Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura
O autor e a obra
George Orwell, 1984, Lisboa, Relógio D’Água, 2021.
George Orwell é o pseudónimo de Eric Blair, nascido em junho de 1903, na Índia Britânica. ‘1984’ representa, com ‘o triunfo dos porcos’, o seu principal legado para a história da literatura, ainda que não seja de descurar o seu contributo enquanto ensaísta. Nos seus ensaios, reflete-se a sua visão crítica da sociedade, sempre bem documentada e sustentada em experiência vivida. Preparava-se, com a diligência de um jornalista comprometido, para cada texto, como ocorreu com o seu ‘como morrem os pobres’, que nasce da sua experiência de internamento hospitalar, por motivo de pneumonia. Assim também o seu ‘na penúria em Paris e em Londres’, publicado em 1933, sob o pseudónimo que o eternizou, emergiu do seu conhecimento profundo da realidade dos pobres e vagabundos.
Lutou na guerra civil de Espanha, ao lado dos republicanos, vertendo essa sua experiência para Homenagem à Catalunha (1938).
Tendo uma visão socialista da realidade, não deixou de se distanciar das experiências do socialismo real, opondo-se, através das suas mais conhecidas obras, ‘Triunfo dos porcos’ (1945) e ‘1984’ (1948), à tentação totalitarista.
É dos mais finos críticos das ditaduras totalitárias.
Marcas de água (o que fica depois de se deixar o livro)
George Orwell mostra, neste livro, uma dupla liberdade: não só a que se revela no que diz, mas principalmente a que se revela por dizê-lo. Vale a pena lembrar que Orwell (Eric Blair, aliás…) escreve esta obra em 1948. A Rússia saíra vencedora da Guerra e a Europa tornara-se russófila. Ela tinha, afinal, derrotado o inimigo comum, que era o nazismo! Ter a coragem de pôr em causa um regime de que pouco se sabia e que, afinal, derrotara o inimigo que ensombrara o mundo, era ‘virtude’ que lhe custaria sérias adversidades.
‘1984’ é um livro inquietante. Pelo que diz e pelo que deixa subentendido. E, se o que anuncia se tem confirmado, esperemos, vividamente, que não se confirme o que nos reserva a última linha do livro: a entrada em vigor da novilíngua foi agendada pelo Partido para 2050…
Ao livro ‘1984’, cujo protagonista (e vítima) é Winston, devemos algumas das expressões que se incrustaram, como lapas, na linguagem crítica das tentações totalitárias. Ideias e termos como ‘polícia do pensamento’, ‘ministério da verdade’, ‘big brother’, ‘novilíngua’, ‘duplipensar’, ‘patofalar’, ‘pensacrime’ (crime do pensamento), ou o reconhecimento de que ‘quem controla o passado controla o futuro’ perpassam esta obra, surpreendendo a incisividade com que se retrata uma realidade feita, toda ela, de ilusão e manipulação.
Lemos, hoje, ‘1984’ com uma surpresa inédita, pois descobrimos, em cada página, já não o retrato de uma realidade política que julgávamos ultrapassada, mas com a perplexidade de quem vislumbra, ao espelho, as manchas do próprio rosto. Num tempo da cultura woke, manipuladora, revisionista e negadora da liberdade de pensar, a leitura de ‘1984’ faz doer a alma. As personagens de 1984 poderiam ser substituídas pelos nomes de todas as vítimas contemporâneas da ousadia de pensar por si, vítimas de processos de ‘remissão da verdade’, transformadas em ‘impessoas’, desaparecidas para sempre do convívio dos vivos, por terem ousado pensar por si.
‘1984’ é um livro de génio e de um génio que alertou e continua a alertar para a vulnerabilidade da verdade e para como, manipulando as massas, através da criação de inimigos (virtuais e inexistentes, mas omnipresentes), e promovendo uma cultura do medo, se pode perpetuar a posse do poder, distraindo e alienando.
A verdade, como nos leva a concluir, é um fruto vulnerável, nunca imunizado à manipulação de quem comanda as leituras do passado.
1984 é um alerta e devia ser obra de leitura obrigatória, antecedida da de ‘o triunfo dos porcos’. 1984 podia bem ser ‘2023’ ou ‘2024’ ou qualquer outra data de hoje em que se pretende sumir a verdade às manipulações da leitura da verdade, que chegam a fundir, na impessoalidade, indivíduos que, por se pretender esquecer e a obra que deixaram, se considera nunca terem existido. Nunca existiram, mesmo, diria o ‘Grande Irmão’.
Medo, omnivisão do grande irmão, manipulação são os condimentos da ditadura. E que maior ditadura do que a que se faz de poderes cuja sede é impossível determinar?
Na mesma página que o autor (citações)
‘As pessoas tinham de viver – e viviam, por um hábito tornado instinto – no pressuposto de que todos os seus ruídos eram escutados e, exceto às escuras, todos os seus movimentos eram escrutinados.’ (p. 18)
‘Escrever ABAIXO O GRANDE IRMÃO ou abster-se de o escrever não fazia qualquer diferença. Prosseguir com o diário ou não prosseguir, não fazia qualquer diferença. A Polícia do Pensamento iria apanhá-lo na mesma. Havia cometido – e tê-lo-ia feito mesmo que não escrevesse nada no papel – o delito fundamental, que continha em si todos os outros. O pensacrime, como lhe chamavam.’ (p. 32)
‘A pessoa simplesmente desaparecia, sempre durante a noite. O seu nome era eliminado dos registos, tudo o que essa pessoa alguma vez fizera era apagado, toda a sua existência era negada e depois esquecida. A pessoa era abolida, aniquilada: o ermo mais usado era vaporizada.’ (p. 32)
‘Era quase normal as pessoas com mais de trinta anos terem medo dos seus filhos. E com bons motivos, pois rara era a semana em que o Times não trouxesse a descrição de como um pequeno delator – ‘herói infantil’ era a expressão normalmente usada – ouvira às escondidas uma observação comprometedora e denunciara os pais à Polícia do Pensamento.’ (p. 37)
‘”Atenção. A vossa atenção, por favor! Acaba de nos chegar uma notícia sobre a frente do Malabar. As nossas forças no Sul da Índia alcançaram uma vitória gloriosa. Estou autorizado a dizer que a ação militar que estamos a noticiar pode ter contribuído para tornar mais próximo o final da guerra. Segue-se o flash informativo…”
Vêm aí más notícias, pensou Winston. E, de facto, após uma vívida descrição da aniquilação dum exército eurasiático, com prodigiosos números relativos a inimigos mortos e capturados, veio o anúncio de que a partir da semana seguinte a ração de chocolate seria reduzida de trinta para vinte gramas.’ (p. 38)
‘Em baixo, na rua, o vento sacudia dum lado para o outro o cartaz rasgado, com o que a palavra SOCING ia aparecendo e desaparecendo. Socing. Os princípios sagrados do Socing, Novilíngua, duplipensar, a alterabilidade do passado. Winston sentiu como se caminhasse nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde o monstro era ele próprio. Estava sozinho. O passado estava morto, o futuro era inimaginável. Que certeza tinha de ter do seu lado um único ser humano? E como podia saber se o domínio do Partido não iria durar para sempre?’ (p. 38)
‘[…] se toda a gente aceitava a mentira que o Partido impunha – uma vez que todos os registos a repetiam -, então a mentira passava à história e tornava-se verdade. “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.”’ (p. 46)
‘Esta era a grande subtileza: induzir conscientemente a inconsciência […]’ (p. 46)
‘Toda a história era um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário.’ (p. 51)
‘O camarada Ogilvy, que há uma hora não existia, era agora um facto. Winston pensou em como era curioso que se pudesse criar homens mortos, mas não vivos. O camarada Ogilvy, que nunca existira no presente, existia agora no passado, e, quando este ato de contrafação fosse esquecido, a existência dele seria tão autêntica, e documentalmente tão fundamentada, como as de Carlos Magno ou de Júlio César.’ (p. 58)
‘”Não percebes que todo o propósito da novilíngua é encurtar o alcance do pensamento? No final vamos tornar o pensacrime literalmente impossível, porque não haverá palavras para o exprimir.’ (p. 62)
‘A filosofia do Partido negava não só a validade da experiência, mas a própria existência da realidade externa. A maior heresia era o senso comum. […] O Partido dizia às pessoas para recusarem as evidências que lhes entravam pelos olhos e pelos ouvidos.’ (p. 89)
‘Muitas vezes estava disposta a aceitar os mitos oficiais simplesmente porque a diferença entre verdade e mentira não lhe parecia importante.’ (p. 157)
‘Um membro do Partido vive do nascimento até à morte sob o olhar da Polícia do Pensamento.’ (p. 210)
‘Pára-crime significa a faculdade de interromper abruptamente, como por instinto, qualquer início de pensamento perigoso.’ (p. 211)
‘A palavra-chave aqui é pretobranco. Tal como muitas palavras de novilíngua, esta encerra dois significados mutuamente contraditórios. Aplicada a um adversário, significa o insolente costume de afirmar que o preto é branco, contrariando a evidência dos factos. Aplicada a um membro do Partido, significa a leal disposição para dizer que o preto é branco quando assim o exige a disciplina partidária. Mas também significa a capacidade de acreditar que o preto é branco, e, mais até, de saber que o preto é branco e de esquecer que alguma vez se acreditou no contrário. Isso exige uma alteração permanente do passado, tornada possível pelo sistema de pensamento, que realmente abrange tudo o resto, conhecido em novilíngua como duplipensar.’ (p. 211)
‘O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade ocupa-se da mentira, o do Amor encarrega-se da tortura, e o da Fartura lida com a fome.’ (p. 215)
‘O que quer que o Partido considere ser a verdade é a verdade.’ (p. 248)
‘Cortámos as ligações entre pais e filhos, e entre um homem e outro, e entre os homens e as mulheres. Já ninguém se atreve a confiar na sua mulher, nos seus filhos, nos seus amigos. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tiradas às mães à nascença, tal como se tiram os ovos às galinhas.’ (p. 265)
‘Fora principalmente para dar tempo a esse trabalho preliminar de tradução que a adoção definitiva da novilíngua fora fixada para uma data tão longínqua como 2050.’ (p. 307 – última frase do livro).