veem os filhos bater à porta do eterno.
M. ouvia, enquanto duas grossas lágrimas desciam, lentamente, pelo seu rosto.
Ti’ Saul prosseguiu.
- Haverá maior dor do que a de uma mãe ou de um pai de cujos braços é levado para sempre um filho? Chamo-lhes ‘alíberas’, aquelas que já não têm filho. Como uma mãe, outrora, junto ao seu filho tratado como rebelde… Devolveram-lho, sim, mas já cadáver. Do lado trespassado, jorrava sangue e água… e quantas lágrimas?! As de todas as mães e pais alíberos. As de todos os filhos órfãos… As de todos os massacrados de ontem, de hoje e de sempre. As dos rostos já sem lágrimas, ressequidos pelo gélido vento da morte.
Ti’ Saul fez um longo silêncio…
M. soluçava.
Ti’ Saul secou-lhe as duas lágrimas com a manga do casaco. Olhou-a, fixamente, e sussurrou-lhe.
- Para os errantes desta vida, chagados e cicatrizados pelo tempo, deve haver sempre um Ti’ Saul que lhes desvende a mina dos mouros, a mina dos murmúrios. Podes sê-lo tu, também?