quinta-feira, janeiro 20, 2011

O que nasceu primeiro: o Estado ou a sociedade?

A interrogação parece distante e teórica. Para muitos, parecerá, mesmo, uma recuperação da redondez da pergunta sobre o ovo ou a galinha. Contudo, não é assim. Da escolha sobre qual a opção que deve ser resposta a esta pergunta resultam visões sobre as funções, direitos e deveres do Estado muito distintas e com consequências profundas nas vidas individuais e colectivas.
Os Estados colectivistas de matriz marxista e os de matriz fascista sempre entenderam que o Estado é prévio, anterior, à sociedade. Sendo assim, ao Estado (seja em nome de um povo pouco menos do abstracto, nos regimes colectivistas, ou em nome do chefe que concentra o ideal nacional) cabia definir os direitos e deveres do cidadão, assim como as suas liberdades.
Por oposição a este modelo, as democracias preconizam que, por a sociedade e, antes mesmo dela, a pessoa, ser detentora de direitos intrínsecos, ao Estado cabe reconhecer e assegurar esses mesmos direitos.
Portugal, ao longo da sua já quase milenária história de sociedade organizada como nação e como Estado, assistiu, em largos momentos à tentação de sucumbir a visões totalitárias que inverteram o sentido da resposta, pervertendo a natureza do Estado e, com essa perversão, a própria sociedade e dignidade das pessoas.
Os tiques totalitários não são longínquos e podem emergir sempre que uma crise mais intensa faz sumir a força dos ideais. Circunstâncias como a que vivemos, em que o pão pode escassear, fazem emergir tentações totalitárias para as quais é preciso estar muito atento. A doutrina social da Igreja, neste tempo que decorreu desde o primeiro grande documento sobre estas matérias, em 1891 (com a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII), vem procurando salvaguardar a necessidade de respeito para com os direitos intrínsecos da pessoa humana e das estruturas intermédias da sociedade. Esta salvaguarda, que ganha honras de princípio doutrinal a partir da Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI, sustentando que, quando uma estrutura mais próxima da sociedade pode assegurar uma resposta, ela não deve ser assumida por uma instância superior, sob pena de poder incorrer em injustiça grave. A este princípio foi atribuída a designação de «subsidiariedade» e é um dos valores estruturantes da organização da União Europeia, como sempre sustentou o grande presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors. Quando o Estado se arvora no direito de substituir, de forma discricionária, a sociedade e as suas iniciativas, mesmo que não tenha o rótulo, está a comportar-se como um Estado Totalitário. Tal tentação pode ser sumida em argumentos de ordem economicista ou de uma suposta igualdade de oportunidades que se comporta como simples fachada ideológica, mas não corresponderá, efectivamente, a uma prática justa.
Vale a pena recordar as palavras de alguém que viveu subjugado a um regime que se considerava detentor de todo o saber e do conhecimento do que era melhor para os cidadãos: Vaclav Havel, que foi vítima do regime colectivista leninista-estalinista, mas que, após a queda da URSS e da influência deste regime nos países do Pacto de Varsóvia, veio a tornar-se o primeiro presidente da República Checa, em 1992. Diz Vaclav Havel, num discurso de 1990, pouco tempo após a queda do muro de Berlim e do regime a ele associado:
«O regime anterior – armado com a sua ideologia arrogante e intolerante – reduzia o homem a uma força de produção e a natureza a um instrumento de produção, pondo assim em causa a própria substância e as relações entre ambos, e reduzindo pessoas talentosas e autónomas, que trabalhavam com competência no próprio país, a porcas e parafusos de uma máquina monstruosa, barulhenta e mal-cheirosa, cujo verdadeiro sentido ninguém compreende bem. […] Não nos deixemos enganar: nem o melhor governo do mundo, nem o melhor parlamento e o melhor presidente conseguem fazer grande coisa sozinhos. Seria um erro esperar que fossem eles a resolver tudo. A liberdade e a democracia exigem participação, e portanto responsabilizam-nos a todos.»
O perigo está à espreita: importa estar atento e não seguir a voz das sereias que encantam aos ouvidos mais distraídos.

Luís Silva - professor

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