sábado, dezembro 07, 2019

O rasgão



Causa-me perplexidade ver a facilidade com que nos estamos a habituar à ideia de que nos é legítimo destruir os nossos só porque são nossos. Uns, de facto, outros, de direito.
De facto…
É inacreditável como se vêm avolumando as notícias de que as relações que deveriam ser de amor estão envolvidas em violência. Porquê?
É inacreditável como abandonamos e rejeitamos os mais frágeis de entre nós, seja na fase do berço, seja já adultos, fazendo desta uma sociedade que se satisfaz em proclamar princípios, mas que os contradiz, a cada instante.
Mas não deixa de ser igualmente inquietante ver como deixámos que se tornasse legítimo destruir os nossos, no plano do direito.
De direito…
Deixámos que se instalasse, de direito, a violência de uma mãe sobre o seu filho ainda não nascido. Deixámos, legitimando, aplaudindo e chegando a rejeitar os que ousam retomar a inquietude que nunca nos deveria ter abandonado.
Como podemos, depois de legitimar tal violência, ficar surpreendidos que haja outros sinais de violência quando permitimos e acolhemos como boa a violência naquele que é o último porto seguro da nossa existência: o do colo da mãe?
E, agora, depois de termos legitimado tal violência, propomo-nos dar mais um passo.
Já não nos bastava ter legitimado a violência da mãe sobre o filho. Faltava-nos legitimar a violência do filho sobre a mãe.
O Parlamento prepara-se para a legitimar, legalizando a eutanásia. De mansinho, bem certo. Já assim fora, em 1984 e nos referendos de 1998 e 2007. Os mais de 185 mil abortos entretanto realizados demonstram que a exceção se tornou banalidade.
Como, depois, poderemos ficar surpreendidos que se agudizem os sinais da violência numa sociedade que a assume como um direito?
E muitos defendem tal direito em nome de um suposto avanço. Como se não tivéssemos, ao longo da história, já percorrido tais caminhos que a vitória da civilização e da humanidade sobre a incivilização e a desumanidade tinha deixado para trás. (Não posso deixar de recordar, neste contexto, o que já repetidas vezes fui recuperando, em alguns dos meus textos: o Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.)
O que fazemos, agora, não é andar para diante: é regressar a lugares onde pensávamos já não querer voltar.
Também os gregos já abandonaram os seus idosos e abortaram e rejeitaram os seus débeis (Hipócrates, que viveu entre 460 e 370 a.C., afirmava, no seu célebre juramento: ‘não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva’, o que permite concluir ser uma prática então existente que Hipócrates repudia); o mesmo se passava entre os povos do centro da Europa que venceram os romanos ou no Oriente longínquo e em tantas e tantas tribos daqui e dali. Mas a civilização marcadamente personalista e humanizada foi vencendo tais práticas e realizando o ideal do respeito inviolável pela pessoa humana.
O que se está, portanto, a pretender, não é avançar, mas retroceder. E se fosse um passo em frente seria semelhante ao de alguém que, vestindo um especial fato domingueiro, se apercebesse de que este ficara preso a um pequeno prego. Se der um passo adiante, tal significará abrir um rasgão provavelmente irreparável. Constatando tal obstáculo, melhor será dar um passo atrás que assegure que se desprendem as vestes de tal entrave. Avançar significará consolidar o rasgão e decretar o fim da tão amada veste.
Estamos aqui! O rasgão está a abrir-se, de forma cada vez mais profunda. Haveria que dar o passo atrás (que, como vimos, seria o verdadeiro progresso rumo à humanização da sociedade, contrariando o que muitos pretendem dizer, ao rotular de posição conservadora ou passadista!) para garantir que não se rompe, em definitivo, a solidez do nosso tecido (social). Mas insiste-se na indiferença para com o risco associado ao prego a que se prendeu o nosso fato.
Até quando continuará a abrir-se o rasgão? Até quando resistirá o tecido tão penosamente elaborado em demorado tear?


quarta-feira, novembro 20, 2019

SESSÃO DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO ‘BEM-NASCIDO… MAL-NASCIDO…’ | LIVRO ANALISA A CONDIÇÃO HUMANA E A ÉTICA A PARTIR DA DEFICIÊNCIA


Realiza-se, no dia 3 de dezembro de 2019, no Centro Universitário Fé e Cultura (Aveiro), às 21.30h., sessão de apresentação do livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’, da autoria de Luís Manuel Pereira da Silva (notas biográficas abaixo).
A sessão iniciará com momento musical de grande simbologia, dado que será interpretada, por Bernardo Gomes, uma obra de Francesco Landini, um compositor cego do século XIV. Com este momento, pretende o autor homenagear os verdadeiros protagonistas deste ensaio: a deficiência e as pessoas que se encontram particularmente marcadas por esta condição. Também a data escolhida para a realização desta sessão – 3 de dezembro, dia internacional das pessoas com deficiência – está marcada por esta simbologia.
A obra será apresentada por Walter Osswald (Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Medicina do Porto e autor do prefácio), João Manuel Duque (Diretor do Centro Regional da Universidade Católica – Braga e autor do posfácio) e António Jorge Ferreira (editor da Tempo Novo Editora).

Opções simbólicas da capa e título
O autor de «Bem-nascido… Mal-nascido…», ao optar pela grafia ‘deficiente’ de «mal-nascido» (em vez de «malnascido»), propõe-se, por um lado, destacar ‘mal’, criando contraponto com ‘bem’, e antecipa, com esta opção, o conteúdo sobre o qual se reflete, neste ensaio: a condição imperfeita da humanidade, tão vulnerável às decisões dos que, perante a fragilidade, cedem à sedução do paradigma eugénico. «Bem-nascido… Mal-nascido…» reflete sobre a tão desejada mas sempre impossível perfeição e os reais filhos marcados pela omnipresente imperfeição, imperfeição discretamente denunciada, também, nas aspas ‘deficientes’ que envolvem ‘filho perfeito”.
A força simbólica do malmequer que se desfolha, aplicada à condição da deficiência nas sociedades atuais, é tão impressiva que a nenhum leitor atento deixará de comover e inquietar.

Breve apresentação do livro ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’
A obra agora editada parte da reflexão realizada no contexto do Mestrado em Bioética, concretizado no Instituto de Bioética da UCP – Porto, com acrescentos posteriores que conferem particular atualidade às ideias aqui apresentadas. É, ainda, uma obra em que o autor cria: cria ideias novas e novos termos, procurando, deste modo, desbravar novas vias para uma bioética de matriz personalista.
Muitas são as interrogações a que se propõe responder este livro:
‘O que diz sobre nós a deficiência? O que diz sobre quem somos a nossa atitude ética perante a pessoa com deficiência? Porque é difícil encontrar consensos em ética? Assistimos ao emergir de um paradigma eugénico? Que retórica adota a comunicação social sobre a deficiência e o que nos dizem os seus silêncios e a suas opções de destaque? Temos uma legislação com marcas de eugenismo? E o que nos diz a história sobre os riscos de um vertigem eugenística, consequência do efeito de ‘rampa deslizante’? Que ideia de liberdade pressupomos quando nos permitimos eliminar os mais frágeis de entre nós?’
Esta é uma obra que enfrenta, com coragem e de forma ‘brilhante e […] irrefutável’ (prefácio), os desafios que a deficiência coloca à condição humana, reconhecendo naquela a marca da nossa própria humanização, ou, como bem recorda João Manuel Duque, no posfácio, ‘a verdade e a grandeza da humanidade reside, precisamente, no reconhecimento livre das suas limitações, que significam a experiência da vulnerabilidade.’
De forma lapidar, Walter Osswald, no prefácio, descreve esta obra como uma ‘bela contribuição […]: ao ganho ético que a sua leitura nos proporciona, dado o seu caráter verdadeiramente inovador, adiciona-se o prazer de nos familiarizarmos com um texto solidamente construído e literariamente sedutor.’
Esta edição é solidária, revertendo um euro da venda de cada livro para duas instituições: APCDI (Associação Pro-Cidadão Deficiente integrado – Pessegueiro do Vouga) e ADAV-Aveiro (Associação de Defesa e Apoio da Vida).

Breve biografia do autor (mais notas abaixo)
Licenciado em Teologia (UCP), Mestre em Bioética (UCP), Professor de EMRC. Preside à comissão diocesana da cultura de Aveiro. Participa em conferências, debates e outras iniciativas, dedicadas a matérias de educação, teologia e bioética. Publica, regularmente, artigos de opinião em revistas e jornais, debruçando-se sobre as matérias em que se especializou. É casado com Cláudia Macedo e pai do João José e da Maria Marta.

Publicou, em 2004, «Teologia, ciência e verdade – condições para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg».
É um dos autores convidados para a obra coletiva, Portugal Católico, com artigo sobre A Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas. Livro coordenado por José Eduardo Franco e José Carlos Seabra Pereira, com edição do Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Coordenou, entre 2007 e 2011, a equipa que elaborou os manuais (de que é coautor) do ensino secundário de EMRC, editados pela Fundação SNEC:




O autor
Biografia
Luís Manuel Pereira da Silva nasceu na região de Champagne, em França, na cidade de Epernay, tendo vivido a sua infância em Pessegueiro do Vouga.
Frequentou os Seminários de Santa Joana Princesa, em Aveiro, e da Sagrada Família, em Coimbra, de que guarda marcantes e gratas memórias.
Licenciou-se em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa (UCP), com tese sobre o estatuto epistemológico da Teologia segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg. (17 valores)
Obteve, no Instituto de Bioética da UCP, pós-graduação e mestrado em Bioética, avaliados com menção de «Summa Cum Laude» (19 valores).
É professor de EMRC no Agrupamento de Escolas de Albergaria-a-Velha e foi, durante 10 anos, professor em Sever do Vouga.
Foi membro da direção do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro (2008-2014), coordenando tertúlias, simpósios, exposições, ciclos de cinema, participando na criação do prémio «Póvoa dos Reis – cientista e padre», entre outras iniciativas. Foi docente e formador neste Instituto de Ciências Religiosas e professor convidado no Instituto Superior de Estudos Teológicos (Coimbra), em 2005-2006. Integra o corpo docente do Centro de Formação D. António Marcelino, lecionando no Curso Básico teológico-pastoral.
É autor de manuais escolares de EMRC, a convite do Secretariado Nacional da Educação Cristã.
É sócio fundador da ADAV-Aveiro (Associação de Defesa e Apoio da Vida), a que preside, desde 2009, tendo coordenado a edição do livro «A vida conta… branco no preto».
Preside, desde dezembro de 2015, à Comissão Diocesana da Cultura – Aveiro. Integrou a equipa nacional da Acção Católica Rural. É coordenador do pólo de Aveiro do Centro de Estudos de Bioética. Foi membro da Comissão Diocesana «Justiça e Paz», entre 2005 e 2009. Foi, em 2002, delegado juvenil nacional ao Simpósio dos Bispos Europeus, realizado em Roma.
Tem recebido prémios, enquanto professor, entre os quais, o prémio nacional «Escola Ativa», atribuído pela Associação Bandeira Azul Europeia, enquanto coordenador, na Escola Secundária de Sever do Vouga, do projeto «Jovens Repórteres para o Ambiente»; o prémio distrital «Escola Alerta», atribuído pelo Instituto Nacional para a Reabilitação, pela coordenação de projeto escolar inovador na área da integração de pessoas portadoras de deficiência; «Bíblia Moov Jovem», atribuído, pela Sociedade Bíblica, aos filmes «Emilagrando» (2017) e «Noé – acque di Dio» (2018), enquanto coordenador do projeto com o professor Paulo Calhau.
Participa em conferências, debates e outras iniciativas, dedicadas a matérias de educação, teologia e bioética. Publica, regularmente, artigos de opinião em revistas e jornais, debruçando-se sobre as matérias em que se especializou.
É casado com Cláudia Macedo e pai do João José e da Maria Marta.

Bibliografia
Publicou, em 2004, «Teologia, ciência e verdade – condições para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo o pensamento de Wolfhart Pannenberg».
É um dos autores convidados para a obra coletiva, Portugal Católico, com artigo sobre A Educação Moral e Religiosa Católica nas escolas. Livro coordenador por José Eduardo Franco e José Carlos Seabra Pereira, com edição do Círculo de Leitores/Temas e Debates.
Coordenou, entre 2007 e 2011, a equipa que elaborou os manuais (de que é coautor) do ensino secundário de EMRC, editados pela Fundação SNEC:
- Política, ética e Religião;
- Valores e ética Cristã;
- Os novos movimentos religiosos;
- Igualdade de oportunidades;
- Amor e sexualidade;
- A Arte cristã;
- A civilização do amor;
- A dignidade do trabalho;
- A comunidade dos crentes em Cristo.
Em 2014, redigiu, em coautoria, quatro novas unidades letivas, editadas pela Fundação SNEC:
- Política, ética e Religião;
- Valores e ética Cristã;
- A civilização do amor;
- Ética e economia.
Coordenou e prefaciou a edição do livro «A vida conta… branco no preto», em 2005, publicado pela editora Tempo Novo.
Foi coordenador, enquanto presidente da Comissão Diocesana da Cultura, da edição da peça de teatro «Fracassos da Corte», obra do século XVII, desaparecida e inédita em português, dedicada a Santa Joana Princesa. Publicação da editora Tempo Novo, em maio de 2017.
Foi diretor da revista de teologia Dabar e fundou a revista Signum, tendo sido o seu primeiro diretor. Integrou o conselho redatorial da revista Práxis. Integra o conselho redatorial da revista «Igreja Aveirense», onde tem artigos publicados. Coordena as publicações no site da Comissão Diocesana da Cultura, http://diocese-aveiro.pt/cultura/
Tem mais de cem artigos publicados nas revistas Dabar, Signum, Theologica, Práxis, Ensaios de Bioética, Estudos Teológicos, Mundo Rural, etc., e nos jornais Terras do Vouga, Correio do Vouga, entre outros, repercutindo parte destas reflexões no seu blogue www.teologicus.blogspot.com.
É coautor do guião de animadores Faz-te ao caminho (para animadores de grupos juvenis da ACR – Acção Católica Rural) – 2004-2005, e do guião de animadores Sonhar e desenhar um mundo melhor (para animadores de grupos infantis da ACR – Acção Católica Rural) – 2005-2006.
É tradutor do livro Xavier Basurko - Para viver o Domingo, editado pela Gráfica de Coimbra, em 2001, e do livro A Família na Doutrina Social da Igreja, edição do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro.


sexta-feira, outubro 25, 2019

A vertigem eugenística | ‘Respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se pudéssemos, não terias nascido!’



Esta é a história de uma criança sem rosto, mas com nome: Rodrigo. A ela associa-se o drama da impossibilidade de se preparar o nascimento de uma criança marcada pela deficiência porque, por uma suposta (ainda não demonstrada) negligência médica, a informação sobre a real condição deste Rodrigo foi omitida.
Esperava eu que fosse disto que se estivesse a falar: da preparação para o nascimento de uma criança marcada pela deficiência.
Mas a insistência noutra tecla permitiu-me despertar do sonho em que estava.
O que se discutia não era a gravidade da negligência que tornou impossível preparar, com cuidado, e envolvendo a família e a sociedade, o nascimento de uma criança a quem deveria proporcionar-se o máximo de conforto, aconchego e cuidado para que pudesse nascer com amor e, se a tal estivesse destinada pela natureza, morrer acompanhada.
Mas despertei deste sonho.
O que se discutia era que a informação sobre o estado da criança teria sido importante para determinar o seu fim.
Despertei de um sonho para acordar num pesadelo.
Não é esta a mesma sociedade que (muito bem!) se mobiliza em prol da equiparação dos atletas paraolímpicos aos demais atletas, não é a mesma que discute a inclusão da deficiência nas nossas escolas, que inclui em governos pessoas portadoras de deficiência porque ela não deve ser fator de discriminação?!
Mas, ao ouvido, esta mesma sociedade sussurra, maviosamente: ‘respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se fosse por nós, não terias nascido’!
Assusta esta vertigem eugenística, disponível, de forma subtil e progressiva, para aceitar uma sociedade de perfeitos, de puros. Uma sociedade como a que, entre o início do século XX e a II Guerra Mundial, criou a cultura favorável ao que veio a acontecer, às mãos dos grandes eugenistas da história, cujo nome nos deveria bastar para não repetir tamanhas atrocidades.
O que deveria estar a discutir-se, para além da obrigação da verdade da informação, era se é justa uma lei que prevê que, por se ser malformado, se pode ser impedido de nascer. Esta é uma lei, aliás, que gera conflitos como o que se verificou, na França, a propósito do celebérrimo caso ‘Perruche’, iniciado por ocasião do nascimento, em 1982, de uma criança da família Perruche com malformações não detetadas durante a gravidez, a qual pediu indemnização por ter sido impedida de ser abortada. Após muitas disputas, avanços e recuos, em 2002, foi promulgada a Lei nº 2002-303, de 4 de março de 2002, que sustenta que não existe um direito a não nascer.
Mas é bom sublinhar que o conflito nasceu no momento em que se permitiu que a legislação (a francesa como a portuguesa) desblindasse a proteção da vida humana, permitindo a sua eliminação por motivo de deficiência.
Esta deveria ser uma matéria a retomar, não para, como pretendem alguns, alargar os prazos para além das 24 semanas atualmente legisladas, mas para nos interrogarmos em conjunto sobre se, de facto, pretendemos ser consequentes com o nosso princípio de que a inclusão da pessoa portadora com deficiência é para ser efetiva e não uma hipócrita sensibilidade momentânea. A sermos consequentes, perante a pessoa com deficiência, não podemos considerar que a sua situação é um problema das famílias de que elas fazem parte, mas um dever para todos nós. Quanto se concede do orçamento de Estado para o efetivo apoio destas famílias? Quanto consagramos dos espaços de lazer para o acolhimento destas famílias? Para quando a definição de famílias de cuidado capazes de apoiar, em proximidade, as que integram pessoas portadoras de deficiência? Onde estão as equipas de apoio às famílias a quem é comunicada a notícia de que a sua criança vai (ou pode vir a) ser portadora de uma deficiência, equipas que deveriam ajudar a acolher e a encontrar esperança quando tudo pode parecer nebuloso? Quem garante que não se fica só perante esta notícia, mas, pelo contrário, se é acompanhado e auxiliado a acolher a vida, qualquer que seja a sua condição? São tantas as interrogações que deveríamos colocar-nos para nos pormos em busca das melhores soluções para que a deficiência fosse uma presença efetiva e acolhida na nossa sociedade!
 Na capacidade que uma sociedade tem de integrar os seus mais frágeis é que se evidencia a sua capacidade de humanização e a sua densidade civilizacional.
De outro modo, estaremos prontos a gritar a plenos pulmões que esta é uma sociedade não inclusiva quando, ao ouvido, sussurramos aos ouvidos daqueles que dizemos proteger que a sua vida está a mais.
De que lado queremos estar? É que o lado da deficiência é o lado de todos os humanos, pois, de algum modo, todos somos imperfeitos. Nos portadores de deficiência, a nossa comum imperfeição é, porém, mais visível, e, por isso, mais incómoda. Não nos queremos reconhecer frágeis na sua fragilidade.


quarta-feira, outubro 02, 2019

E se a um cidadão correspondesse mesmo um voto? Um exercício teórico… para tornar a realidade mais justa!


O nosso sistema eleitoral apresenta fragilidades significativas (para ser eufemístico!). De acordo com o sistema atualmente vigente, o voto dos cidadãos não tem valor igual em todos os círculos eleitorais. É, aliás, evidente que o voto de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal ou Aveiro é claramente mais relevante do que o voto de Portalegre, Bragança, Beja, Guarda ou Évora.
Mas, supostamente, os cidadãos destes últimos distritos são tão portugueses como os restantes.
Com efeito, o sistema eleitoral português prevê que se calcule, antes de eleições, qual o número de deputados a eleger por círculo, sendo feito esse cálculo com base no número de eleitores recenseados.
Tal situação tem um motivo associado à perspetiva de que cada deputado represente o eleitorado que o elegeu.
Se tal fosse efetivo, poderíamos aceitar esta solução como um mal menor.
Contudo, depois do célebre caso do ‘orçamento do queijo limiano’, em 2001 e 2002, em que um deputado eleito pelo círculo de Viana do Castelo viabilizou o orçamento de um governo minoritário, a troco de investimento na sua região, o que lhe valeu a expulsão do seu partido e acesa discussão, no país, sobre a legitimidade da sua ação, ficou claro que os círculos eleitorais não representavam qualquer valia acrescida para os cidadãos, constituindo-se, pelo contrário, num eventual fator de injustiça (em termos de sistema eleitoral) que deveria merecer acesa discussão por parte dos portugueses. Senão, vejamos.
O sistema eleitoral em vigor permite, entre outras coisas, maiorias absolutas sem que se tenha uma maioria absoluta de votos. Basta que se tenha a sorte (ou desenvolvido estratégia matemática para tal) de se ser mais votado nos círculos onde mais deputados são eleitos.
Por absurdo, pode ocorrer que tenha maioria no parlamento um partido que seja, por exemplo, o menos votado, ainda que a probabilidade seja baixa.
Tomemos um exemplo.
Aveiro, que apresenta, segundo mapa publicado em 1 de março de 2019, 645.212 eleitores, constitui-se como um círculo eleitoral onde serão escolhidos 16 deputados. Bragança, que tem 142603 eleitores, elege 3 deputados.
Imaginemos, por absurdo, que o dia de eleições se apresenta, por terras de Aveiro, tentadoramente quente e apetecível para uma visita à praia. Imagine-se, ainda, que tal favorece uma abstenção que ronde os 80%. Vão votar, em Aveiro, nesse dia, 129 mil eleitores. Bragança, por oposição, não bafejada pelo mar, tem chuva todo o dia e consegue ter uma participação quase absoluta. Os votantes rondam os 130 mil.
Bragança e os seus 130 mil elegem 3 deputados, enquanto Aveiro, com os seus 129 mil, elege 16 deputados.
Imagine-se este cenário aplicado na relação entre os círculos mais populosos - Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro que elegem, juntos, 141 deputados - em contraste com Portalegre, Bragança, Beja Évora e Guarda, que elegem, em conjunto, 14 deputados.
Imagine-se que a abstenção é avassaladora, nos primeiros cinco, e quase nula, nos últimos. A relação entre estes fatores poderá criar um cenário em que partidos menos votados, no total, mas cujos votos recaem sobre os cinco primeiros círculos, conseguem uma maioria parlamentar que, afinal, não corresponde à maioria dos votos dos participantes nas eleições.
Face a esta constatação, depreende-se, antes de mais, que importa ter coragem para enfrentar esta questão que é de justiça e procurar soluções. A justiça e a verdade deveriam prevalecer sobre o tacticismo e os interesses instalados. A não ser assim, quando os cidadãos se convencerem de que o sistema é injusto, será o próprio regime a ser questionado. Importa, por isso, ser prudente e previdente, a fim de evitar os danos mais gravosos por não se ter tido coragem para ir procurando soluções adequadas.
Uma das primeiras alterações a ponderar era de pequena monta e mais não é do que uma alteração de procedimento. Em vez de se calcular o número de deputados a eleger com base no número de eleitores (potenciais) deveria calcular-se aquele número com base na participação real dos votantes. Só no fim das eleições e depois de apurar a abstenção e o número total de votantes é que se apuraria qual o número correspondente a cada círculo, com base no número efetivo de votantes em cada um deles.
Tal teria uma consequência efetiva e muito provável: a diminuição da abstenção, pois os cidadãos perceberiam, no imediato, que a sua não participação afetaria a sua representação nacional. Quantos menos votantes num círculo, menor o número de deputados na assembleia da República.
Outra consequência seria a maior valorização, em tempo de campanha, dos círculos com menos votantes, pois importaria mobilizar todos os eleitores pois, até ao momento das eleições, não passariam de potenciais votantes. Seria necessária a sua mobilização para que se tornassem ‘votantes’ e não apenas potenciais ‘votantes’, como agora acontece.
Uma terceira consequência verificar-se-ia nas escolhas dos membros das listas que deixariam de corresponder a uma estratégia de escolha dos círculos mais expressivos para redundar num reconhecimento da igual e justa condição de todos os círculos.
Tudo isto em resultado de uma pequena alteração que ainda não chega à de fundo que é haver um sistema eleitoral em que não há desperdício de votos. Tal é praticamente impossível num sistema em que a eleição ocorre por círculos eleitorais. Só através de listas nacionais seria possível superar este problema.
E, nesse caso, seria de ponderar uma solução. A lista seria nacional, mas articulada com os círculos eleitorais em que, como resultado da participação eleitoral, se tornaria obrigatório que determinado partido repercutisse no número de deputados a compor a sua bancada uma percentagem correspondente às votações, por cada círculo. Este modelo juntaria o melhor de dois mundos: a certeza de que não se perderiam votos (todos eram contados e distribuídos, a nível nacional), mas repercutindo-se, de seguida, a votação obtida em cada círculo, por partido, na sua representação, em termos de bancada. Para exemplificar: se um partido obtivesse votação nacional que permitisse, por exemplo, eleger 5 deputados, eles teriam de provir dos círculos onde a sua votação correspondesse, em termos relativos, à sua maior representatividade.
Soma-se, a esta preocupação com a justiça eleitoral e efetiva repercussão do desejo expresso pelos votantes, uma outra que venho defendendo, há uns 10 anos (veja-se este artigo publicado em fevereiro de 2011: http://teologicus.blogspot.com/2011/02/tres-sugestoes-para-democratizar.html): a relevância do voto expresso pelos que participam nas eleições, manifestando-se não representados por qualquer dos partidos submetidos a sufrágio e que anulam ou deixam o seu voto em branco. Defendo, desde então, que as bancadas devem ficar vazias, até ao limite constitucional dos 180 deputados, limite abaixo do qual se imporia a obrigação de realização de novas eleições.
É também matéria a discutir, pois deverá considerar-se muito distinta a opção de quem se abstém (pode ter razões ou total falta delas!) em relação à de quem participa mas anula ou deixa em branco o seu voto. É uma manifestação de vontade e opinião que deveria repercutir-se no hemiciclo.
Este pode não ser mais do que um exercício teórico, mas que parte da real situação em que se toma a decisão sobre quem nos deverá governar, pelo que aos cidadãos também caberá ter uma palavra em tão decisiva matéria.

sábado, setembro 28, 2019

Cuidarmos uns dos outros? Decidimos que apenas nos toleramos!


Imagine-se a seguinte cena: alguém, no cimo de uma encosta, sentado, de olhar fixo num belo pôr-do-sol, inebriado com as cores que a refração da luz lhe proporciona e sentindo o calor daquele momento. Estranhamente, porém, quanto mais o sol ‘se põe’, maior é o calor que sente como que abrasar-lhe as costas, até que, quando o sol, em definitivo, desaparece do horizonte, percebe que, afinal, o calor que sentia não lhe vinha do que viam os olhos, mas de um enorme incêndio que se engrandecia, nas suas costas. Estivera todo o tempo a olhar para o ocaso do dia sem se aperceber da degradação que se abatia atrás de si. Não quisera ver ou, simplesmente, não lhe fora possível aperceber-se?
Parecemos a figura desta curta parábola. Ardem-nos as costas, degradam-se as nossas relações, mas vamos, airosamente, assistindo à decadência, convencidos de que o calor que sentimos nos vem do sol a cujo ocaso assistimos e não à real destruição da montanha onde deveríamos assentar morada.
De que decadência estaremos a falar?
Deveria ser evidente que, antes de sermos indivíduos, somos pessoas. Para um olhar distraído, pode não parecer senão um jogo de palavras, mas, de facto, a história da palavra (e da ideia de) ‘pessoa’ demonstra-nos a densidade que se esconde nela.
E é essa densidade que está a degradar-se e a queimar-nos sem que nos apercebamos, distraídos com mil pores de sol.
Tudo o que fazemos mostra, de modo inequívoco, que não podemos viver sem os outros, que não podemos fazer negócios sem os outros, que não podemos aprender sem os outros, que não nos podemos reproduzir sem os outros, que não podemos subsistir sem os outros, enfim, que só por ilusão (que gerará desilusão!) podemos pensar-nos sem os outros.
Esta condição de intrínseca inter-relacionalidade é o que se diz quando nos designamos como ‘pessoas’: somos um nó indestrutível de relações. (Recordo, sempre, a afirmação de um filho de um suicida, reproduzida num estudo de psiquiatria promovido por uma Faculdade de medicina brasileira, que dizia que ‘quem se suicida não se mata só a si, mas a todos os seus com ele’). Quando, pelo contrário, nos vemos como indivíduos, reduzimo-nos à condição da unicidade, qualificando-nos pelo prisma da quantidade. Individuar é identificar enquanto ‘um’. E o facto de se ser ‘um’ nada diz sobre a natureza dessa realidade quantificada. Podemos, aliás, designar como ‘indivíduo’ toda a realidade isolada, por estar de facto isolada, sem mais dizermos ao vê-la nesse prisma. Podemos designar um cão como um ‘indivíduo da espécie canina’, um gato como um ‘indivíduo da família dos felídeos’, ou, mesmo, individuar uma borracha, um caderno, um computador, etc. De todos esses ‘entes’ isolados podemos dizer que individuam a realidade de que fazem parte, são ‘indivíduos’, ‘individuações’, mas sem dizer nada sobre a sua natureza. E muito menos poderemos designá-los, enquanto tal, por ‘pessoas’. ‘Pessoa’ diz algo que está totalmente ausente da ideia de ‘indivíduo’. Já veremos o quê.
É, por isso, muito pouco pretendermos construir uma sociedade que nada mais seja do que a soma de indivíduos. Deveríamos ser ‘pessoas’, nós ativos de relações, nós densos de relacionamento que se preocupam e cuidam uns dos outros contra as adversidades da realidade suficientemente difícil e exigente para não nos distrair desse dever de cuidarmos uns dos outros sem nos deixarmos arrastar para a complicação de nos tornarmos adversários uns dos outros.
Isto deveria ser uma sociedade (!), correspondendo, aliás, à etimologia altamente simbólica da palavra ‘sociedade’ (em latim, ‘socius’ é ‘amigo’).
Mas decidimos que uns em relação aos outros não passamos de estranhos sobre uma superfície designada ‘Terra’, ainda por cima, com sinais de poder estar a prazo (pelo menos, assim no-lo dizem os novos milenarismos!).
Como genialmente reconheceu Paul Valéry, ‘estamos fechados fora de nós próprios’, porque já não há densidade humana em cada um de nós. A condição de humanidade diz de nós que somos seres indigentes uns em relação aos outros. Nenhum de nós é pleno, completo, e, por isso, nenhum de nós é autossuficiente. Mas – ilusão das ilusões! – queremos convencer-nos de que não precisamos dos outros porque nos enredámos numa ideia de liberdade que reduzimos à busca desenfreada de satisfação do que a vontade nos pede. E, como sabemos, a vontade é imensa, incapaz de se satisfazer e vê nas outras vontades um limite que tem de eliminar e abater.
A liberdade não é exercício da vontade. É a marca da racionalidade e da relacionalidade nos seres humanos. Bastaria, para isto concluir, a verificação de que só os seres humanos (e Deus!) são detentores de liberdade.
Mas os animais têm vontade. Isso não chega para serem livres?
De facto, não!
Falta-lhes a racionalidade que os faz reconhecerem a importância da relacionalidade. E é isso que os humanos possuem mas parecem querer apagar.
Será que, em definitivo, desistimos de cuidar uns dos outros para, simplesmente, passarmos a tolerar a existência dos outros até que decidam deixar de existir?
Triste sociedade esta se disto se convencer! Já não será uma sociedade de humanos, mas um roteiro de indivíduos paradoxalmente sem rumo!

terça-feira, agosto 27, 2019

O mito da mudança sempre ditosa



A sociedade portuguesa vive sob o peso de um mito que nos tem levado a adotar medidas que a história demonstrará não serem acertadas sendo que, nas próprias circunstâncias, já havia elementos para concluir que o caminho não era por ali. O peso desse mito é, porém, tão opressivo que a ousadia de alertar para a sua influência é logo arredada, sob a suspeita de se estar perante mais um indivíduo padecente de uma qualquer teoria da conspiração.
Mas o mito existe e é eficaz.
Esse mito pode definir-se como a «convicção da permanente bondade de toda a mudança». Aliás, é frequente ouvir-se que ‘mudar é sempre bom’.
Uma certa forma de relatar a história parece dar razão aos que defendem que esse não é um mito, mas uma constatação a aceitar sem reticências. A força impressiva do relato de como se foram conquistando terrenos ao inculto território do desrespeito dos direitos humanos parece somar razões a essa convicção.
Há, porém, que ler com atenção a história. Nem toda a mudança foi sempre no sentido da humanização e da realização máxima das possibilidades da humanidade. Um dos casos mais exemplares de como o caminho nem sempre foi de conquista e de que o ‘progresso’ nem sempre significou crescimento da humanidade é o que se esconde por detrás das decisões políticas eugénicas, nos inícios do século XX, em nome da ciência e da aplicação das possibilidades que as descobertas da genética colocavam na mão dos decisores políticos. Essa é uma história poucas vezes contada, mas que importa fazer emergir à memória viva para que, antes das mudanças, se tenha a coragem de formular a pergunta sobre se crescemos como humanos ao tomar determinada decisão.
O eugenismo não foi, contrariamente ao que se pretende fazer crer, um exclusivo do nazismo. A prática infame deste regime totalitário foi sendo ‘preparada’ por todo o mundo através de um real efeito de «rampa deslizante» que começa com o inebriamento perante as conquistas que a descoberta da seleção natural (em meados do século XIX) proporcionava quanto ao conhecimento sobre como funcionava a evolução das espécies até às descobertas de como manipulando a genética se poderia melhorar determinada espécie. Perante o fascínio legítimo que a ciência ia proporcionando, logo foram emergindo cenários de oportunidade quanto à sua aplicação à humanidade. E o que poderia haver de melhor do que tornar a humanidade perfeita, num momento em que, afinal, já podíamos dispor de meios técnicos para isso? Este tinha sido o momento certo para constatar o que a ética personalista recorda, permanentemente: a da não coincidência entre ‘poder fazer’ e a ‘legitimidade ética para o fazer’ (‘dever fazer’). Quando se perde esta noção, tudo se torna resvaladiço.
Somou-se a isto um outro dado. A relativização do conceito de dignidade.
É curioso constatar, com André Pichot, no seu livro ‘o eugenismo: geneticistas apanhados pela filantropia’, que o eugenismo quase não se manifestou, neste período de final do século XIX até meados do século XX, em países católicos, dado o reconhecimento de que a dignidade humana confere caráter de inviolabilidade a todos e cada ser humano. Nos países anglo-saxónicos, de influência liberal mais acentuada, o eugenismo ganhou terreno significativo, como é particularmente contado por Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos’
Como conta este autor, no referido livro, que replico em ‘Bem-nascido… Mal-nascido…’ (livro editado pela Tempo Novo), «em 1901, o Estado do Indiana, nos Estados Unidos da América, aprovou a primeira lei de esterilização obrigatória dos deficientes mentais, criminosos e violadores. Entre 1910 e 1935, trinta Estados da União apresentavam, no seu quadro jurídico, leis de esterilização obrigatória. A lei da restrição da imigração (Immigration Restriction Act) de 1924 limitava a entrada nos Estados Unidos de sujeitos provenientes do Leste ou do Sul da Europa por serem considerados «biologicamente inferiores», enquanto favorecia a admissão de pessoas provenientes do Norte e Oeste da Europa. Não se confinando a este período, houve Estados que mantiveram leis e políticas de atuação eugénica até períodos muito próximos de nós. Destaquemos o caso do Estado da Virgínia que manteve, até à década de 70 do século XX, práticas de esterilização compulsiva de doentes mentais, contribuindo, deste modo, para as cerca de 100000 pessoas que terão sido esterilizadas, nos Estados Unidos da América, invocando-se razões como as que invocara o Juiz Oliver Wendell Holmes, no processo «Buck versus Bell», de que resultou a esterilização de Carrie, que vivia com a respetiva progenitora e era, então, mãe de uma menina de 7 meses: «três gerações de imbecis são suficientes». […] «A América, o bastião da liberdade individual, esterilizou mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais com base em mais de 30 leis estaduais e federais aprovadas entre 1910 e 1935. Mas, embora a América fosse a pioneira, seguiram-se outros países. A Suécia esterilizou 60000. O Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia e a Islândia colocaram leis de esterilização coerciva nos seus livros e utilizaram-nas.» (Cfr. Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300).
Esta vertigem eugenística influenciou grande parte do mundo de então, «não lhe resistindo países como o Canadá, a Noruega, a Finlândia, a Estónia, a Islândia ou a Suécia, para além, naturalmente, da Alemanha Nazi que, em apenas dezoito meses, gaseou 70000 doentes psiquiátricos entretanto já esterilizados. (Cfr. estas e outras informações em Ridley, Matt – Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Lisboa: Gradiva, 2001, 300-301, e em Vidal, Marciano – Moral de Actitudes, II-I parte: Moral de la persona y bioetica teologica. Madrid: Editorial Perpétuo Socorro, 19918, pp.698-704).
Esta é uma história negra que deveria fazer-nos pensar. Mudar nem sempre é bom! Particularmente quando a mudança belisca a intocabilidade da dignidade humana.
Também a forma como os Estados ocidentais adotaram, de 1973 para cá, leis pró-abortistas é outra narrativa que a História demonstrará ser uma réplica do que já ocorrera, no início do século XX com as leis eugénicas. Mas a memória é curta.
O mito de que quem se opõe ou obriga a pensar perante estas mudanças é ‘Velho do Restelo’ entrou profundamente na mentalidade portuguesa, mas deveria ser articulado com um outro mito: o de Cassandra. Cassandra é uma figura da mitologia clássica que padece de uma maldição. Tem a capacidade de antecipar o futuro, mas está amaldiçoada com o impedimento de que os outros acreditem nela. Quando alerta os troianos para os perigos do Cavalo de Troia que os gregos lhes colocaram junto às muralhas, as suas palavras soam vãs e são rejeitadas pelos seus concidadãos que fazem com que os gregos entrem dentro da sua fortaleza através da armadilha por eles próprios montada. Quando os troianos dão conta de que Cassandra dizia verdade, já é tarde e os gregos tomam conta da cidade.
Não defendo a imutabilidade e o imobilismo, mas a abordagem crítica de todas as possibilidades, sem censuras nem preconceitos (os mais recorrentes, hoje, socorrem-se de epítetos como os de ‘conservadores’, ‘ultraconservadores’ ou outros termos de igual pendor) em particular porque toda a decisão e ação implica uma leitura ética. E, contrariamente ao que costuma pensar-se, nada há de mais progressista do que a ética, pois, perante uma possibilidade imediata de solução, a ética interroga sobre se, no futuro, essa opção se constituiu como uma resposta positiva ou se mais negativa do que a solução que pretendia ser, no momento imediato.
Veja-se o que significarão, no futuro, as aparentemente bondosas barrigas de aluguer, os filhos da reprodução heteróloga (com gâmetas de fora do casal), a educação num registo de ideologia de género que expressa uma falta de amor por si mesmo e pelo outro tal como é desde a sua origem, educando para a confusão e a indiferença, defendendo-se o absoluto da autodeterminação solipsista… veja-se o que significará cada uma destas opções quando cada um se sentir só, isolado, e num registo de conflitualidade progressiva. Aquilo que parecia ser bondosa solução afigurar-se-á como promotor de novos e mais entranhados conflitos. Nessa hora, já ninguém lembrará a voz de Cassandra, nem ali estarão já os que defenderam a bondade das decisões avulsas tomadas outrora.
Estes tempos exigem tempo, exigem ponderação. Decidir no meio da tempestade nunca foi sinal de sensatez. E estamos em tempos de tempestade. Há que ter a sensatez de não seguir rumos que se afigurem irreversíveis e sem retorno.
Mas quem quer ouvir Cassandra?

quinta-feira, julho 11, 2019

Convencemo-nos de que ‘liberdade é fazer o que se quer’ e, depois, queremos cidadãos!


As grandes ideias são concebidas por alguns e, depois, assimiladas, progressivamente, pelos restantes. Não será por acaso, aliás, que falamos de ‘conceber’ para nos referirmos ao processo pelo qual se ‘gera’ uma ideia. Ela é, de facto, ‘gerada’ e, depois, dada à luz. Quando vê a luz, passa a ser recebida por todos e, de algum modo, partilhada entre todos.
É importante termos consciência disto, pois, na medida em que somos seres racionais, a nossa vivência da realidade é altamente condicionada pelo modo como a concebemos, como a geramos, no nosso interior, a partir daquilo que recebemos dos outros.
Se estivermos conscientes disto, perceberemos que o modo como pensarmos, como concebermos, como ‘gerarmos’ em nós determinada realidade, far-nos-á vivê-la de um modo diferente daquela que seria a nossa vivência dessa mesma realidade com outra ‘conceção’ da mesma.
Um dos maiores filósofos da história, Kant, deu-se conta disso e provocou uma revolução tão importante que foi equiparada à que Copérnico provocou no nosso modo de ver o sistema solar.
A sua descoberta serviu, porém, não para que fôssemos mais prudentes, ao ‘gerar’ ideias e partilhá-las, mas antes tem servido para que se agudize a manipulação dos que sabem isto em relação aos demais.
Há, por isso, um dever ético de tomar consciência e partilhar essa consciência de que somos vulneráveis à manipulação dos que sabem como pensamos e como somos condicionados pelo modo como pensamos.
Feito este preâmbulo, avancemos para o assunto a que conferimos estatuto de título deste artigo.
O conceito de liberdade é, provavelmente, o mais importante para a compreensão da nossa sociedade moderna. Ele é, aliás, entendido como a grande marca das sociedades modernas e coloca-o em contraste com outras sociedades ditas ‘não modernas’. Há, porém, que consciencializar a transformação que se tem operado neste conceito e como esta transformação nos pode estar a encaminhar para o fim da sociedade.
A liberdade tem sido definida como a possibilidade de se ‘fazer o que se quer’.
Há, nesta formulação, dois traços a consciencializar. A liberdade é reduzida à dimensão de ‘ação’ (fazer!) e confinada ao âmbito da vontade (‘querer’).
Mas, curiosamente, se tal conceito fosse verdadeiro, seria difícil não considerar que também os animais podem ser livres, o que tem algo de contraditório, pois a liberdade é, por definição, um atributo humano (e divino, na perspetiva cristã), mas não pode considerar-se em relação aos animais e demais entes naturais. Sem mais delongas, é fácil constatar que tal se deve à condição racional do ser humano, o que obriga a deslocar o conceito de liberdade do âmbito da vontade, como se supõe na definição aqui recordada, para o âmbito da inteligência. É por isso que muitos recordam (há uns anos, ouvi-o ao professor Guilherme D’Oliveira Martins) que a liberdade é uma palavra que deriva de ‘libra’, uma espécie de balança, na cultura e língua latina, dela derivando, portanto, a ideia de escolha e de discernimento. Ser livre não é, a esta luz, a simples adesão ao que a vontade ‘quer’, mas a possibilidade de discernir, de escolher o melhor, em cada situação.
Acrescentemos que esta sobrevalorização da vontade tem ‘pais’, foi gerada na mente de alguns. Não é preciso muito esforço para reconhecer, nesta ‘gestação’, o papel de Nietzsche e Schopenhauer, autores que foram consequentes com as suas visões e deram conta de que o processo nos levaria ao ‘nihilismo’, ao nada.
E é esse horizonte que pretendemos?
Não será de concluir que um tal horizonte denuncia que temos um erro ‘genético’ nesta conceção que será urgente submeter a uma terapia? Aparentemente, é, apenas, um pequeno erro de conceção, mas é oportuno recordar que a geometria evidencia que um pequenino erro no início de um ângulo pode significar um erro de quilómetros quando se prolonga uma semirreta. E qualquer análise atenta do conceito de liberdade tantas vezes invocado só pode concluir que ele está errado.
É que este conceito ainda redunda num outro problema…

Arbitrariedade não é liberdade
A vontade isola-nos. A vontade é algo intrinsecamente individualista. A vontade é aleatória e arbitrária. Não sabemos porque é que a vontade quer o que quer. Quer, simplesmente, porque quer.
Já a inteligência escolhe, tendo como horizonte a busca da verdade.
Colocar a liberdade no âmbito da inteligência significa estar num caminho que une os demais humanos que estão em busca e permite a compreensão, com base na argumentação e no discernimento.
A liberdade, entendida como ‘possibilidade de fazer o que se quer’ é individualista. Some o sentido de dever, tudo colocando ao serviço do indivíduo, da sua vontade que é completamente imprevisível e insuscetível de satisfação.
Só por imposição arbitrária é que, após a interiorização de um conceito de liberdade tão marcadamente individualista e solipsista (cada um fechado sobre si mesmo) é que se valoriza a importância do outro que, de algum modo, aparece sempre como um estorvo. A esta luz, de facto, como concluiu Sartre, ‘o inferno são os outros’.
Mas, de facto, os outros não só não são o inferno como são a nossa condição de possibilidade, como demonstra a psicologia dos últimos 100 anos. O estudo dos meninos-selvagens, assunto envolvido em alguma polémica, permite concluir que, sem a presença e participação dos outros humanos, se fôssemos abandonados na selva, nos primeiros anos de vida, talvez sobrevivêssemos, biologicamente falando, mas nunca teríamos consciência de nós mesmos. Esta consciência é uma possibilidade que precisa dos outros para despertar. Seguindo a linha do grande pensador Alasdair Macintyre, figura destacada do chamado ‘comunitarismo’, a base da vida humana não é o indivíduo, fechado sobre si mesmo, mas sim a relação entre os humanos. É fácil perceber o alcance desta constatação e, com essa perceção, submeter a profunda crítica o tipo de opções que temos vindo a adotar, em sociedade.
A educação não deveria, à luz desta reflexão que aqui partilhámos, vincar a ideia de liberdade associada à vontade, mas sim, fazê-la decorrer da busca da verdade, colocando-nos num caminho em que os outros são parceiros de percurso e não o seu impedimento.
Insistir em educar à luz de um conceito de liberdade voluntarista e solipsista só pode redundar numa dificuldade cada vez maior e mais visível de gerar ‘cidadãos’. Só se pode ser cidadão se se sentir a pertença à cidade (‘pólis’), aqui entendida como sinónimo de ‘sociedade’ (palavra que, através da língua grega, está na raiz de ‘política’). De outro modo, a sociedade não passará de um termo sem conteúdo, referindo-se à mera soma de indivíduos sobre um território, mas sem identidade nem relação. A única preocupação de cada um dos seus membros será que os outros não estorvem. Não será isso muito pouco como sonho de sociedade?


O estranho caso do inexistente apelo ao voto


Esta reflexão decorre da minha condição de cidadão português e europeu e de cristão de matriz católica. Não vincula, por isso, qualquer das instituições a que pertenço. Entendo, como pressuposto a esta análise, que a catolicidade tem como traço marcante a busca de não deixar ninguém de fora: perante as tentações de confinar a uma leitura particularista, a catolicidade define-se pela universalidade. ‘Nada do que é humano [nos] é estranho’.

Estabelecido este pressuposto, importa orientar a nossa atenção para o assunto que aqui discutiremos.

 

Uma imprensa que serve a verdade e não agendas obscuras

Em meados de maio, um jornal de tiragem nacional publicava que o ‘Patriarcado partilhou apelo ao voto no Basta’.

Quando vi a notícia, e vendo-a no específico jornal em que tal ocorreu, fiz a pergunta que sempre faço quando leio uma manchete: a quem serve esta notícia? [O leitor pode aplicar o critério a este próprio artigo: sirvo a causa dos mais frágeis (desde a conceção à morte natural) e faço-o por entender que nenhum humano vale mais nem menos do que qualquer outro. Ninguém tem legitimidade para matar ninguém! Ninguém! Sou, por isso, contra todo e qualquer atentado contra a vida humana! Aborto, tortura, pena de morte, eutanásia, eugenismo, violência sobre quem é mais frágil, etc., são faces diversas do mesmo desrespeito pela inviolabilidade da vida humana!].

Antes de mais desenvolvimentos, detenho-me no motivo da interrogação acima referida.

Há muito que defendo que os meios de comunicação social deveriam fazer declaração de interesses. Assim é, por exemplo, na imprensa que pertence às dioceses. É conhecida de todos a sua matriz, mas, ainda assim, esta imprensa diocesana é obrigada a explicitar o seu estatuto editorial e as suas conceções estruturantes. O mesmo preconizo para a imprensa nacional.

Defendo, aliás, que os grandes jornais deveriam explicitar as suas motivações e não, sob a capa de neutralidade, veicularem agendas que um olhar atento facilmente descortina, mas que se teima em pretender ocultar, de forma obscura, acusando, aliás, de obscurantismo aqueles que, afinal, têm as suas matrizes mais explícitas.

Feito este excurso, regressemos ao ponto que justificou a interrogação.

Quando, logo pela manhã, vi a manchete, sabendo da posição oficial da Conferência Episcopal sobre não assumir posição partidária, mas sem se inibir de denunciar o desrespeito por valores que considera estruturantes para a vida em sociedade, facilmente concluí que alguém pretendia matar à nascença um assunto que se presumia ser incómodo.

Não precisei de muito para que tal se tornasse evidente.

A forma como a notícia era dada, para além de ser falsa (o ‘Basta’ não era o único partido que correspondia ao suposto ‘apelo’, sendo que os católicos não votam num certo sentido porque se lhes diz que é neste ou naquele partido que deve votar-se. Muitos querem continuar a cultivar essa ideia de menoridade quando o voto da maioria dos católicos não subscreve as suas opções!), desrespeitava as mais básicas regras do jornalismo, uma vez que não assegurara o contraditório, pois a entidade envolvida no post (não o Patriarcado, mas sim a Federação Portuguesa pela Vida) nunca foi interrogada nem entrevistada por quem fez a notícia.

 

Porquê tanta pressa em denunciar um post de facebook?

Porquê, então, esta prontidão em denunciar um post de facebook?

Porque não havia tempo a perder. Importava matar à nascença (abortar, mais uma vez!) uma criatura que se vislumbrava ser incómoda. Os autores da manchete sabiam que o quadro feito pela Federação Portuguesa pela Vida não era uma fake new (‘falsa notícia’)! Explicitava o que cada partido pensava sobre as matérias que, para a referida Federação, têm sido motivo das suas principais preocupações, desde a sua fundação. E, em tempos como estes, clarificar ajuda o eleitorado a posicionar-se, o que vai ao arrepio do que se pretende em tempo de campanha eleitoral (!).

Constatemos que a mesma imprensa não se insurgiu contra a Igreja quando, supostamente, apelou ao voto, em relação a outras matérias, o que evidencia que a intenção da associação República e Laicidade de acusar o Patriarcado é estratégia de moreia que sai da sua cavidade para lançar o alarme, para, de seguida, recolher ao mesmo lugar.

Vejam-se, a título de exemplo, algumas manchetes, anteriores à data em que rebentou o escândalo da Igreja defender que a política não deve apoiar o aborto, a eutanásia, a legalização da prostituição ou outras matérias do âmbito da defesa da vida humana mais frágil.

Em 12 de maio, ‘o Cardeal D. António Marto critica «ideologias populistas e nacionalistas de intolerância e exclusão’. Em 2 de maio, ‘Papa alerta para «ressurgimento» de nacionalismos que podem comprometer projeto europeu’. Em 27 de abril, ‘D. José Cordeiro pede «políticas geradoras de emprego» para o interior do país.’ Em 21 de abril, na homilia de Domingo de Páscoa, o Bispo do Porto afirmava que ‘a abertura dos supermercados e dos centros comerciais ao Domingo [é] expressão de um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico.’

Sublinhemos, para que não restem dúvidas. A Igreja tem direito, e, para além de tudo, dever de denunciar quando a política não serve a dignidade da pessoa humana. Sempre! Sem medo e sem esquizofrenia.

 

Uma patologia grave da política

O que esteve em causa, neste escândalo do suposto apelo ao voto, foi uma questão que denuncia uma esquizofrenia na política. Os pronunciamentos da Igreja parecem bem-vindos se não se meterem em matéria de família e defesa da vida humana. Mas também em relação a matérias de moral social há assuntos em que não se lhe quer permitir que se intrometa, como veremos, de seguida.

O que parece estar em causa, de facto, é a proteção da vida humana! Sim, parece que não é tanto a matéria de doutrina social da Igreja, pois essa pensa-se que recolhe consensos. Valerá a pena, porém, recordar que a mesma Doutrina Social da Igreja defende o princípio da subsidiariedade, enunciado, pela primeira vez, em 1931, e que afirma que, quando a sociedade é capaz de, de forma justa, encontrar respostas para problemas nela existentes, não devem ser as instâncias superiores a supri-las, sob pena de agirem de forma injusta. É a esta luz que é justo que haja colégios da sociedade e que o ensino público não se reduza às escolas de iniciativa estatal ou que não deva permitir-se a criação de monopólios de qualquer tipo (privado ou estatal) que impeçam que a sociedade continue a procurar as melhores soluções para os problemas. Bem certo que esta página da doutrina social da Igreja é incómoda e deve ser rasgada!

Também a página que defende o legítimo direito à posse de bens, desde que em articulação com o destino universal dos bens, é incómoda, quando se defende o fim da propriedade privada ou quando, pelo contrário, se pretende defender um direito ilimitado à posse. É um princípio incómodo para todos – direita e esquerda – mas é assim a DSI. Não é coutada de ninguém, mas desafio para todos. Ninguém fica excluído. É isso que importa dizer. Ninguém fica excluído, segundo a DSI: nem os imigrantes, nem os ainda não nascidos; nem os que são marginalizados pelos seus comportamentos, nem os que estão em situação de limite de vida; nem os que cometeram graves crimes ou os mais inocentes de todos. Para a DSI, todos são dignos. E é isso que torna ridícula uma certa forma de fazer política. Só alguns parecem merecer respeito e reconhecimento. Os outros ficam ao abrigo da arbitrariedade ou da vontade de poder.

 

Lições e desafios de uma decisão

A pergunta que muitos fizeram, perante a clareza de que não tinha havido um apelo ao voto (apenas a replicação de um quadro que esclarecia sobre o posicionamento dos partidos que tinham respondido ao questionário da Federação Portuguesa pela Vida) e que, em rigor, se se tratasse de um apelo ao voto, tal não seria num só partido, era: porquê, então, o ‘recuo’ do Patriarcado?

Num tempo tão dado a polémicas gratuitas, o ‘recuo’ do Patriarcado extinguiu a chama que ameaçava distrair do que era importante. Manter um post que a imprensa já tinha obrigado a pensar que constituía um apelo ao voto num partido xenófobo era alimentar uma discussão inútil e que desvirtuava a intenção que assistira à sua publicação: informar.

Mas o recuo também obriga a refletir. A estratégia adotada pelo jornal que se apressou a dizer como devia ser interpretada a intenção do Patriarcado é suficientemente profissional para se perceber que regressará sempre que for possível e necessário. E essa é uma interrogação que deverá colocar-se com honestidade e transparência, nos areópagos onde se problematizam as fake news: devemos continuar a acreditar na imprensa que critica os que criam fake news quando ela mesma se socorre de igual estratégia para chegar aos seus objetivos?

E deverá, em definitivo, considerar-se que a defesa da intrínseca dignidade da vida humana ficará confinada ao âmbito dos partidos populistas ou de extrema?

 

A defesa da vida humana devia ser causa de todos

A memória obriga a reconhecer os riscos que tal comporta. Norberto Bobbio, autor que já recordei diversas vezes, definia-se como descrente e socialista, mas não ocultava que lhe causava estranheza que a defesa da vida humana ficasse entregue apenas aos crentes (e, hoje, poderia acrescentar: ‘e, entre estes, já só alguns!’). Hoje, tal é cada vez mais inquietante: o que está em causa diz respeito a todos; a dignidade humana, mesmo quando escondida, recôndita, é intrínseca a cada ser humano; esteja ele onde estiver, tenha ele a idade que tiver, esteja ele na condição em que estiver. A dignidade de cada um torna uma ofensa a cada um um problema de todos. Não pode deixar de gerar perplexidade, por isso, que não se reconheça o dever de proteção ao ser humano e que ele possa ficar disponível à vontade de alguns, quando, por oposição, se chega ao ponto de fechar um campo de futebol porque uma ave protegida decidiu iniciar a construção do seu ninho. (Nada contra, desde que não se fosse contraditório na abordagem jurídica. Bem sabe o legislador que é preciso proteger desde o início, mas parece esquecê-lo quando se refere aos humanos!). Refiro-me a um caso acontecido nos Estados Unidos (Nova Jérsia) envolvendo o borrelho-de-dupla-coleira.

O que está em causa é a coerência. E sabemos que, quando os regimes se entregam ao discricionário, ao arbitrário, favorecem a emergência de ditadores para quem as leis não devem respeitar princípios comuns a todos e inatacáveis, mas dependentes da vontade de quem tem poder. E, hoje, esse poder está em quem tem as armas para agitar as massas, para as levar a pensar o que quer que pensem. Como o sabe fazer uma certa imprensa em Portugal! Não é isso, afinal, o populismo?


Caminhada pela vida | Contra rótulos e preconceitos, os factos. Simplesmente, os factos

  Artigo originalmente publicado em https://diocese-aveiro.pt/cultura/ No dia 6 de abril, sábado, o país mobilizou-se para afirmar que a...