No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a vida humana é portadora de uma dignidade (inerente) que a torna merecedora de proteção.
Com honrosas exceções, em que merecem destaque a Sic, a Renascença, a Ecclesia e a imprensa de âmbito regional (sempre atenta à autêntica realidade e não preocupada em ficcionar sobre ela…), esta manifestação, que reuniu alguns milhares de pessoas em doze cidades do país (que inclui ilhas!), foi brindada com o silêncio da imprensa de âmbito nacional.
Como tem ocorrido, aliás, ao longo dos tempos.
Infelizmente, a causa da vida parece não ter ‘boa imprensa’. Nunca a teve, mas estou certo de que terá bom tempo, o bom tempo do lugar certo da história da humanização.
E quando merece algum lugar de referência, é, com frequência, como forma de se lhe atirar com os habituais epítetos preconceituosos que sossegam os ânimos dos potencialmente mobilizáveis e pretendem isolar os mobilizados.
Entre esses epítetos e preconceitos, contam-se, como mais frequentes, os de que são os crentes que estão a tentar impor a sua vontade aos demais ou que se trata de movimentos que visam assegurar um retrocesso em ‘conquistas’.
Antes de avançar para os factos, gostaria de enfrentar estes dois ‘brindes’ com que costumamos ser rotulados.
Como crente que sou, agradeço o reconhecimento de que a opção crente está do lado dos que protegem a vida humana, em particular quando se encontra mais frágil e mais dependente, mas o meu agradecimento tem de ser honesto. Como bem reconhecia Norberto Bobbio, um laico, socialista e descrente, reconhecido político e pensador italiano, ‘não se pode (nem deve) entregar aos crentes o monopólio da defesa da vida humana.’ Ele mesmo sabia que esta não era uma questão de natureza religiosa, mas de ordem humana, humanitária. De qualquer modo, como crente, não posso senão sentir-me honrado com aquela que pensam ser uma ‘acusação’ ofensiva. Agradeço-a, mas a honestidade obriga-me a colocá-la onde deve estar. As motivações religiosas somam motivos, mas não precisamos da fé para reconhecer que temos o dever de cuidar uns dos outros. É a base de uma sociedade solidária…
O outro epíteto é o de que a defesa da vida humana contra as arbitrariedades da liberdade individualista seja um retrocesso.
Lamento defraudar os que se consideram progressistas por defenderem o aborto, o infanticídio, a eutanásia, etc. Daí já vimos e não queremos lá voltar. Ao longo da história, a tentação de desvalorizar a criança, o filho no útero, o doente, o idoso, foi omnipresente, mas as conquistas de humanidade levaram-nos a reconhecer que não era andar para a frente a sua legitimação, mas um autêntico regredir ao tempo em que nos abandonávamos, por sermos um empecilho no nomadismo. Hoje, já não estamos aí.
Como recordava o Cardeal Tolentino de Mendonça, no seu discurso de 10 de junho de 2020, e invocando ideia defendida pela antropóloga Margaret Mead, o primeiro sinal de humanidade foi um ‘fémur cicatrizado’, o primeiro sinal de que não abandonámos à sua sorte ou, melhor, à morte, aquele que partiu uma perna e não podia acompanhar-nos. Ficámos ao seu lado e ajudámo-lo a erguer-se…
Defender que é legítimo matar (um filho ainda precariamente desenvolvido ou um pai idoso e doente) não é um avanço. É um enorme retrocesso. Um enorme retrocesso!
Mas porquê?
Os factos
Facto 1
A morte é irreversível. As circunstâncias que envolvem a vida e o seu desenvolver-se são, por sua vez, reversíveis. É pouco lógico e pouco consistente legitimar um ato irreversível por circunstâncias que poderíamos mudar, porque são reversíveis. Poderemos ser mais ricos ou mais pobres, mais livres ou menos livres, mais dependentes ou mais autónomos, mais belos ou esteticamente menos dotados, mais robustos ou mais frágeis, mais sofredores ou mais saudáveis… Tudo isso é móvel e volúvel. A morte é que é irreversível. Ora, é por isto que os constituintes perceberam que a vida teria de ser inviolável. Não se lhe deveria poder tocar com a legitimação do seu abrupto e voluntário fim. Porque nenhuma circunstância é mais valiosa do que a vida aberta ao amanhã.
Facto 2
Um filho, desde o início, desde a fusão de um espermatozoide com um óvulo, passa a ser o fruto de dois: um pai e uma mãe. Deste modo, sabendo que, pela natureza das coisas, o filho só pode desenvolver-se no útero de um, esse filho não é posse desse que lhe permite desenvolver-se, não só pela dignidade inerente ao filho (é um ser irrepetível e único), mas também porque, enquanto gerado por dois, não pode ser direito de um só. A mãe é a primeira cuidadora, não a possuidora do filho, tal como o pai não é, nunca, o seu possuidor, mas o seu outro protetor e cuidador. Ao pressuposto destas considerações dá-se o nome de dignidade. Dignidade não é uma mera perceção de se ser digno; é anterior à própria perceção. É essa condição que deve despertar a perceção.
Facto 3
O filho é distinto da mãe, pelo que é um sofisma motivador de reprovação em qualquer cadeira de lógica de primeiro ano pretender confundir o filho com o corpo da mãe, o que é facilmente demonstrável, por exemplo, nos casos em que o tipo de sangue do filho é distinto do tipo de sangue da mãe. O sofisma é ainda assente num outro erro de lógica que é presumir que, se fosse corpo da mãe, então poderia fazer-se o que se entendesse, conclusão que a simples obrigação, por exemplo, de utilizar cinto de segurança deita por terra. O legislador sabe bem que a obrigação de utilização do cinto é estabelecida, não para proteger outros, mas a si próprio, pelo que se demonstra que há um pressuposto, no ordenamento jurídico, de que temos o dever de cuidar de nós mesmos, não sendo legítimo o absoluto princípio de que a minha autonomia poderá legitimar tudo o que eu pretenda fazer-me a mim mesmo.
Facto 4
A eutanásia não é um meio de acabar com o sofrimento.
Para isso, existem as terapêuticas várias, entre as quais merecerão destaque os cuidados paliativos.
A eutanásia mata o sofredor, sem incidir sobre o sofrimento. Mata quem sofre, acabando, entre outras coisas, com o seu sofrimento, mas também com o seu futuro e levando consigo todos os que o rodeiam. Como testemunhava um filho de um suicida, em estudo recolhido por Alexandrina Meleiro, na Revista Brasileira de Medicina (Set 2013), ‘quando uma pessoa se mata, não se mata só a si mesma. Mata todos ao seu redor. Mata todos os que a amam.’ A eutanásia não é um suicídio, antes um ato realizado por outrem sobre alguém a pretexto de estar em fim de vida ou em sofrimento, mas é, muitas vezes, pretensamente legitimada como se de um suicídio se tratasse.
Não o é e comporta custos para a confiança nas relações, mas mesmo que fosse um suicídio, seria contraditório que a sociedade defendesse que o suicídio é um mal a combater e, em total contradição, legitimasse a prática da eutanásia.
Facto 5
A compaixão não legitima as práticas de morte. Utilizá-la para legitimar o aborto ou a eutanásia é cobardia e um sofisma a denunciar.
A compaixão que pretende suportar a eutanásia e o aborto é um modo fácil de abandono e de deixar de se preocupar com o outro. É um modo assético de encarar o fim da vida, com os seus desafios e exigências. Devemos cuidar. É isso que faz uma sociedade humanizada.
Eutanasiar é próprio das sociedades distópicas como as que Aldous Huxley descreve no seu ‘Admirável mundo novo’, um mundo de humanos robotizados, amorfos e incapazes de enfrentar a condição frágil, próprio de se ser humano.
Facto 6
Os que pretendem legalizar estas práticas que tornam vulnerável o ser humano nas suas fases de maior dependência utilizam argumentos que manipulam a realidade e a contorcem até que diga o que querem que ela diga. Invocam, inclusive, os chamados valores europeus, como se a Europa tivesse como único e absoluto valor uma certa ideia de liberdade identificada com um ‘fazer tudo o que se quer’. A Europa tem na liberdade, bem certo, um valor fundamental, mas não absoluto. Anterior ao valor da liberdade está a inviolabilidade da dignidade humana que, como afirma a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu preâmbulo, fundamenta a liberdade. Sem o reconhecimento da dignidade inerente a todos os humanos (todos, mesmo!), não há liberdade, mas pura arbitrariedade dos mais fortes sobre os mais fracos. E isso não é um valor europeu…
Diante destes factos, para onde caminha o futuro?