sexta-feira, setembro 15, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Cidadãos entre duas cidades

 Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)



Troia e Ítaca… Os dois polos de uma tensão terrena. Uma tensão sempre resolvida, ao longo da história, com a derrota de uns e a vitória de outros. Assim foi… Assim parece que será, sempre.

Mas assim tem de ser para sempre?

A viagem de Ulisses prolonga-se, ficcionadamente, na mente dos nossos leitores, até um momento da história humana em que a interrogação foi enfrentada, com detenção: 24 de agosto de 410 d.C..

Roma, a cidade eterna, é saqueada. (66 anos depois, será, mesmo, tomada…)

Alarico, o chefe dos visigodos, toma de assalto Roma e provoca um abalo, que volvidos mais de 1600 anos, poderemos equiparar (para que a comparação crie o modelo de constaste, diante do qual teremos de acrescentar densidade…) ao abalo provocado pelo 11 de setembro de 2001.

Como é possível que Roma tenha sido saqueada? Abandonaram-na os deuses?

(Remeto para a leitura do inteligente livro de Miguel Morgado, ‘Guerra, império e democracia’ [Pub. D. Quixote, 2023] a recolha dos detalhes e do alcance deste evento…)

Perante este evento demolidor, prontamente é recuperada a tese de que aos cristãos se deve esta derrota, pois o seu descomprometimento com a ‘política’ romana e a sua indisponibilidade para a divinizar pareceram suavizar o império e favorecer o abandono de Roma por parte dos deuses.

Esta acusação não é de hoje (o hoje de 410 d.C.), mas foi revitalizada com este susto.

A circunstância foi o pretexto para a escrita de uma das mais relevantes obras de toda a história da literatura ocidental (disponibilizada, em pdf, aos leitores portugueses em edição rigorosa repetidamente publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian: https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-de-deus-i/), por um genial cristão que bem conhecia os meandros do paganismo em que ele mesmo se movera antes de conhecer o cristianismo. ‘A cidade de Deus’, da pena de Santo Agostinho, uma extensa obra emerge como resposta a um duplo desafio, recordado por Miguel Morgado, na obra acima referida: «[…] agora, que Roma mostrava as suas terríveis vulnerabilidades perante bandos de bárbaros, a perplexidade era grande. Roma não tinha qualquer missão divina. Caso contrário, Deus não a teria deixado cair. Ou então, blasfémia das blasfémias, o Deus que substituíra os deuses afinal não o era. Agostinho teve de desarmar ambos os lados, tantos os dependentes da tese de que Roma era o agente político imprescindível da redenção do mundo como os que viam na queda de Roma cristianizada a demonstração de que o Deus dos cristãos era um ídolo de barro incapaz de proteger a sua capital.» (pp. 211-212)

Uma leitura atenta desta síntese perceberá as questões revisitadas, vez após vez, na história destes dois mil anos de cristianismo: a tentação da absolutização de um modelo político e a sedução da fuga do mundo.

Agostinho encontrou uma via genial, sistematizando a leitura fina que o cristianismo trouxera e de que a célebre ‘carta a Diogneto’ era um exemplo a recordar: «Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social. Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» (https://www.snpcultura.org/pedras_angulares_a_diogneto.html)

Na síntese de Agostinho, recorda-se que «[…] estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas.» (A cidade de Deus, volume I, livro I, capítulo XXXV). No capítulo IV do livro XIV, Santo Agostinho define a natureza das duas cidades: «existem duas cidades diferentes e contrárias- porque uns vivem em conformidade com a carne e outros em conformidade com o espírito; ou ainda do mesmo modo se pode dizer que uns vivem em conformidade com o homem, e outros em conformidade com Deus.» E, mais adiante, no capítulo XXVIII do livro XIV (II volume da edição da FCG), precisa: «Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus - a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si - a celeste.»

Recuperando o paralelismo que temos vindo a construir, ao longo desta rubrica ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’, poderemos constatar que, se Ulisses sossegará quando chegar a Ítaca, uma cidade geograficamente localizável, no caso do cristão, essa ‘tensão’ nunca será definitivamente resolvida, neste tempo e nesta ‘geografia’. E essa é a genialidade de Santo Agostinho: assegurar-nos a certeza de que as duas cidades convivem, coexistem, na história, faz-nos sempre cidadãos comprometidos, mas como peregrinos (para utilizar a terminologia da carta a Diogneto). É, por isso, infundada a acusação dos pagãos de que o (suposto) descomprometimento político dos cristãos tenha sido o responsável pela queda de Roma, mas sim a coincidência de Roma com a cidade terrestre, a cidade do ‘amor a si próprio’. A causa da queda de Roma está na sua própria condição decadente e não no amor ao outro, proposto pelo cristianismo. A não divinização da cidade terrena ‘Roma’ não é, por isso, expressão de uma falta de compromisso político, pois, como defende Santo Agostinho, ‘o bom cristão é pura e simplesmente o melhor dos cidadãos’ (Miguel Morgado, p. 212). É, antes, a assunção de que a cidade terrena não é, ainda, a cidade definitiva. Na cidade terrena transparece (mesmo que sob muita opacidade) a cidade de Deus se nela se praticar a justiça e o amor ao outro.

A queda de Roma (e as suas perplexidades) continua a latejar no coração do mundo e dos cristãos. A sedução e a tentação de cair para a divinização das novas ‘Romas’ ou para a fuga do mundo por nada nele haver da cidade de Deus continuam vivas como no tempo do bispo de Hipona. E então, como hoje, a consciência de que ser cristão é viver essa tensão de se ser cidadão de duas cidades emergia luminosa e esclarecida perante todos os saques e acusações dos pagãos…

quarta-feira, setembro 06, 2023

In Memoriam | Doutor Pinho Ferreira, um gigante com coração simples

 

Fui aluno do Doutor Pinho Ferreira em dois momentos distintos do meu percurso académico: em Coimbra, no ISET, instituto que funcionava no Seminário da Sagrada Família, entre 1992 e 1996, e no Porto, na Faculdade de Teologia, em 1997-98. Desde a primeira hora, suscitou-me espanto e assombro o contraste entre o distinto professor, que suscitava respeito e um quase temor (era um gigante diante de todos nós…), e o verdadeiro espírito poético de um contemplativo que constatávamos em cada uma das suas aulas. Recordo-me de que, em Coimbra, as aulas começavam sempre com uma improvisada ode à tranquilidade do Seminário, à pureza do ambiente, à melodia natural que se ouvia, em contraste com o bulício da cidade. As suas palavras leves e de grande lirismo (quando não mesmo de humor muito fino – ‘canónico!’ dizíamos) contrastavam com o aspeto aparentemente pesado que o primeiro olhar captava. Fazia-nos sentirmo-nos como que regressados ao Éden…

Quem o via e se fixava no que via errava na avaliação do homem que aquele corpulento andar parecia acompanhar. A lentidão do seu andar não era a do peso de quem não quer ir longe ou de quem não consegue andar, mas a da ponderação de quem sabe que é perdido o andar que não se rege pela verdade. Os seus passos, comedidos e compassados, expressavam o carácter de um professor que nunca deixava nenhum aluno sem resposta, sempre num profundo respeito pela pessoa aprendente. Muito guardei para mim, para o professor que hoje sou, do que observei no Doutor Pinho. Nunca o vi dizer a um aluno que a resposta estava errada: media, com pedagogia, as palavras, de modo a levar o aluno a concluir que errara. Tratava-nos sempre na terceira pessoa. Interpreto-o (porque assim o senti, então!) como franco sinal de respeito por nós. Respeito que é particularmente ilustrado no que sempre ocorria numa determinada aula de direito sacramental em que se discutiriam os impedimentos dirimentes e não dirimentes e em que se definiriam os conceitos de matrimónio ‘rato e consumado’, ‘rato e não consumado’. Em aula determinada desse tema, o Doutor Pinho falaria do ato próprio (a relação sexual) pelo qual se ‘consumaria’ o sacramento (Ouvi, um dia, num casamento, que íamos assistir à consumação do matrimónio. Felizmente, era apenas erro em matérias de direito sacramental por parte do presidente da celebração e não se confirmou o que as palavras faziam prever…). Porque essa aula poderia ferir suscetibilidades, autorizava a ausência a quem pudesse sentir-se perturbado pela descrição (não tenho memória de ninguém faltar, sendo que estou certo de que correspondia a uma estratégia pedagógica feita de um humor inteligente que podemos confirmar todos os que com ele privámos).

Poderá pensar quem não pôde ter a honra de contar com o doutor Pinho por professor que, por tratar de matérias do direito, as abordagens eram fechadas e os assuntos encerrados. Recordo-me de que nos ‘levava pela mão’, através de interrogações, a abrir linhas de reflexão que sempre baseava em argumentos lógicos e coerentes. Assim aconteceu, por exemplo, ao abordar, na mesma cadeira de direito sacramental, a problemática do trabalho pastoral com quem se encontra unido sem ser pelo vínculo do sacramento celebrado em contexto eclesial. Não dava uma resposta. Suscitava uma interrogação: «deverá ser a mesma a abordagem perante quem está apenas ‘junto’ (as ‘uniões de facto’ são posteriores) de quem decidiu casar-se pelo civil?»

A interrogação ficava, antecipando, percebemos hoje, em algumas décadas, as mesmas interrogações da ‘Amoris Laetitia’, sempre sublinhando que o direito é dinâmico e existe para que, respeitando a verdade, se possa criar as condições para que o caminho (que envolve a pessoa toda e toda a pessoa) da salvação seja percorrido.

O Doutor Pinho era, a um primeiro olhar, tímido… possuía a timidez própria dos grandes sábios, sempre preocupados em que a sua participação no mundo seja serviço e respeito pelo outro. O outro era lugar de liberdade, a liberdade que, como homem do Direito, tão bem sabia ser a condição para a realização do humano, mas também marcada pela possibilidade da sua deterioração. Esse foi, provavelmente, um dos seus maiores legados: dizer-nos que a dimensão jurídica da Igreja não é apêndice ou acessória, mas a garantia de que, por ela, o caminho pode ser percorrido por todos, porque todos podem e a todos deve ser garantida condição para a procura da verdade. De outro modo, ficaria entregue à discricionariedade dos poderosos ou dos mais demagogos a reserva dessa procura da Verdade, do próprio Jesus Cristo.

Obrigado, Doutor Pinho. Deus, o único Justo, o guarde junto de Si.

quarta-feira, agosto 09, 2023

A laicidade: uma leitura sem preconceitos

 

A laicidade é uma conquista. Não de hoje, mas fruto de prolongado caminho em que não deu pouco contributo o cristianismo. ‘Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ está, certamente, entre as mais decisivas afirmações para a consolidação da ideia da separação entre a religião e a política. Gogarten, um teólogo nascido em finais do século XIX e que viveu nos dois primeiros terços do século XX, ainda vai mais longe e vê, na conceção da realidade como sendo fruto da criação, a raiz última da laicidade e da secularização, na medida em que a ‘ideia de criação’ sustenta, fundamentalmente, o reconhecimento de que Deus e realidade criada são distintos, tendo esta uma autonomia que permite compreendê-la, no seu funcionamento, a partir das suas próprias condições.

É precisamente por causa desta distinção que resulta de dar a César o que lhe é próprio e a Deus o que lhe é exclusivo, que muitos, entre os quais destaco Zagrebelsky, que foi presidente do Tribunal Constitucional Italiano, defendem que o que é próprio de Deus, como, por exemplo, tirar a vida, deveria ser-lhe reservado, não sendo legítimo que os Estados se reconheçam esse direito… Consequência lógica de uma distinção que, porém, nestas discussões, tende a olhar, apenas, para as conquistas do lado da autonomia do Estado…

Regressemos à questão original que nos leva a esta reflexão: a ideia de que a laicidade é uma conquista.

É-o, de facto, mas importa reconhecer que o seu significado não é unívoco, sendo que pode, mesmo, chegar a ser equívoco.

Vejamos.

 

 

Laicidade: conceito inequívoco?

Enumeremos alguns exemplos de estados que reconhecemos como laicos: Reino Unido, Alemanha, França, Polónia, Portugal, etc….

Vejamos que entre estes cinco países, que reconhecemos como laicos, há cinco visões distintas dessa mesma laicidade.

A Constituição alemã, aprovada em 23 de maio de 1949, no rescaldo da II Guerra Mundial, e recolhendo as lições desta, começa por afirmar, no preâmbulo: «Consciente da sua responsabilidade perante Deus e os homens, movido pela vontade de servir à paz do mundo, como membro com igualdade de direitos de uma Europa unida, o povo alemão, em virtude do seu poder constituinte, outorgou-se a presente Lei Fundamental.» (Sigo a edição publicada aqui: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf). Sublinhe-se a consciência do povo alemão do dever de responsabilidade perante Deus e os homens…

Também a Constituição da República da Polónia se evidencia interessante para a nossa discussão, dado que é aprovada em 1997, após a dura experiência de submissão a um regime coletivista de matriz ateia: «Tendo em conta a existência e o futuro da nossa Pátria, Que recuperou, em 1989, a possibilidade de uma determinação soberana e e democrática do nosso destino, Nós, a nação polonesa - todos os cidadãos da República, Tanto aqueles que acreditam em Deus como fonte da verdade, da justiça, bondade e beleza, Como aqueles que não compartilham tal fé, mas que respeitam os valores universais de outras fontes, Iguais em direitos e obrigações para com o bem comum – a Polónia.» (Sigo a edição publicada aqui: https://jus.com.br/artigos/98104/constituicao-da-polonia-de-1997-revisada-em-2009).

No caso inglês, há que anotar que a laicidade deve ser pensada tendo em conta que há uma religião oficial, sustentada na ideia de que o rei/rainha é, por inerência, chefe da Igreja de Inglaterra. Uma laicidade sui generis… Mas não se duvida da laicidade, de tal modo que o sistema político inglês é, múltiplas vezes, tomado como exemplo e como origem do parlamentarismo moderno…

Já o caso francês deve fazer-nos pensar, pois é explícito na afirmação da laicidade da república francesa, ao dizer, logo no artigo 1º que «A França é uma República indivisível, laica, democrática e social.» (Sigo a edição publicada em https://www.conseil-constitutionnel.fr/sites/default/files/as/root/bank_mm/portugais/constitution_portugais.pdf)

Na nossa perspetiva, a dificuldade que a república francesa tem em lidar com o fenómeno religioso nasce, precisamente, deste imbróglio que lhe é criado pela existência, na lei fundamental, de uma afirmação que parecendo inequívoca, é, efetivamente, muito equívoca. Estamos convencidos de que a França tem um problema religioso que, felizmente, hoje, não existe em Portugal, precisamente pelos constrangimentos que a afirmação de que a república francesa é laica lhe cria. O amplo espectro que o conceito de laicidade permite ter gera, facilmente, tiques laicistas que tornam o Estado indiferente à realidade religiosa, sumindo sob a capa de ‘inexistente’ um âmbito da vida dos cidadãos que poderia ser catalisador de consolidação dos liames sociais.

 

O caso português

Comparemos com o caso português, em que os constituintes de 1976 tiveram o cuidado de omitir a palavra ‘laico/a’, ‘laicidade’ para definir a relação entre o Estado e a Religião, sendo que é necessário esperar pelo artigo 41º para que se descreva esta relação. E diz-se, aí, após enunciar o dever de respeito pela liberdade de consciência, de religião e de culto por ser inviolável, (o que, nos pontos seguintes do mesmo artigo 41º é descrito com mais detalhe), que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.» (Artigo 41º, número 4), evidenciando-se que o acento está no respeito pela liberdade religiosa e pela independência das Igrejas em relação ao Estado e não, como se presume da constituição francesa, numa visão laicista do Estado, que o afirma como indiferente e neutro em relação à realidade religiosa.

Sublinho.

A constituição da república portuguesa nunca afirma que o Estado é ‘laico’ ou que a sua matriz seja a ‘laicidade’. Tudo isso são aplicações terminológicas legítimas, mas inexistentes, na lei fundamental. O que ali se faz é a descrição. E percebe-se que a descrição tem um ponto de partida: o respeito pela liberdade religiosa e não a indiferença perante a religião.

Com esta constatação, cabe reconhecer que a III República conseguiu, nesta matéria, um equilíbrio que é fácil perceber que se deve à sábia leitura do que ocorrera, nas I e II repúblicas, em que o pêndulo se desequilibrou, seja, na primeira, para o lado do silenciamento da religião, seja, na segunda, para um favorecimento pouco disponível para o acolhimento da diversidade religiosa.

Vale a pena recordar, a este propósito, uma constatação que já fizera Alexis de Tocqueville ao analisar a democracia americana e ao compará-la com a realidade europeia, em que evidenciava que a laicidade era, ali, entendida como a sã e fecunda relação, feita de forma proporcionada (isto é, respeitando a representatividade sociológica das religiões), entre o Estado e a religião, enquanto, na Europa, por influência da França e da sua revolução, se entendia a laicidade como a indiferença e o silenciamento para o âmbito privado da realidade religiosa, com enormes custos para a sociedade.

Somemos a esta constatação uma outra que não nos parece despicienda.

O entendimento da laicidade no registo da revolução francesa (que os analistas entendem como sendo um ‘laicismo’, em vez de uma laicidade positiva) pressupõe um entendimento sobre o que é o Estado e a sua relação com a sociedade que deverá merecer atenção detida. Repare-se que o laicismo presume que, antes de tudo, está o Estado. Ele é fim em si mesmo. Aliás, isso era notório no entendimento que mostraram ter os revolucionários franceses, entre os quais Robespierre se destacou, como líder que afirmava que «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares, alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724). O Estado era, neste entendimento, anterior à própria sociedade, cabendo a esta servi-lo e, não, como será fácil concluir, ser o Estado a servir as pessoas, a sociedade e a justiça.

 

Um Estado que serve ou um Estado que se serve?

Não nos parece que seja aquele o entendimento que pode presumir-se da leitura da nossa constituição. O Estado é meio, neste caso, organização da sociedade em prol do fim último que se configura nos pressupostos e fins enunciados logo no artigo 1º: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.» Presumir deste artigo que o Estado seja fim em si mesmo é enviesar a leitura. Ora, como pode o Estado ser indiferente ao que configura a própria sociedade que se propõe servir e construir como «livre, justa e solidária»? Como pode ser indiferente à religião, se mais de 90% se afirmam religiosos, sendo que mais de 80% se dizem católicos? Mas é o que defendem os laicistas… Felizmente, o povo ainda lê a constituição e não segue o que os laicistas pretendem impor…

Caberá, aliás, enfrentar a pergunta sobre se a política, que tem sido sustentada, tão frequentemente, na ‘fake new’ de que a constituição afirme que o ‘estado é laico’, serve o povo ou é entendida como fim em si mesma… Valerá, aliás, ir ainda mais longe e interrogar onde estão os crentes, no mundo da política? Se o povo se diz como sendo religioso em mais de 90% dos casos, como pode ser o parlamento constituído, na sua maioria, por não crentes que, naturalmente, porque não vivem o que a grande maioria vivencia como importante, relativizam a experiência dos outros? Devemos, porém, reconhecer que, apesar desta composição desproporcionada, o parlamento tem sabido evitar os tiques laicistas, mas é uma segurança conjuntural. Quem garante que, por uma espécie de ‘golpe palaciano’, a maioria que não representa a maioria nunca cederá à tentação de afirmar que, para o Estado português, a religião é algo que não existe?

Não passa de interrogações, mas que considero legítimas… A frequência da interrogação sobre se a laicidade não deveria entender-se como a indiferença perante a religião obriga a redobrada atenção, em nome de uma das mais importantes e determinantes conquistas da humanidade: a laicidade, entendida como o respeito pela liberdade religiosa que se faz diálogo entre as diversidades de leitura (em que a religiosa é tão legítima como as que não o são, mas, no caso português, sociologicamente mais expressiva…), e não como indiferença perante uma dessas leituras. Os tempos são de diálogo e cooperação, não já de obscurantismo laicista.

domingo, agosto 06, 2023

As JMJ e a via da beleza (via pulchritudinis)


Os ecos das JMJ ecoam no coração de todos os que participaram, ao longe ou perto! Um dos maiores erros na abordagem de tudo o que foi ali vivido seria reduzir à interrogação sobre ‘para quem eram as mensagens do Papa Francisco’, em busca de um destinatário que aliviasse a dor da transformação que elas exigem de quem as ouve.

Mas, de facto, as palavras de Francisco não são, apenas, para outros (sê-lo-ão, certamente, e por isso, podem conduzir a mudanças profundas), mas, principalmente, para os que ousarem ouvi-las como sendo para si mesmos.

Eu estou nessa disposição e muitas interrogações me têm 'assaltado', ao longo destes dias. Não como uma tomada de bens sem consentimento, mas como um 'assalto' que consinto que conduza ao meu próprio despojamento.

Como presidente da comissão diocesana da cultura, olho para tudo o que foi vivido e vejo o poder da beleza, a via pulchritudinis, em ação.

Estas JMJ foram, para além de tudo, lugares de beleza. ‘Fazei das vossas vidas lugares de beleza’, recordou, já em outros momentos, em visita a Portugal, um dos sucessores de Pedro, repercutindo como, perante o caos, Deus é o que ordena e organiza (faz, do 'caos', 'cosmos'), como, perante o que cinde e divide (em grego, ‘diabolos’), Deus é o que une (é ‘símbolo’), como, perante o decadente e informe, Deus é o Belo e a fonte da beleza. Aliás, assim começam os textos sagrados: por dizer-nos que o poder criador e ‘cósmico’ de Deus se confirma nas palavras do narrador que nos dá consciência de que o Criador vê que tudo era bom… Uma bondade que começa por ser expressa na beleza e harmonia com que o mundo se afigura.

A dança, a pintura e o canto, a música e as formas da arquitetura dos espaços, as próprias palavras, foram cuidados, nestas JMJ, para proporcionar caminho para o sublime, contrariando a ideia de uma juventude satisfeita com o caos e o ruído.

A música, dirigida por quem se percebia viver o que expressava musicalmente, a maestrina Joana Carneiro, evocou o que de melhor a história da música foi proporcionando à humanidade em resultado deste encontro entre a fé e a arte.

Ao ouvi-la, lembrei, bem certo, os ecos da longa e profunda história da música sacra, que terá, provavelmente, em Palestrina, em Bach, em Mozart, em Allegri, em Buxtehude, etc. alguns dos seus expoentes máximos, cuja memória poderá, porém, gerar a impressão de uma nascente que já secou.

Este encontro continua fecundo. Que o digam nomes como Arvo Pärt, Henrik Odegaard, Penderecki, Messiaen, Gubaidulina, Carrapatoso, etc., expressões contemporâneas da ininterrupta relação entre religião e arte e, em particular, entre o cristianismo e a cultura.

Do mesmo modo, poderíamos olhar para outros vetores de fecundidade deste encontro, como, por exemplo, para a literatura, com Chesterton, C. S. Lewis, Tolkien, ou, para a arquitetura, com Gaudí, ou, para a escultura, em Portugal, com Paulo Neves, ou para... ou para...

As JMJ mostraram ao mundo que a busca do sublime não tem de ser iconoclasta e que a fé não tem de temer a cultura, mas a sublimizá-la, levá-la a recuperar a consciência de que nos deve encaminhar em direção ao sublime que nos sara as feridas que a vida, tantas vezes caótica, nos abre na ‘pele’ da alma.

Ouço, enquanto escrevo, ‘Meditações sobre o banquete de Santa Madalena em Nidaros’, de Henrik Odegaard, compositor que tem dedicado parte significativa da sua obra à música sacra.

A escuta desta obra, em que se sente a densidade do encontro entre o gregoriano e o contemporâneo, serve-me, não apenas para deleite estético, mas, por evocar a figura de Santa Maria Madalena, faz reavivar em mim a memória de uma obra escultórica dedicada a esta santa e que é particularmente grata ao Papa Francisco. Refiro-me a um capitel da Igreja de Santa Madalena (século XI), em Vezelay, cuja foto repousa na secretária do sumo Pontífice.

E o que retrata esta foto, este capitel, que serve de ilustração a este artigo?

Retrata, à esquerda, um enforcado, e à direita, alguém que o transporta aos ombros. Neste densa cena, descreve-se, pela arte, aquela que terá sido mensagem fundamental do Papa Francisco, ao longo destes dias de JMJ.

O enforcado é Judas Iscariotes, arrependido. À direita, retrata-se Jesus que o leva aos ombros.

A misericórdia de Deus é, aqui, densamente representada numa cena que nos comove.

O ‘todos, todos, todos’ que o Papa Francisco pediu aos jovens que repetissem e que continua a ecoar aos nossos ouvidos, encontra suporte na mais longa e profunda história da teologia e da arte cristãs: seremos julgados no encontro com o Amor, diante do qual, como em tempos me recordava uma aluna de escatologia, baixaremos os olhos por nos sentirmos impuros diante do Amor de Deus. Não será Deus a julgar-nos, mas sim nós mesmos a ‘julgarmo-nos’ perante o Amor que Deus é.

Recordo, a este propósito, o que me disse, nos idos de 90, o saudoso sr. D. Manuel de Almeida Trindade, Bispo emérito de Aveiro, numa das várias conversas que tive o privilégio de partilhar com ele, no Seminário de Coimbra, que frequentei até 1996: 'repara, Luís, como a Igreja sempre nos disse que havia santos que podíamos imitar e invocar, mas nunca ousou dizer de ninguém que estaria em Inferno, por acreditar no poder da misericórdia de Deus'.

É desta misericórdia sem limite que deverão falar-nos a arte e a cultura fermentadas de cristianismo, misericórdia que não nos acomoda no que já somos, mas que nos desafia a ‘partirmos apressadamente’. A tentação que sinto, múltiplas vezes, porém, é a de me aquietar na certeza da misericórdia, como se ela não me interpelasse à conversão. O lema das JMJ fala, contudo, de um outro estado e condição perante a vida: Maria não se aquietou, não se acomodou – ‘partiu apressadamente’. Importa recordar que essa certeza da ultimidade da misericórdia foi fonte de uma subtil tentação, em alguns tempos da história da Igreja, como ocorreu com Orígenes (séc. II-III), que defendeu uma apocatástase, uma restauração de tudo e todos sem a participação dos mesmos, como se a misericórdia não envolvesse os sujeitos e se operasse ao arrepio da sua própria vontade e conversão. A misericórdia é encontro, é relação, não imposição. Interpela, faz partir de si, convida a caminhar, a ‘partir apressadamente’.

A arte que fala do sublime convida a transcender os ‘caos’ da vida, não a permanecer neles…

Palavras para mim. Não para outros…

 

quarta-feira, julho 19, 2023

Um decide, mas dois assumem as responsabilidades…

Perdoe-me o leitor tão simples parábola, mas o poder simbólico que nela se reserva projeta-me para a escrita.

Esta história que aqui contarei germinou no terreno fértil da convicção de muitos de que certas leis ditas ‘liberais’ são sinais de progresso, sem, porém, se deterem a ler para que abismo os leva tal progredir…

 

Mário e Maria são dois amigos de longa data. Os sonhos de um são o terreno dos sonhos do outro. E as suas histórias parecem confundir-se de tão longamente se fazerem em paralelo.

A vida tem-lhes sorrido e projetam criar uma empresa correspondente ao sonho em que se entretecem as suas vidas.

Dão o salto.

Registam a empresa, partilham quotas em partes iguais, certos de que o sonho tem tudo para ser mais real do que o seu próprio desejo.

O lugar para estabelecerem a empresa dos seus sonhos é um belo espaço que o Mário herdou do pai e que ele considera como o seu porto seguro.

Os primeiros momentos parecem fundir sem fronteira o onírico e o real, tal a certeza e segurança com que se lançam à aventura.

Cedo, porém, o Mário começa a evidenciar sinais de que a partilha das responsabilidades iniciais poderá não se fazer corresponder em iguais benefícios.

O espaço onde estabeleceram a empresa veda-se à entrada da Maria que assiste, ao longo de quase três meses, ao passar do tempo sem que a tal correspondam novidades sobre o seu projeto.

Mas ouve dizer que a sua empresa se expande e progride, sem que, contudo, nada saiba sobre o que está a acontecer. Mário nada lhe conta, de nada lhe apresenta informações…

Contam-lhe que celebrou contratos com esta e aquela multinacional e que o negócio vai de vento em pompa.

Cansada de nada saber, tenta, por todos os meios, que o Mário lhe descreva o que vai fazendo. Mas já nem dele sabe. O espaço da empresa é um lugar inacessível, alegando ele – por aquilo que lhe transmite um advogado a quem ele incumbiu de lhe transmitir, a conta-gotas, que o sonho se está a concretizar - que Maria verá como é bonito aquilo em que o sonho que ambos tinham idealizado se virá a tornar.

Cerca de três meses depois de um prolongado silêncio, Mário reaparece, pedindo a Maria que o apoie, pois o sonho está a um curto passo de se esfumar, pois os contratos entretanto celebrados goraram-se e foram, provavelmente, demasiado ousados para as possibilidades com que partiam.

Maria fica atónita…

‘Como pode ele vir pedir-lhe que assuma responsabilidades, quando, durante quase três meses, de nada lhe deu conta, nada lhe disse, impedindo-a, mesmo, de entrar no espaço da empresa, sob o pretexto de estar a preparar o sonho, mas sabendo ela que se devia a um oculto sentimento de que aquilo era terreno dele e, por isso, não partilhável?!”

Maria está diante de vários cenários…

Mário foi quem, durante aqueles quase três meses, tudo decidiu. Como pode, agora, vir pedir-lhe que assuma ela responsabilidades sobre decisões que foram, exclusivamente, dele? Apetece-lhe impunhar todas as decisões, pois deveriam ter sido tomadas pelos dois. Ou, em alternativa, deixar que assuma ele, sozinho, as consequências do que, exclusivamente, determinou ser o melhor rumo da empresa.

Mas, se ela assumir não reentrar na história, esboroa-se o sonho.

O que fazer?

 

Ocorreu-me esta parábola ao voltar a ouvir alguns, que se autonomeiam como ‘progressistas’, alegarem que a eles se deveram as mais relevantes decisões políticas e sociais do nosso país e do mundo.

Ouvi-los recorda-me como os ditos ‘progressos’ significam, tantas vezes, pelo contrário, um retorcer do Direito, tão explicitamente descrito nesta história.

Vejamos porque o digo…

O nosso mundo alega que a legalização do aborto, primeiro nos países coletivistas, na década de 20 do século XX e, depois, nos países democráticos, a partir de 1973 (com o célebre caso ‘Roe vs Wade’, baseado, como é sabido, num perjúrio reconhecido pela própria Roe pouco tempo depois), foi um progresso.

Esta parábola mostra como essa legalização não só não representa um progresso como se baseia num esmagamento e adulteração do próprio Direito, na medida em que, por um lado, desprotege o mais frágil (o filho, que não se retrata na parábola aqui contada), e, por outro lado, entrega toda a decisão a apenas um, vindo a exigir a outro responsabilidades sobre uma nova realidade jurídica sobre o qual, entretanto, não tivera quaisquer ‘direitos’. Dois geram o filho, mas só um tem ‘poder’ sobre ele, ao longo de dez semanas (cerca de dois meses e meio), alegando-se tratar-se de corpo da mulher. (Como assim, se, então, a partir das dez semanas, o homem também passa a assumir responsabilidades sobre o que era, até aí, mero corpo feminino?).

À luz desta simples parábola, é fácil constatar que todos os homens do mundo que assumem (e bem, obviamente!) os seus filhos, nascidos depois da legalização do aborto nos seus países, o fazem, não por uma obrigação ou imposição, mas por um ato de pura generosidade, pois assumem um dever quando nenhum direito tiveram durante um período que medeia entre terem gerado o filho e voltarem a ter (alegadamente) ‘direitos e deveres’ sobre ele. O Direito que os obriga, depois de os ter privado de decidir e entregando a outrem, exclusivamente, esse poder, é, como será fácil concluir, um direito arbitrário. As obrigações do pai recaíam sobre a realidade jurídica que resultara do ato de gerar. As obrigações que são atribuídas, após as dez semanas de decisão exclusiva da mulher, ao pai que fora excluído da decisão sobre abortar passam a recair sobre uma nova realidade jurídica: aquele que resulta da decisão exclusiva da mulher. Só por pura arbitrariedade se exigem a outrem deveres para com aquele novo bem jurídico.

Biologicamente, o filho (contrariamente ao que defendem os ditos progressistas) é o mesmo; juridicamente, é uma nova realidade: o que resulta da decisão exclusiva de um só - a mulher.

Só se quebrará este arbitrarismo jurídico reconhecendo a ilegitimidade destas leis, reconhecendo o dever de tutelar e proteger a vida intrauterina como uma etapa de um contínuo que é a vida de cada ser humano, e invertendo a lógica de desproteção substituindo-a por uma lógica do cuidado em que cada filho humano gerado é um bem reconhecido por toda a sociedade. Um filho humano deve merecer o enlaçar de toda a sociedade em torno do reconhecimento de que nele se deposita a esperança de um amanhã que ultrapassará o limite esperado do tempo dos seus pais. Só haverá tempo para além do que poderão viver aqueles que poderão ser pais se houver filhos que o prolonguem… Um filho em gestação faz de uma mulher uma mãe e confere-lhe uma condição que deve ser acarinhada, acolhida, cuidada, primeiramente, pelo ‘cúmplice’ e corresponsável por esta nova condição, o pai, mas também por toda a sociedade que deve reconhecer a ousadia de ser pai e mãe e o contributo que tal decisão constitui para si, comunidade que se pretende projetada para o futuro. Sem filhos, o futuro é um lugar sombrio e meramente desejado.

Se as leis que temos são o progresso, então, a ditadura e a arbitrariedade jurídica são o húmus de que se fertiliza o progredir…

Não tenho esse conceito de progresso, antes o entendo como a evolução dentro dos limites da lógica e da humanidade. Não contra elas!

quarta-feira, julho 12, 2023

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Um Deus assim alimenta a esperança e o sonho

   

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

Pela mão de Ulisses, no regresso a casa depois da guerra de Troia, temo-nos mantido movidos pelo sonho do Éden. Desde o início, temos feito as pontes entre as duas mais profundas matrizes do ocidente: a influência greco-romana e a raiz judaico-cristã. Como diz George Steiner, no seu incontornável ensaio ‘A ideia de Europa’, na ‘nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém’ está um dos cinco axiomas para definir a Europa (p. 44 – edição de 2007 de Gradiva). Atenas e Jerusalém são, aqui, cidades-símbolo desta dupla fonte.

Fiéis a este nosso lento caminhar, olhemos, agora, em espelho, de que nos falam a ‘teologia’ de Atenas e Jerusalém.

A ‘teologia’ grega (é muito impreciso falar-se de uma teologia, neste contexto. Utilizo, aqui, o termo no sentido da visão sobre ‘o mundo divino’ e não considerando-a como uma detida e argumentativa reflexão…) não poderá alhear-se do seu multitudinário panteão, encimado pela trilogia de Zeus, Hera e Atena – replicados no Júpiter, Juno e Minerva romanos. Todos os deuses clássicos têm nascimento e fragilidades, revelam-se ciumentos e agressivos nas seus reações, ao ponto de Evémero, um siciliano dos séculos IV e III a.C. ter sustentado, como nos recorda Pierre Grimal, no seu dicionário da mitologia grega e romana (sigo, aqui, a edição da editora Antígona, edição de 2020), ‘que os deuses [gregos] são simplesmente homens a quem, pelos seus méritos, pelos serviços que prestaram aos seus semelhantes, foram prestadas honras divinas.’ (introdução, p. XLII)

E uma leitura atenta dos mitos gregos tornará fácil a adesão a uma tal abordagem, que a história consagrou como ‘evemerismo’, decorrendo do nome do seu proponente.

Zeus, o ‘mais importante deus do Panteão helénico’ (p. 468), é filho do titã Crono e de Reia. Sem me alongar na descrição dos mitos que se conservam sobre o deus maior da mitologia grega, sublinho um elemento que passará despercebido ao olhar distraído. Crono, o pai de Zeus, é o titã do tempo. Como nos recordam as mitologias a ele associadas, devora os seus filhos (tenho-o recordado, repetidamente: os gregos lembravam que o tempo (cronos) devora os seus filhos. Nisto, havia muita profundidade de leitura: o tempo devora-nos, de facto!). Para sobreviver, Zeus tem de ser escondido do pai, para que não o devore.

Tudo é trágico e muito comezinho. Tudo é humano, demasiado humano, para aludir a expressão de Nietzsche, esse pensador que nos pretendeu apresentar o cristianismo como decadente e a mitologia grega como o modelo.

Mas onde ficaria o sonho, onde ficaria a fonte da esperança se dos deuses nada mais poderia esperar-se do que encontramos, já, entre os humanos?

Jamais, de facto, poderia encontrar-se entre estes deuses uma qualquer sombra sequer de que o perdão pudesse ser a verdadeira fonte de novas relações entre os homens.

Terá de se esperar, de facto, pelo cristianismo, para se ousar afirmar que o amor não só possa vir a possuir-se como, afinal, que ele é, efetivamente, a origem última de tudo.

Quão longe está destas invejas e fúrias divinas a afirmação joanina de que Deus possa não só ‘ter’ amor, mas ‘ser’, Ele mesmo, Amor!

Tudo, na teologia judaico-cristã aponta para redenção. Tudo parece apontar, na mitologia greco-romana, para a tragédia.

Bem certo que a dimensão trágica nos desperta de toda a tentação de ilusão, mas teria de redundar numa insuperável desilusão?

Tal é a distância entre o desejo humano e a resposta de que nos fala o cristianismo que dificilmente se lhe poderá atribuir a condição de projeção, como pretenderam alguns descrentes do século XIX, com Feuerbach à cabeça.

Uma projeção entregaria o poder aos fortes.

A afirmação do lugar do amor e do perdão partilha o poder entre todos, tornando-nos credores e devedores uns dos outros, simultânea e incessantemente.

O evemerismo é insustentável quando aplicado ao cristianismo, por muito que o pretendam os Feuerbach de outrora e de hoje.

Bem recorda Berdiáiev, no seu ‘contra a indignidade dos cristãos’, que a verdadeira crítica às insuficiências dos cristãos não tem de procurar-se fora do próprio cristianismo, pois nele estão os critérios mais do que necessários para um exigente juízo. Como ele recorda, ‘a rejeição do cristianismo baseado na imperfeição e nos defeitos dos cristãos é, em essência, uma ignorância e uma incompreensão do pecado original. Para os que são conscientes da queda, está claro que a indignidade dos cristãos não desmente a dignidade do cristianismo, mas antes a confirma. O cristianismo é a religião da redenção e da salvação; anuncia que o mundo vive no mal e que o homem é pecador. Outras doutrinas pensam que se pode alcançar a vida perfeita sem ter vencido o mal de forma efetiva. Mas o cristianismo não pensa assim, antes exige uma vitória real, espiritual sobre o mal, um renascimento espiritual.’ (p. 155-156. Edição de 2019, das ediciones Sígueme)

Como poderia esperar-se a redenção se em Deus se n’Ele se projetassem os comportamentos humanos? Donde nos viria a esperança de deuses em tudo iguais aos humanos, igualmente egoístas e irascíveis?

Ah, quão oportunas são, nestes tempos cinzentos e nebulosos, as palavras de Berdiáiev que interpelam a que se regresse à fonte de que pode esperar-se a renovação, em tempos lamacentos e em que a indignidade dos que se dizem cristãos parece projetar-se sobre a própria dignidade do cristianismo!

O nosso sonho é o do Éden, não como um passado a que queremos regressar, mas como um horizonte para que queremos caminhar: o da correspondência ao Amor que Deus é!

terça-feira, julho 11, 2023

Cristianismo e mudança - O elogio da permanência

 


(Este ensaio é um ponto de partida, mais do que um ponto de chegada. Peço, a quem o ler, que tenha a delicadeza de o sorver como quem se deixa levar pela mão, sem prejuízos nem preconceitos… Apenas indo, indo…)

 

Tenho mudado. Muito! Basta-me a constatação de que, hoje, tenho 50 anos que não foram a minha idade de sempre (pois!) para me dar conta de que mudar é uma inevitabilidade, enquanto formos presença na História.

Sim, de facto, mudar é inevitável.

Restará, por isso, diante deste facto incontornável e observável, concluir que o humano é o mudar até se consumir, em definitivo?

Heráclito[1] de Éfeso parecia responder que ‘sim’ a tal interrogação que, não a tendo feito, se supõe nas sentenças que dele nos chegaram, em particular, pela mão de Diógenes Laércio, mas também em comentários de Platão e Aristóteles: ‘tudo muda’. (Copleston aventa a hipótese de esta sentença não lhe pertencer, mas a história guardou-a como da sua autoria.)

Arrisco dizer que, na resposta a tal interrogação, se encontrará o segredo para superar o paradigma prevalecente neste tempo definido como ‘pós-moderno’ (Lyotard), hipermoderno (Lipovetsky), ‘líquido’ ou ‘pontilhista’ (Zigmunt Bauman),agorista’ e ‘apressado’ (Stephen Bertman), e entregue à ‘tirania do momento’ (Thomas Hylland Eriksen). Todas estas tipificações confluem para a ideia de que vivemos tempos massacrados pelo complexo da impermanência, pelo desejo ansioso e descontrolado de mudar, mudar, mudar, na certeza, enfim, de que se não mudarmos, não seremos!

Há algo de incontrolado neste sentimento profundo, coletivamente absorvido e entranhado, criando uma vertigem perante a qual o sujeito, individualmente considerado, se sente impotente, se é que ousa pensar que sente.

Soma-se a este entranhado sentimento, uma convicção inquestionada: não se fez, afinal, a história da humanidade, de grandes mudanças? Não estará, por isso, a escapar-me a mudança em que poderia sulcar o meu nome como protagonista?

E a vertigem avoluma-se.

Perante ela, a pergunta que parece impor-se é aparentemente óbvia: o que cabe mudar a seguir?

Um olhar atento e sereno à história da humanidade verificará, porém, um outro retrato, como se de um palimpsesto se tratasse[2]. A verdadeira história da humanidade é a que se faz e se fez da capacidade de conservar o que, até aí, era efémero. Veja-se como os grandes saltos da humanidade se deram quando se passou a ‘conservar’ na pedra o que não passava de imagens na cabeça (as gravuras rupestres); ou quando se passou a conservar, através da escrita, o que não passava de oralidade; quando se passou a poder conservar em papiro, em pergaminho, em papel, em qualquer outro suporte, o que era, por definição, efémero. Veja-se como se deram os maiores saltos quando se pôde conservar a energia, quando se pôde conservar os alimentos, quando se pôde conservar o que víamos e ouvíamos… Conservar foi a causa dos grandes saltos da humanidade. Pois mudar era o evidente.

Irene Vallejo, num livro sublime de título ‘o infinito num junco’, constata algo que cabe aqui somar ao que acabo de dizer: o que demora a estabilizar-se e fixar-se é mais durável do que o que chega e prontamente se instala. Diante desta constatação, ela conclui que é mais provável haver livros, dentro de cem anos, do que telemóveis. Porque o livro levou o tempo da ‘demora’ a permanecer… Não sei se o vaticínio de Vallejo se confirmará, pois o meu tempo de permanência foi mais veloz do que o do livro e não permanecerei, por isso, tempo suficiente para o verificar, mas antecipo verdade na sua conclusão.

Diante disto, ouso regressar a Heráclito e dizer-lhe que o humano não se define pela mudança. As rochas mudam, as plantas mudam, os animais também mudam. O ser humano, enquanto ‘cadáver adiado’, no dizer de Pessoa, também muda. O que define o humano não é isso. Antes, é a capacidade de se interrogar e responder à pergunta decisiva: o que importa guardar, conservar, perante a inevitabilidade da mudança?

Devia ser a pergunta do cristianismo, hoje, perante os desafios da mudança. Desafios da mudança que são, afinal, os de sempre, porque mudar opera-se sem necessidade da ação humana. Mudar é o facto; o que guardar é que cabe ao humano perceber. O que deve permanecer perante a inevitabilidade da mudança? Do resto se sabe que se sumirá no efémero…



[1] Sigo a grafia de Copleston, na sua única e insuperável História da Filosofia, vol. I.

[2] Um palimpsesto é um registo que se desconhecia existir sob um escrito visível feito num pergaminho. Dada a necessidade de reutilizar os pergaminhos, era frequente, na Idade Média, raspar-se um texto original e escrever por cima…

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